sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Análise médica da enigmática Mona Lisa / Leonardo da Vinci

O mais conhecido e analisado quadro do mundo não poderia fugir do olhar clínico dos curiosos médicos pesquisadores.

La Gioconda (Monna Lisa). Leonardo da Vinci. 1503-1507. Óleo sobre madeira de álamo. 77 × 53 cm. Museu do Louvre.

O professor de anatomia patológica Vito Franco, da Universidade de Palermo, aplicou sua perícia médica para o estudo de famosas obras de arte da Renascença. Fora realizado um exame minucioso na famosa pintura Mona Lisa de Leonardo da Vinci (1452-1519), no Museu do Louvre, em Paris. O médico concluiu que a mulher que os italianos chamam de "La Gioconda" sofria de xantelasma, o acúmulo de colesterol sob a pele.

Vêem-se sinais claros da doença ao redor do olho esquerdo da Mona Lisa, bem como provas de um lipoma subcutâneo em sua mão direita. Tais lesões de pele são comuns nos adultos jovens, nos idosos e em pessoas que sofrem de dislipidemia primária, ou secundária devido à longa historia de diabetes, hipercolesterolemia, icterícia, síndrome nefrótica, ou mixedema. Estes achados podem ser indicativos de hiperlipidemia, um importante fator de risco para a doença isquêmica do coração na meia idade. Franco apresentou suas descobertas em um congresso europeu sobre a patologia humana, em Florença.


A modelo da pintura, de acordo com Vasari (3), é Madonna Lisa Maria di Gherardini, nascida em Florença em 1479. Em 1495, na idade de 16 anos, casou-se com o marquês Francesco di Bartolomeo di Zanobi del Giocondo, um italiano que fora casado duas vezes e possuía 19 anos a mais que ela. Seu nome deu o título empregado à pintura na Itália e França: La Gioconda.

Supõe-se que Francesco, um dos mais nobres cidadãos de Florença, encomendou um retrato de sua terceira esposa a Leonardo. O artista começou a confeccionar esta pintura em 1503, momento em que a jovem Lisa tinha 24 anos, e trabalhou no retrato nos próximos quatro anos. Quando Leonardo deixou Florença em 1507, não vendeu o quadro para a pessoa que o encomendou, preferindo manter a obra pra si mesmo.

Até hoje nenhuma prova definitiva do identitário da modelo foram fornecidas. Hipóteses alternativas incluem Isabella d'Este, uma amante de Giuliano di Medici ou do próprio Leonardo. Também tem sido sugerido que a mulher retratada por Leonardo representa a mulher ideal, ou um garoto adolescente travestido de mulher, e talvez, até mesmo um possível autorretrato.

A ocorrência de xantelasma associado a lipoma numa mulher com idade entre 25 e 30 anos é característico de dislipidemia. Os achados no retrato feito por Leonardo não são, possivelmente, apenas mera coincidência. Mona Lisa morreu em 1516 na idade de 37 anos. A causa da morte, no entanto, não é sabida, mas pode estar relacionada a um distúrbio lipídico.

Podemos nos perguntar por que Leonardo da Vinci, o mais perfeccionista artista do renascimento italiano, que não só era um pintor, mas também um escultor, arquiteto e engenheiro, não corrigiu as alterações da pele em sua modelo; lembremos que Leonardo, assim como Michelangelo e outros grandes gênios da arte, estudou detalhadamente a anatomia, bem como diversas doenças. Eles representavam os seres humanos com todas as suas falhas, transformando a realidade em beleza.

As artes visuais são indubitavelmente uma importante ferramenta para o aprendizado da medicina. Casos históricos de diversas doenças têm sido observados em pinturas medievais, insinuando que essas afecções não são modernas. O retrato de Mona Lisa, de Leonardo, é mais um exemplo, sugerindo uma doença metabólica lipídica em uma mulher jovem no século XVI, muito antes de ser descrito pela primeira vez na literatura por Addison e Gull em 1851.

Curiosidade: O misterioso sorriso de Mona Lisa também foi vítima de um detalhado estudo médico. Adour(3) propôs em 1989 que o sorriso de Mona Lisa é um exemplo possível de contratura muscular facial que se desenvolve após a paralisia de Bell, quando o nervo facial sofre degeneração Walleriana parcial e regenera-se. Borkowski(4) sugere que o sorriso se assemelha a uma expressão comum em pessoas que perderam seus dentes da frente.

