domingo, 30 de maio de 2010

"Um Médico Rural" de Franz Kafka

"A literatura é sempre uma expedição à verdade." Franz Kafka


Ein Landarzt publicado no Brasil sob o título Um Médico Rural é um conto escrito por Franz Kafka, indubitavelmente o escritor tcheco mais importante do século XX. É uma de suas histórias mais enigmáticas, do tipo que possibilita ao leitor uma experiência individual devido às diversas interpretações que podem ser extraídas do texto.


Num campo, um médico é chamado para atender um paciente criticamente doente a umas dez milhas de distância, numa noite fria, em que neva. Seu único cavalo havia morrido na noite anterior, e não há meios adequados para locomoção. Pede que sua empregada Rosa parta em busca de um cavalo emprestado, mas ela volta de mãos vazias. É nesse cenário que inicia a trama. Misteriosamente um homem aparece oferecendo uma parelha de magníficos cavalos, em contrapartida, esse homem morde a empregada e dá mostras de que tenciona estuprá-la, o médico o repreende, mas logo percebe que está em dívida com ele devido ao favor e, apesar do risco em deixar a menina sozinha com o desconhecido, segue à casa do jovem paciente a fim de cumprir as obrigações do seu ofício. "Era o único médico do distrito e cumpria a minha função até ao máximo, quase até aos limites do possível. Apesar de mal pago, era generoso...” Finalmente, o médico chega a casa do seu paciente. A figura do médico é vista pela família como um deus a quem depositam os únicos resquícios de esperança. Kafka escreve "Os pais do meu doente correram para fora de casa, seguidos pela irmã. Fui quase literalmente erguido do cabriolé, não conseguindo perceber uma palavra das suas confusas exclamações." fragmento que denota tanto a ansiedade com que todos esperavam o doutor, quanto o desespero que a doença do ente amado os submetia. Durante todo o texto, encontramos detalhes que nos incitam a acreditar que o personagem estava a todo o momento preocupado em cumprir suas obrigações profissionais como médico da forma mais correta possível “Quis abrir uma janela, mas primeiro tinha de ver o paciente.” Num primeiro momento, o menino lhe parece completamente saudável “Magro, sem febre, nem frio nem quente e de olhar vago, com o tronco nu, o jovem ergueu-se na cama de penas, atirou-me os braços ao pescoço e sussurro-me ao ouvido:´Deixe-me morrer, Sr. Doutor.´” Pasmo, e com os pensamentos centrados em Rosa, tenta não ficar irritado por ter sido chamado “em vão” e por ter deixado sua empregada numa situação perigosa.“Mais uma vez tinha sido chamado sem necessidade, coisa a que já estava habituado, pois todo o distrito me fazia à vida num inferno com chamadas noturnas.” Trata então de examinar seu paciente como parte da rotina “A mãe estava junto ao leito do doente, persuadindo-me a assisti-lo. Encostei a cabeça ao peito do rapaz, que estremeceu sob a minha barba molhada. Confirmei o que sabia já: o rapaz estava fino; tinha qualquer coisa anormal na circulação, saturada de café pela solícita mãe, mas estava fino e o melhor que havia a fazer era pô-lo da cama para fora.”


“Não sou eu, porém, que vou reformar o mundo e, portanto, deixei-o mentir.” Pensando assim, o doutor resolve prescrever um placebo “Passar receitas é fácil, mas fazer as pessoas compreender as coisas é difícil.”, e estava prestes a fazê-lo quando percebeu que a irmã do menino segurava uma toalha manchada de sangue. Retorna então ao leito do paciente para fazer um minucioso exame físico "Ao dirigir-me para ele, acolheu-me com um sorriso, como se eu lhe levasse o mais alimentício dos caldos de dieta” e descobre uma enorme ferida aberta no lado direito, na região das ancas, que já estava infestada por vermes. "Cor-de-rosa, de tonalidades várias, escura no interior e mais clara nos bordos, ligeiramente granulada, parecia uma mina a céu aberto exposta à luz do dia, vista à distância. Observada de mais perto, contudo, revelava outro distúrbio. Não consegui evitar um assobio de surpresa. Do estreito interior da ferida coleavam em direção à luz uns vermes da grossura e comprimento do meu dedo mínimo, igualmente cor-de-rosa e manchados de sangue, de cabeças pequeninas e muitas pernas minúsculas. Pobre rapaz, já ninguém podia fazer nada por ti. " O pequeno paciente, cheio de esperanças, rende-se ao desejo de viver e suplica ao médico que o tire dessa situação “Salve-me, sim?,sussurrou o rapaz com um soluço, que a vida da própria ferida quase abafou." Diante da própria impotência, nosso protagonista começa a divagar sobre o quanto as pessoas esperam de gente da sua profissão “A gente do meu distrito é assim. Esperam sempre coisas impossíveis do Médico [...] consideram-no onipotente, com a sua misericordiosa mão de cirurgião.” Vendo que a família esperava o veredicto, e apesar de nada poder fazer pelo doente, manteve a postura que considerava adequada a um médico “olhei calmamente para as pessoas, com os dedos na barba e a cabeça inclinada para um lado. Estava inteiramente senhor de mim e à altura da situação, e assim me mantive, apesar de não ter salvação.” Ciente de que todos esperavam que fizesse alguma coisa, e não havendo uma forma de tratamento eficaz, diz ao garoto: “Eu já estive em todos os quartos de doentes, por todo o lado, e digo-lhe uma coisa: a sua ferida não é assim tão grave.” É a única conduta que está ao seu alcance, e dessa forma tenta fazer com que o paciente continue, até o último momento, com esperanças de que logo ficará bem “Isso é verdade ou está a aproveitar-se da minha febre para me enganar?” “É mesmo verdade, aceite a palavra de honra de um médico oficial.” E ele aceitou-a e sossegou.” e assim, o doutor garantiu uma morte menos penosa à criança.