REFERÊNCIAS:
1.Dequeker J, Muls E, Leenders K. Xanthelasma and lipoma in Leonardo da Vinci’s Mona Lisa. Isr Med Assoc J 2004; 6:505–6
2.Owen, Richard. Behind the smile Mona Lisa may have been suffering from high cholesterol. The Times; jan, 2010.
3.Adour, KK.Mona Lisa syndrome: solving the enigma of the Gioconda smile. Ann Otol Rhinol Laryngol. 1989 Mar;98(3):196-9.
4.Borkowski, JE. Mona Lisa: The Enigma of the Smile. Journal of Forensic Sciences. 37 no.6 (November 1992): 1706-1711.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Polidactilia na arte / "Autorretrato com sete dedos" de Marc Chagall

Dedos supranumerários são comuns. A polidactilia é uma anomalia genética herdada como um traço dominante. Frequentemente, os dedos extras são inúteis, pois estão incompletamente formados e não apresentam apropriado desenvolvimento muscular.

Encontramos um excelente exemplo de polidactilia no óleo sobre tela Autorretrato com sete dedos, do pintor russo Marc Chagall (1887-1985). Apesar de não possuir a malformação, o artista pinta-se com dois excedentes dedos em sua mão esquerda:

Marc Chagall. Autorretrato com sete dedos (1913). Stedelijk Museum, Amsterdão.

O historiador de arte Sandor Kuthy sugere que a anomalia física na pintura fora usada para indicar a totalidade da energia utilizada na conclusão de uma tarefa. A origem do pintor é judaica e os judeus concedem ao número sete um profundo significado, figurando fortemente o conceito de criação. Deus criou o mundo em sete dias e, segundo a cabala, criou Ele também sete universos paralelos ao nosso físico. Os três pais e quatro mães na Bíblia deram à luz a nação judaica. Com seus sete dedos, Chagall cria novos e belos mundos através da pintura cubista em tela.

REFERÊNCIAS:
1.Clifford, Rose. The Neurobiology of Painting, Volume 74: International Review of Neurobiology. APR.2006.
2.Moore, Keith, L. Embriologia Clínica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

"Namoros com a Medicina" de Mário de Andrade

Namoros com a medicina revela a afinidade de Mário de Andrade (1893- 1945) com a profissão médica. O livro reúne dois ensaios, o primeiro, Terapêutica musical, tem a ver com musicologia; o outro, A medicina dos excretos, relaciona-se com o folclore. Ambos surpreendem pela originalidade e pela erudição combinadas com o incomparável estilo de Mário.
Resta explicar, rapazes, porque ligo tanto à medicina. Ninguém, ignora que uma das ... pegas infantis mais vulgarizadas no Brasil, e talvez, no mundo, é perguntarem ao rapazinho o que ele vai ser na vida. Foi o que fizeram também comigo uma vez, eu não teria 10 anos. Fiquei atrapalhado, com muita vergonha de mim, e de repente, escapei: - Vou ser médico. Positivamente eu não tinha a menor disposição pra ser médico, nem coisíssima nenhuma. Era menino, e apenas nos poucos momentos em que largava a meninice achava bonito, desejava, confesso, ser homem grande, tomar bonde, fumar, andar com dinheiro no bolso. Vou ser médico... Para que falei tamanha bobagem! Todos acharam a resposta muito certa e nunca mais se discutiu dos meus futuros. Nem eu discuti. Fiquei certo como os outros que ia ser médico no mundo, mas jamais fiz o menor esforço para dirigir. Nem os outros, seja dito em honra dos meus bons pais. E fiquei... o diabo é que nunca pude esclarecer direito o que fiquei; e sinto sempre uma hesitação danada quando, nos hotéis, enchendo a ficha de hospedagem, tropeço no “Profissão”. Pianista? Professor? Jornalista? Crítico de arte? Folclorista? Ou mais recentemente: Funcionário público? Só me arrependo de não ter ficado médico por causa dos fichários dos hotéis. No resto, não me arrependo, porque não tenho mesmo a menor vocação.
Mas aquela resposta de menino me valia a vida inteira. Me tornei médico às avessas, isto é, doente. Mais ou menos imaginário. Sou duma perfeição prelecional no descrever os sintomas das doenças. Das minhas doenças. E finalmente a medicina entorpeceu minhas leituras. Li bastante sobre os bastidores dela, e principalmente a sua história. E quando encontro, em outras leituras, qualquer referência sobre medicina, ficho. Fichava, aliás. Por que ficava? Fichava sem saber por que fichava. Fichava por causa daquela resposta de menino e porque os instintos viciados, ignorantes das proporções e dos anos, continuam imaginando que ainda serei médico um dia.
No prefácio acima, vê-se claramente que o autor atribui, inicialmente, esse “namoro” ao prestígio da medicina, que era particularmente valorizada em 1939, época em que a profissão tinha a sua melhor imagem na história do Brasil. Certamente era preferível, num hotel, assinar “Dr. Mário” que simplesmente “Mário”.

Também as suas próprias doenças, bem como a curiosidade intelectual, o impelem ao ofício de curar. Fica evidente, na última frase, que “os instintos” continuaram guardando uma paixão platônica pela medicina.