Veja a bela adaptação japonesa feita por Koji Yamamura:






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FRANZ KAFKA, "Um Médico Rural"

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Machado de Assis e "O Alienista"

Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia. Machado de Assis 
Considerada a primeira novela de Machado de Assis maduro, O Alienista (1882) conta a história de Simão Bacamarte, um conceituado médico interessado nos estudos psíquicos.


 O doutor, demasiadamente humano, inicia um estudo sobre a loucura e seus graus na diminuta população de Itaguaí. 
O nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção,—o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral.
 A obra inclui críticas relacionadas às condições desumanas em que viviam os mentecaptos, destituídos de tratamento eficaz:
Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua.
Valorizando uma anamnese detalhada, o doutor Simão penetrava nas particularidades de cada doente.
Analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família.
Através dos ideais de um personagem médico, Machado de Assis dá-nos uma lição de atuação humanística. Simão Bacamarte exercia a Medicina incansavelmente, tratava os enfermos de modo exemplar, aplicava detalhes às histórias clínicas, instituía admiráveis formas de tratamentos individuais e, acima de tudo, não largava o paciente até julgá-lo completamente curado.

Confira alguns dos interessantes casos retratados na obra: 

 Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade.
A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes ( porque não olhava nunca para nenhuma pessoa ) toda a sua genealogia, que era esta: —Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu. Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:—Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.
Não falo dos casos de monomania religiosa: citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus.

REFERÊNCIAS:
MACHADO DE ASSIS - O Alienista

quinta-feira, 27 de maio de 2010

História da Sífilis Contada por Voltaire

"A arte da medicina consiste em distrair o paciente enquanto a Natureza cuida da doença." Voltaire

Voltaire é o pseudônimo adotado por François-Maric Arouet (1694-1778).

O homem dos quarenta escudos é uma obra que discute diversos assuntos polêmicos do século XVI, constituindo uma crítica sistêmica irônica e incisiva, não poupando médicos, autoridades e nem religiosos.  

Confira abaixo o capítulo denominado “Sífilis”, tema palpitante na época.

CAPÍTULO XI: SÍFILIS

O homem dos quarenta escudos morava num pequeno cantão, onde fazia uns cento e cinqüenta anos que não acampavam soldados. Os costumes, naquele desconhecido rincão, eram mais puros do que o ar que o banha. Não se sabia que alhures pudesse o amor ser infeccionado de um veneno destrutivo, que as gerações fossem atacadas no seu germe, e que a natureza, contradizendo-se a si mesma, pudesse tornar a carícia horrível e o prazer medonho; entregavam-se ao amor com a segurança da inocência. Chegaram tropas, e tudo mudou.
Dois tenentes, o esmoler do regimento, um cabo e um recruta proveniente do seminário bastaram para envenenar doze aldeias em menos de três meses. Duas primas do homem dos quarenta escudos viram-se cobertas de pústulas; caíram-lhes os lindos cabelos; a sua voz tornou-se rouca; as pálpebras de seus olhos fixos e apagados tomaram uma cor lívida, e não mais se fecharam para permitir repouso aos membros deslocados, que uma cárie secreta começava a roer como aos do árabe Job, embora Job jamais tivesse tido semelhante doença.
O cirurgião-mor do regimento, homem de grande experiência, foi obrigado a pedir auxilio à Corte, para curar todas as raparigas da região. O ministro da guerra, sempre inclinado a aliviar o belo sexo, enviou uma leva de recrutas, que estragaram com uma das mãos o que endireitaram com a outra.
O homem dos quarenta escudos lia então a história filosófica de Cândido, traduzida do alemão e de autoria do doutor Ralph, que prova evidentemente que tudo está bem, e que era absolutamente impossível, no melhor dos mundos possíveis que a sífilis, a peste, os cálculos, as areias, as escrófulas, a câmara de Valência e a Inquisição não entrassem na composição do universo, desse universo unicamente feito para o homem, rei dos animais, e imagem de Deus, ao qual bem se vê que se assemelha como duas gotas d'água.
Lia, na história verdadeira de Cândido, que o famoso doutor Pangloss perdera no tratamento um olho e uma orelha.
— Ai! e as minhas primas, as minhas pobres primas, ficarão também tortas e desorelhadas?
— Não – disse-lhe o major, confortadoramente. – Os alemães têm mão pesada; mas, quanto a nós, curamos as raparigas prontamente, seguramente e agradavelmente.
E, com efeito, as duas lindas primas livraram-se do mal ficando com .a cabeça inchada como um balão durante seis semanas, perdendo metade dos dentes, botando uma língua de meio palmo, e morrendo do peito ao cabo de seis meses.
Durante a operação, o primo e o cirurgião-mor assim discorreram:

O Homem dos Quarenta Escudos: – Será possível, senhor, que a natureza tenha unido tão espantosos tormentos a um prazer tão necessário, tanta vergonha a tanta glória, e que haja mais riscos em fazer um filho do que em matar um homem? Será ao menos verdade, para consolação nossa, que esse mal vai diminuindo um pouco pelo mundo e cada dia se torna menos perigoso?
O Cirurgião-mor: – Pelo contrário, alastra-se cada vez mais por toda a Europa cristã; está disseminado até a Sibéria; vi morrer disso quinhentas pessoas, inclusive um grande general e um excelente ministro. São poucos os fracos do peito que resistem à doença e ao remédio. As duas irmãs, la petite et la grosse, coligaram-se ainda mais que os monges para destruir o gênero humano.
O Homem dos Quarenta Escudos: – Mais uma razão para abolir os monges, a fim de que, recolocados entre os homens, eles reparem um pouco o mal que fazem as duas irmãs. E diga-me uma coisa: os animais. também têm vérole?
O Cirurgião: – Ni la petite, ni la grosse, nem os monges são conhecidos entre eles.
O Homem dos Quarenta Escudos: – Convenhamos então que são mais felizes e mais prudentes do que nós no melhor dos mundos.
O Cirurgião: – Disso eu nunca duvidei; tem menos doenças do que nós; seu instinto é muito mais seguro do que a nossa razão: jamais se atormentam com o passado nem com o futuro.
O Homem dos Quarenta Escudos: – O senhor que já foi cirurgião do embaixador francês na Turquia: há muita sífilis em Constantinopla?
O Cirurgião: – Os franceses trouxeram-no para o bairro de Pera, onde residem. Conheci ali um capuchinho que estava devorado por ela como Pangloss; mas o flagelo não alcançou a cidade propriamente dita, onde os franceses quase nunca dormem. Não há quase mulheres públicas naquela enorme cidade. Cada homem rico tem mulheres, escravas circassianas, sempre guardadas, sempre vigiadas, e cuja beleza não pode ser perigosa. Os turcos chamam à sífilis o mal cristão, o que redobra o profundo desprezo que dedicam à nossa teologia. Mas, em compensação. têm a peste, doença do Egito, de que fazem pouco caso e que nunca se dão ao trabalho de prevenir.
O Homem dos Quarenta Escudos: – Em que tempo julga ter começado esse flagelo na Europa?
O Cirurgião: – Pelo ano de 1494, quando Cristóvão Colombo regressou da sua primeira viagem às nações inocentes que não conheciam nem a avareza nem a guerra. Aquelas nações simples e justas estavam contaminadas desse mal desde tempos imemoriais, como a lepra reinava entre os árabes e os judeus, e a peste entre os egípcios. O primeiro fruto que colheram os espanhóis, dessa conquista do novo mundo, foi a sífilis; expandiu-se mais rapidamente que a prata do México, que só circulou na Europa muito tempo depois. A razão era que, em todas as cidades, havia então belas casas públicas, chamadas bordéis, cujo estabelecimento era autorizado pelos soberanos para preservar a honra das damas. Os espanhóis trouxeram o veneno para essas casas privilegiadas de onde os príncipes e bispos requisitavam as raparigas que lhes eram necessárias. Havia em Constança setecentas e dezoito dessas mulheres, para o serviço do Concílio que tão devotadamente mandou queimar João Huss e Jerônimo de Praga.
Só por isso se pode julgar com que rapidez o mal percorreu todos os países. O primeiro senhor que veio a morrer desse mal foi o ilustríssimo e reverendíssimo bispo e vice-rei da Hungria, em 1499, e que Bartolomeu Montanagua, grande médico de Praga, não pode salvar. Assegura Gualtieri que o arcebispo de Mogúncia, Bertold de Henneberg, attaqué de la grosse vérole, rendit son âme à Dieu en 1504. Sabe-se que disso morreu o nosso rei Francisco I, Henrique III o adquiriu em Veneza, mas o jacobino Jacques Clément preveniu os efeitos do mal.
O parlamento de Paris, sempre zeloso do bem público, foi o primeiro que baixou um édito contra a sífilis, isso em 1497. Proibiu a todos os contaminados que permanecessem em Paris, sous peine de la hart. Mas, como não. era fácil convencer juridicamente os burgueses e burguesas de que estavam em delito, não teve esse édito maior efeito do que aqueles que foram depois baixados contra a emética; e, apesar do parlamento, continuava aumentando o número de culpados. É verdade que, se os tivessem exorcismado em vez de enforcá-los, não mais os haveria hoje sobre a face da terra; mas infelizmente nunca se pensou em tal coisa
.
O Homem dos Quarenta Escudos: – É então verdade o que li no Cândido, que, entre nós, quando entram em campo dois exércitos de trinta mil homens cada um, pode-se apostar que há vinte mil contaminados de cada banda?
O Cirurgião: – Nada mais verdadeiro. O mesmo acontece com o pessoal da Sorbona. Que quer que façam jovens bacharéis a quem a natureza fala mais alto e mais firme do que a teologia? Posso-lhe jurar que, guardadas as proporções, meus confrades e eu temos tratado mais jovens sacerdotes do que jovens oficiais.
O Homem dos Quarenta Escudos: – Não haveria algum meio de extirpar esse mal que assola a Europa? Já se tratou de enfraquecer o veneno de uma vêrole; nada se poderá tentar contra a outra?
O Cirurgião: – Só haverá um meio: é que todos os príncipes da Europa se coligassem como nos tempos de Godofredo de Bulhão. Certamente uma cruzada contra a sífilis seria muito mais razoável do que aquelas que outrora tão infelizmente se fizeram contra Saladino, Melecsala e os albigenses. Melhor seria nos combinarmos para expulsar o inimigo comum do gênero humano do que andarmos continuamente a espiar o momento azado para devastar a terra e cobrir os campos de cadáveres, com o fim de arrebatar ao vizinho duas ou três cidades e algumas aldeias. Falo contra os meus próprios interesses, pois a guerra e a sífilis me fazem viver; mas cumpre ser homem antes de ser cirurgião-mor.

Era assim que o homem dos quarenta escudos ia formando, como se diz, o espírito e o coração. Não só herdou das duas primas, que morreram em seis meses, mas ainda lhe coube a sucessão de um parente afastado, que fora sub-arrendatário dos hospitais do exército, e que engordara bastante pondo em dieta os soldados feridos. Esse homem jamais quisera casar-se; possuía um belo serralho. Não reconheceu nenhum de seus parentes, viveu na crapulagem, e morreu de indigestão em Paris. Era, como se vê, um homem muito útil ao Estado.
O nosso novo filósofo viu-se obrigado a ir a Paris receber a herança do parente. Primeiro os rendeiros do domínio lha disputaram. Teve a felicidade de ganhar o processo e a generosidade de dar aos pobres do cantão, que não haviam conseguido o seu quinhão de quarenta escudos de renda, uma parte dos despojos do ricaço. Depois do que, pôs-se a satisfazer a sua grande ambição de formar uma biblioteca.
Lia todas as manhãs, fazia excertos, e à noite consultava os sábios para saber: em que língua falara a serpente à nossa boa mãe; se a alma está localizada no corpo caloso ou na glândula pineal; se S. Pedro permanecera vinte e cinco anos em Roma; que diferença específica existe entre um trono e uma dominação; e por que motivo os negros têm nariz chato. Propôs-me, aliás, jamais governar o Estado e nunca escrever brochuras contra as peças novas. Chamavam-no o senhor André, que era o seu nome de batismo. Aqueles que o conheceram fazem justiça à sua modéstia e às suas qualidades, tanto adquiridas como naturais. Construiu uma casa confortável no seu antigo domínio de quatro jeiras. Seu filho alcançará em breve a idade escolar, mas ele quer mandá-lo para o colégio de Harcourt e não para o de Mazarino, devido ao professor Coger, que faz libelos, e porque um professor de colégio não os deve fazer.
Madame André deu-lhe uma filha bastante bonita, que ele pretende casar com um conselheiro, desde que esse magistrado não tenha a doença que o cirurgião-mor tenciona extirpar da Europa cristã.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Voltaire - O Homem dos Quarenta Escudos

sábado, 22 de maio de 2010

A Lição Clínica do Doutor Charcot

Uma teoria, por mais excelente que seja, não coíbe a existência. Jean M. Charcot

Jean Martin Charcot, que com justiça é considerado o pai da neurologia moderna, lecionou na Universidade de Paris de 1860 a 1893. Jovem de sensibilidade artística, teria sido pintor ou arquiteto, mas como também gostava de ler, o pai encaminhou-o à medicina. O grande clínico marcou sua carreira com uma série de brilhantes trabalhos, descreveu magistralmente a histeria, a atrofia muscular progressiva, esclerose múltipla, paralisia agitante e esclerose lateral amiotrófica (esta última, em sua homenagem, é denominada “doença de Charcot”). O vienense Pierre Charroux imortalizou uma aula sobre histeria ministrada pelo Dr. Charcot no Hospital Salpêtriére:

Une leçon clinique à la Salpêtrière, Pierre-André Brouillet Charroux,1887. Óleo sobre tela, Museu de Nice.

A paciente, em opistótono, chama-se Blanche Wittman. Provavelmente tratava-se de um caso grave, deduzimos isso ao observar a maca da paciente denunciando sua incapacidade de deambulação. Amparando com o braço esquerdo a paciente espástica, encontramos o Dr. Babinski (o do sinal de Babinski), à época seu aluno.



É oportuno destacar que quando Charcot chegou pra trabalhar em Salpêtriere, em 1862, acreditava-se que a doença histeria (do grego, hystéra = útero) era uma desordem do sistema nervoso de fundo emocional, causada por alterações nos fluidos uterinos.Esse termo vinha de longe. Designava, desde a antiguidade, uma desordem paroxística semelhante à epilepsia (a ala que Charcot chefiava era o Setor de Epilepsia Simples), originada no útero, que era considerado um ser autônomo:
“No meio da bacia, encontra-se o útero, órgão sexual que se diria dotado de vida própria. Move-se espontaneamente [...] dirigindo-se para o lado direito, para o esquerdo. Gosta dos odores agradáveis e deles se aproxima” Hipócrates
“Platão comparou o útero a um animal ávido de procriação que, frustrado em seu desejo, causa desordens em todo o corpo”. Galeno

A histeria seria o resultado do “sufocamento” do útero, manifestando-se por dificuldade de respirar, palpitações, perda de voz, ansiedade e confusão. Lembremos que na renascença esses sintomas eram interpretados como evidência de bruxaria ou possessão, e as vítimas eram submetidas à inquisição.

“São submetidas a torturas atrozes e abomináveis, até confessarem” Cornelius Agrippa

Tudo coincide num ponto: histeria é doença de mulher. De início, Charcot retorna à teoria uterina e fala de uma “hipersensibilidade ovariana” nas histéricas. Com isso, não são poucos os ovários extraídos para curar a doença. Depois, experimenta com mentais,com a hipnose. Tropeça sempre com um problema: neurologista, ele raciocina em termos de lesões do sistema nervoso – que não existem na histeria. Finalmente, chega a idéia da histeria traumática. À época, tornavam-se comuns os acidentes, sobretudo em estradas de ferro. As vítimas frequentemente ficavam com sintomas histéricos; por exemplo, paralisias, pelas quais pediam indenização. Mediante hipnose, Charcot produz sintomas semelhantes, mostrando assim que não se trata de lesão orgânica. O pai da neurologia também foi professor de seu amigo Sigmund Freud, que aprendeu com ele a hipnotizar seus pacientes.

Hospital Salpêtrière, Paris.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Pleurotomia na Literatura Alemã

"A camaradagem entre o médico e o enfermo merece plena aprovação, e pode-se admitir que só quem sente a dor alheia é capaz de ser salvador e guia dos que sofrem também." Thomas Mann

Riquíssima em terminações nervosas e sensitivas para a dor, a pleura parietal recebe a inervação através dos nervos frênico, intercostais e ramos do plexo braquial. É comum os pacientes queixarem-se de dor durante procedimentos em que é necessária a pleurotomia, sobretudo quando a anestesia local, quase sempre insuficiente para evitar o incômodo, não é feita de modo adequado. Thomas Mann, em sua Der Zauberberg, descreve com maestria a técnica de drenagem pleural e os impactos que a dor desta causou em seu personagem:

[...] Mas a anestesia local não penetra fundo, meus senhores; apenas a carne envolvente. Quando cortam através dela, sente-se, na verdade, apenas uma espécie de pressão ou de pisadura.. Eu estava deitado, com o rosto coberto para não ver nada. O assistente segurava-me da direita, e a Superiora, da esquerda. Era como se me apertassem e comprimissem, mas tratava-se somente da carne que abriam e retiravam por meio de pinças. Então ouvi o Dr. Behrens dizer: “Agora!”, e nesse instante, cavalheiros, começou a apalpar a pleura com um instrumento rombudo... Deve ser assim para que não a fure antes do tempo... Apalpam-na em busca do lugar apropriado para fazer o furo e introduzir o gás... Enquanto ele fazia isso, enquanto passeavam o instrumento por toda a extensão da minha pleura – oh, meus senhores! –, eu não pude mais; tive uma sensação totalmente indescritível. A pleura, cavalheiros, é coisa que não deve ser tocada; não é direito que a toquem, ela não o admite, é tabu, está revestida de carne, isolada e inatingível de uma vez por todas! E agora a haviam posto a descoberto, e o conselheiro apalpava-a. Senhores, comecei a enjoar. Horrível, pavoroso, meus senhores! Eu nunca teria pensado que pudesse existir sensação tão medonha, tão miserável, tão abjeta, nesta terra e em parte alguma do mundo, fora do inferno. Desmaiei. Tive três síncopes ao mesmo tempo, uma verde, uma parda e uma violeta. Além disso penetrava um fedor através do desmaio. O choque pleural atacou-me o olfato, meus senhores. Aquilo fedia loucamente a hidrogênio sulfurado, assim como deve ser o cheiro do inferno. Com tudo isso notei que me ria, enquanto perdia os sentidos; mas não era como se ri uma criatura humana, não! Era o riso mais nojento e mais indecente que já ouvi em toda a minha vida. Pois o apalpamento da pleura, senhores, produz as cócegas mais infames, mais exageradas, mais desumanas. Nisso mesmo consiste aquela maldita e vergonhosa tortura. É o que se chama o choque pleural, que Deus queira que os senhores nunca cheguem a experimentar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
MANN, Thomas; A Montanha Mágica, 1924

domingo, 16 de maio de 2010

A Idéia do Tímido Laennec: O Observador de Tórax

"Consultou-me uma jovem mulher que apresentava sintomas de doença cardíaca. A percussão e palpação seriam de pouca serventia, dada a sua obesidade. Lembrei-me então de um simples e bem conhecido fenômeno acústico: aplicando-se o ouvido a uma extremidade de uma peça de madeira ouve-se distintamente um alfinete arranhando a outra extremidade. Tive uma idéia: enrolei uma folha de papel numa espécie de cilindro, apliquei uma extremidade à região do coração e, surpreso e satisfeito, constatei que poderia assim ouvir os sons cardíacos muito melhor do que se tivesse aplicado diretamente o ouvido ao tórax.” René Théophile Hyacinthe Laennec - 1816

O instrumento descoberto por Laennec em 1816 devido à sua excessiva timidez, denominado por ele mesmo de estetoscópio (stethos, “tórax”, e skopos, “observador”) provar-se-ia revolucionário.

Robert Thom A. (1915 - 1979), pintor e historiador americano que se especializou em retratar cenas históricas.

Laennec foi o primeiro a criar um sistema diagnóstico completo para problemas do pulmão e coração. Seu livro, intitulado Traité de l’auscultation mediáte et des maladies des poumons et du coeur, é considerado o maior clássico das doenças pulmonares em toda a história da medicina.

Artigo francês publicado no ano da descoberta de Laennec "O Estetoscópio de Laennec: Uma Brincadeira de Criança" Conta-se que um dia, ao atravessar o pátio do Louvre, Laennec observou a brincadeira de dois garotos; um deles encostava o ouvido em uma das extremidades de uma viga de madeira, tentando ouvir o som produzido pelo outro garoto, que batia na extremidade oposta com um prego. Foi a partir desse incidente, lembrado por Laennec no momento em que atendia a uma jovem senhora, que surgiu a idéia de enrolar uma cartolina deixando uma extremidade mais larga que a outra; colocou então a extremidade mais estreita em seu ouvido e a mais larga, no quinto espaço intercostal esquerdo da paciente. Notou que ouviu os batimentos do coração da moça mais ampliados do que se tivesse encostado diretamente na região precordial, mais tarde, substituiu a cartolina por um cilindro de madeira. Estava descoberto o estetoscópio.


O estetoscópio original de Laennec, um tubo de madeira com 23 cm de comprimento e 4cm de diâmetro, constituído de duas partes, que se encaixavam uma na outra.

O famoso clínico francês tratou tantos pacientes tuberculosos que acabou se infectando. Exagero ou não, foi o estetoscópio que revelou aos médicos as lesões da tuberculose pulmonar que viriam a matar Laennec.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FOUCAULT, Michel. “Naissance de La Clinique”. Paris, PUF, 1948
ALTMAN, Lawrence K. Who goes first? “The story of self-experimentation in medicine”. New York, Random House, 1985
SCLIAR, Moacyr, "A Paixão Transformada", Companhia das letras, São Paulo, 1996
BEZERRA, Armando "Admirável mundo médico: a arte na história da medicina" - Brasília, 2002
MARGOTTA, Roberto "História Ilustrada da Medicina" Editora Manole - São Paulo, 1998

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Desenhos Anatômicos do Gênio Da Vinci

Quem afirma que é melhor assistir a uma apresentação de dissecação a ver estes desenhos, teria razão, se fosse possível observar todos os detalhes mostrados nos desenhos em um único corpo e numa única aula, o que, sem dúvida, é inverossímil; ao passo que eu já dissequei mais de dez corpos humanos, destruindo vários membros e removendo as minúsculas partículas de carne que circundam as veias, sem causar nenhuma efusão de sangue além do imperceptível derrame das veias capilares. E como um único cadáver não fosse suficiente, houve a necessidade de prosseguir por fases, usando outros até a satisfação completa de meus conhecimentos; repetindo o processo, aliás, duas vezes, para compreender as diferenças. E, embora você devesse adorar tais coisas, é possível que se sinta repugnado ou que não tenha a coragem necessária para passar a noite ao lado de tantos cadáveres. Ainda que não tenha medo, é igualmente possível que não seja habilidoso no desenho, qualidade essencial para as representações; ou ainda que possua tais habilidades, talvez não conheça as regras da perspectiva; ou se conhecê-las, talvez não compreenda os métodos de demonstração geométrica e de estimativa de força muscular; ou, finalmente, é possível que seu forte não seja a paciência, e que não trabalhe com afinco”. Leonardo Da Vinci

Gênio em pintura e desenho, arquitetura e engenharia, o cientista e inventor Leonardo revelou-se também um grande anatomista. Artista, levando a perfeição ao limite da obsessão, estudou profundamente as estruturas do corpo humano.

A julgar pelas ilustrações e notas em seus trabalhos, parece que pretendia escrever um grande tratado sobre anatomia em colaboração com Marco Antônio della Torre, de Verona. Leonardo analisou o sistema muscular e reconheceu a ação específica de cada músculo, além de estudar as válvulas das veias. Ele desenhou as artérias coronárias e seu curso, mas não acertou a localização do septo que divide as partes esquerda e direita do coração (Se tivesse acertado, teria talvez descoberto a circulação sanguínea).

Pesquisou a estrutura dos ossos, representou o tórax, a bacia, a coluna vertebral e o crânio, que desenhou em planos ainda utilizados em atlas anatômicos.Descobriu a glândula tireóide, bem como a existência de várias outras. Analisando o sistema urogenital, fez anotações impressionantes sobre a placenta, o cordão umbilical e as vias de nutrição fetal. Examinou ainda o sistema nervoso central e periférico, bem como os órgãos dos sentidos.

Fig.1: As proporções do corpo humano segundo Vitruvius (1492)

Uma das gravuras mais conhecidas de Leonardo, é uma homenagem ao arquiteto romano Marcos Vitruvius, autor de um livro que afirma que um homem com as pernas e os braços abertos caberia perfeitamente dentro de um quadrado e de um círculo, figuras geométricas perfeitas, e que o centro do corpo é o umbigo. Da Vinci desenhou as dimensões do homem no Universo (círculo). A obra tornou-se o mais famoso desenho de proporções do corpo humano no mundo.

Fig.2: O Coito (1492):

Fig.3: Estudo de um ventre: Gravura demonstrando a posição do feto no útero - 1510

A placenta mostrada nesse desenho não é de mulher, mas sim de vaca. Segundo algumas fontes, Leonardo nunca dissecou um corpo humano feminino.

Outros desenhos anatômicos feitos por Leonardo:



Fig.4: Vista do crânio (1489)



Fig.5: Estudo da fisiologia do cérebro (1508)



Fig.6: Estudo do ombro e pescoço (1510)



Fig.7: Estudo do coração (1508)


Fig.8: Os principais orgãos do sistema urogenital feminino (1507)



Fig.9: Estudos do esqueleto humano (1507)

Fig.10: Estudos do braço mostrando os movimentos feito pelo bíceps (1510)


Fig.11: Estudo de braços e mãos (1474)


"Que o teu trabalho seja perfeito para que, mesmo depois da tua morte, ele permaneça." Leonardo da Vinci.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
MARGOTTA, Roberto "História Ilustrada da Medicina" Editora Manole - São Paulo, 1998
SOTTANI, F.; CASTELLI, G. Catálogo da Mostra Leonardo da Vinci: Disegni Anatomici dalla Biblioteca Reale di Windsor. Firenze, Palazzo Vecchio, mag./set. 1979.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Corcunda Quasímodo em “Notre Dame de Paris”

Em O Corcunda de Notre Dame, como é popularmente conhecido o livro Notre Dame de Paris (1831), de autoria do romancista francês Victor Hugo, encontramos no capítulo V do livro primeiro o seguinte trecho:

Não tentaremos dar ao leitor uma idéia desse nariz tetraédrico, dessa boca recurva como uma ferradura; desse pequenino olho esquerdo obstruído por uma sobrancelha ruiva e áspera como tojo, enquanto o olho direito desaparecia completamente sob a enorme verruga, dessa dentadura desordenada, aqui e além brechada, como as ameias de um forte; desse lábio caloso, por sobre o qual avança um desses dentes como uma presa de elefante; desse queixo fendido; e principalmente da fisionomia diluída sobre tudo isto; desse misto de malícia, de estranheza ou de mágoa [...] Uma cabeça gigantesca, erriçada de uma cabeleira ruiva; entre os dois ombros uma bossa enorme que, com o movimento, fazia vulto por diante; um sistema de coxas e pernas tão singularmente descambadas que apenas se podiam aproximar pelos joelhos e que, vistas de frente, pareciam duas lâminas recurvas de foice, unidas pelo cabo; pés largos, mãos monstruosas [...] Dir-se-ia um gigante despedaçado e inabilmente recomposto.[...] Quasímodo não respondeu; Era, com efeito, surdo. (Victor Hugo, 1831).

Observando a descrição detalhada que o autor faz a respeito de Quasímodo, é evidente supor que a grave deformidade física do personagem central deve-se as manifestações da sífilis congênita tardia:

Nariz Sifilítico ou em Sela“Nariz tetraédrico”
Microftalmia - “ pequenino olho esquerdo”
Ptose palpebral - “o olho direito desaparecia completamente sob a enorme verruga”
Fronte olímpica“Uma cabeça gigantesca”
Dentes de Hutchinson“dentadura desordenada, aqui e além brechada”
Cifose “entre os dois ombros uma bossa enorme que, com o movimento, fazia vulto por diante”
Genu Valgum“Um sistema de coxas e pernas tão singularmente descambadas que apenas se podiam aproximar pelos joelhos e que, vistas de frente, pareciam duas lâminas recurvas de foice, unidas pelo cabo.”
Acromegalia “Pés largos, mãos monstruosas”
Surdez neurológica - “Era, com efeito, surdo.”

REFERÊNCIAS:
1.HUGO, Victor "Nossa Senhora de Paris", EDIGRAF, São Paulo, 1958.
2,SARACENI, Valéria "A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita",2005
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domingo, 9 de maio de 2010

O "Grande Mal" que deu Luz a "O Idiota", de Dostoiévski.

Sim, eu tenho a doença das quedas, a qual não é causa de vergonha para ninguém. E a doença das quedas não impede a vida. F.M. Dostoiévski

O escritor russo Fíodor M. Dostoiévski (1821-1881) foi vítima de uma epilepsia – possivelmente com foco epileptogênico no lobo temporal – que influenciou consideravelmente sua atividade artística. Encontramos em sua vasta obra três personagens portadores da síndrome: Smerdiakov, de Os Irmãos Karamázov; Kirilov, de Os Demônios e o protagonista de O Idiota, príncipe Míchkin.

Há relatos de que o autor apresentou, pelo menos, 500 crises epilépticas generalizadas (Grande Mal) entre os 25 e 60 anos de idade, quando veio a falecer por hemoptise decorrente de Tuberculose.

O romance O Idiota começou a ser produzido em setembro de 1867, em Genebra, Suíça, e fora concluído em meados de 1869, em Florença, Itália. Nesse período, o estado de saúde do autor era bem precário. Repetidos ataques epilépticos, mais fortes do que nunca, deixavam-no em lamentável situação de irritabilidade nervosa. A hiperestesia torturava-o, prejudicando-lhe a atividade intelectual. Em carta dessa época, Dostoiévski escreve: Pedem-me acabamento artístico, uma genuína expressão poética, sem o esforço tornar-se visível; lembram-me o exemplo de Tolstói e Gontcharov, mas não sabem as condições em que estou trabalhando.

Dostoiévski acreditava que um meio de conviver com uma doença crônica incurável seria usá-la como fonte de inspiração visando transformá-la por seu gênio artístico. O autor encontrou uma forma de provar isso transferindo poeticamente as manifestações de sua moléstia para um de seus grandes heróis, o príncipe Míchkin:

ESCOTOMA CINTILANTE COMO AURA:
...Lembrou-se, por exemplo, que sempre um minuto antes do ataque epiléptico, (quando lhe vinham ao estar acordado) lhe iluminava o cerébro, em meio à tristeza, ao abatimento e à treva espiritual, um jorro de luz e logo, com extraordinário ímpeto, todas as suas forças vitais se punham a trabalhar em altíssima tensão. A sensação de vivencia, a consciência do eu decuplicavam naquele momento, que era como um relâmpago de fulguração. O seu espírito e o seu coração se inundavam com uma extraordinária luz. Tal momento, tal relâmpago, que era apenas o prelúdio desse único segundo (que não era mais que um segundo) com que o ataque começava. Esse segundo era naturalmente insuportável.
MÚLTIPLOS ESCOTOMAS CINTILANTES NA AURA; O GRITO EPILÉPTICO (provocado quando, na fase de contração tônica, o ar é expulso através da glote fechada) E A CRISE GENERALIZADA:
... Apenas se recordou de que pensou ter gritado: "Parfion, mas é inacreditável!" e nisto alguma coisa pareceu girar em partículas diante dele! Toda a sua alma se inundou de intensa claridade interior. Duraria esse momento, o que? Meio segundo, talvez; mas ainda assim, clara e conscientemente se lembrou do começo, do primeiro som do pavoroso grito que rompeu do seu peito e que não pode evitar de modo algum. Depois a sua consciência instantaneamente se extinguiu e trevas completas se seguiram. Era um ataque epiléptico, o primeiro que tinha depois de uma longa pausa. É bem conhecido que o ataque epiléptico sobrevém inesperadamente. Nesse momento, o rosto se deforma horrivelmente, de modo particular os olhos. Não só o corpo inteiro como os traços do rosto trabalham com sacudidelas convulsivas e contorções.Um terrível e indescritível grito, que não se assemelha a coisa alguma é emitido pela vítima. Nesse grito tudo o quanto é humano fica obliterado; é impossível, ou dificílimo, ao observador, imaginar, ou admitir, que seja um homem quem o defere. É como se outro ser estivesse gritando dentro do homem. A cena de um homem acometido de ataque epiléptico enche os que testemunham de verdadeiro e inexprimível horror, tanto no acesso como no horror resultante havendo um elemento de mistério.
ESTADO PÓS-ICTAL (período logo após a crise marcado por disfunção da área cerebral afetada):
...Eu acabava de ter uma série violenta e lancinante de ataques da minha doença. Sempre que eu piorava e os acessos vinham com mais frequência, eu caía depois numa completa estupefação. Perdia a memória e, embora o meu cérebro trabalhasse, parecia que a sequência lógica das minhas idéias se tinham quebrado. Era incapaz de ligar mais do que dois ou três pensamentos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
W.Kunze - O "Idiota" de Dostoiévski (na revista "Die-Drei", junho, 1924)
DOSTOIÉVSKI, Fíodor "O Idiota" Editora José Olympio, 1951 - Rio de Janeiro
Lovell J. Epilepsy and art of F.M. Dostoievski. Aust Farm Physician 26 (1) 62-63, 1997


sábado, 8 de maio de 2010

O Anatomista Michelangelo Revelado no Teto da Capela Sistina

"Em nenhum lugar Deus se mostra mais a mim em sua graça do que em alguma bela forma humana; e só isso amo, pois nisso ele se espelha." Trecho de soneto de Michelangelo

A CRIAÇÃO DE ADÃO - O criador está dentro de um corte sagital do crânio. Podem ser observados a calota craniana com as três camadas - Osso compacto interno, externo e díploe (a), o lobo temporal (b), a hipófise (c) e o tronco cerebral (d).

A ligação de Michelangelo com a medicina foi reflexo da efervescência cultural e científica do Renascimento. Antes de fazer o esboço das figuras que iria esculpir, Michelangelo empreendia uma investigação minuciosa, analisando corpos e fazendo moldes em cera ou madeira das estruturas. As primeiras sessões de dissecação de que participou, ainda adolescente, aconteceram por iniciativa de Elia Del Medigo, médico-filósofo que frequentava o palácio de Lorenzo de Medici.

Segundo um artigo publicado em 1990 pelo médico norte-americano Frank Lynn Meshberger no Journal of the American Medical Association, há uma interpretação, baseada na neuroanatomia para A criação de Adão: o contorno que se inicia no quadril do anjo em frente ao criador e continua ao longo dos ombros de Deus corresponde ao sulcus cinguli (fenda que separa os lobos parietal e temporal). A encharpe verde pendente corresponde à artéria vertebral em seu curso ascendente, curvando-se em torno do processo articular e fazendo contato com a superfície inferior da ponte cerebral, representada pelas costas do anjo que se estende lateralmente abaixo da figura do criador. O quadril e a perna esquerda do anjo corresponde ao cordão espinal. a haste e a hipófise são representadas pela perna e pelo pé do anjo na base da figura.

Nesse mesmo trabalho, Meshberger chama a atenção, ainda, para um detalhe sutil "... os pés de Deus e de adão possuem cinco dedos; no entanto, o do anjo, que representa a haste e a hipófise, possui um pé bífido. A perna direita desse mesmo anjo está flexionada no quadril e no joelho. A coxa representa o nervo óptico; o joelho, o quiasma óptico transeccionado; e a perna, o aparelho óptico."

Meshberger concluía o estudo afirmando que a intenção de Michelangelo seria a de representar Deus fornecendo a Adão o intelecto.

LEIA MAIS:

Michelangelo: O Pecado Original e a Expulsão do Paraíso - Anatomia da Região Cervical

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MESHBERGER, Frank Lynn. "An interpretation of Michelangelo's creation of Adam based on neuroanatomy, Journal of the American Medical Association, vol.264, n-14, Blackwell publishing, 1990
BARRETO, Gilson "A Arte Secreta de Michelangelo - Uma Lição de Anatomia na Capela Sistina. São Paulo: Arx, 2004