Em Terapia musical, ele mostra a potencialidade da meloterapia na correspondência entre ritmos musicais e ritmos orgânicos; cita Celso e Herófilo, Platão, Pinel e Charcot. Conta que em meados do século XVIII o dr. Gordon y Arosta organizou uma farmacopéia de instrumentos, recomendando o violino para a melancolia e hipocondria, a flauta para tuberculose, a harpa para histeria, o trombone contra a surdez e o oboé como tônico geral. O autor doutrina: uma organização social que empregasse a terapêutica musical à coletividade não é uma utopia, porque isso já existe, só faltando sistematização.

Mais interessante, embora com menos prescrições, é A medicina dos excretos. Aqui, Bach dá lugar às fezes e à urina, utilizados com fins terapêuticos. Mário mostra a simbologia que existe por trás de tais procedimentos e crenças, por exemplo, assim como o esterco fertiliza a terra, ele melhora o organismo. Os excretos mantém pois uma noção de princípio da vida, de vitalização, de saúde. Daí seu uso como medicamento. Asma, diz, em Pernambuco, se cura com uma colher de bosta de vaca.

O segundo ensaio, que muitos consideram não tão agradável quanto o primeiro, é riquíssimo do ponto de vista antropológico.

REFERÊNCIAS:
1.Andrade, M. Namoros com a medicina – I. Terapêutica musical – II. A medicina dos Excretos. Porto Alegre: Livraria do Globo; 1939.
2.SCLIAR, Moacyr, "A Paixão Transformada", Companhia das letras, São Paulo, 1996


domingo, 13 de fevereiro de 2011

Síndrome de Prader Willi em pinturas do século XVII

Os quadros expostos adiante foram pintados pelo grande retratista espanhol Juan Carreño de Miranda, amigo e discípulo de Velázquez e um dos artistas mais estimados pelo rei Carlos II, de Espanha. Em reconhecimento da elegância de sua pintura, Miranda foi convidado a registrar pictoricamente os personagens da corte espanhola, sendo mais tarde considerado o pintor barroco mais representativo de sua época.

A monstra (1680). Juan Carreño de Miranda (1614-1685). Óleo sobre tela, 165 x 107 cm. Museu do Prado (Madri).

A monstra desnuda (1680). Juan Carreño de Miranda(1614 – 1685). Óleo sobre tela, 165 cm por 108 cm. Museu do Prado (Madri)

Estas pinturas, executadas a pedido do próprio rei, retratam Eugenia Martínez VallejoEm 1680, a fim de atender aos caprichos e às excentricidades da família real, Eugenia foi convidada a morar no palácio. À época, a pequena possuía aproximadamente 6 anos de idade.

A menina, hiperobesa, foi uma das muitas pessoas com defeitos físicos ou mentais responsáveis pelo divertimento régio. Por conta de sua aparência, ficou conhecida como "a gorda", ou "a monstra". Era sabido em toda a corte que com apenas um ano de idade Eugenia já pesava 25 quilos.

Médicos que estudaram detalhadamente o “caso Eugenia” aventaram a hipótese de haver sido ela acometida da síndrome de Prader-Willi (SPW). De origem genética, descrita em 1956 por Andrea Prader, Alexis Labhart e Heinrich Willi, a síndrome ocorre devido à deleção da porção proximal do braço longo do cromossomo 15 paterno, onde há um conseqüente comprometimento hipotalâmico.

A provável doença de Eugenia, conhecida também como síndrome HHHO (hipopsiquismo, hipogonadismo, hipotonia e obesidade), tem como marcante característica uma acentuada hiperfagia que surge geralmente após os dois anos de idade, resultando numa obesidade progressiva. Outros sinais são: microgenitália, pele sem hirsutismo e sem estrias, deficiência mental leve ou moderada, baixa estatura, mãos e pés pequenos e elevação dos tubérculos do lábio superior que ladeiam o filtro. Preocupante para os obstetras é a redução da atividade fetal pela hipotonia muscular que ocorre antes do nascimento. Tal hipotonia, após o nascimento, pode causar apnéia do sono, incapacidade de sucção e retardo no deambular e falar. Os portadores da síndrome possuem também uma franca tendência a desenvolver diabetes mellitus. Sua incidência é de 1:15.000 nascimentos, sendo mais comum numa proporção de 3:1 o acometimento do sexo masculino, estes apresentando usualmente criptorquia.

Em A monstra, aludindo ao pecado da gula, Eugenia foi retratada segurando maçãs em ambas as mãos, simbolizando assim sua fome insaciável. Já na obra A monstra desnuda, onde aparece despida e decorada com uvas, sua imagem evoca um Baco infantil; aliás, a folha de parreira recobrindo sua genitália externa, lembra o Grande Baco pintado por Caravaggio.

É bem possível que as características morfológicas destes retratos representem as primeiras ilustrações da SPW. Diz-se que, ao ver essas telas no Museu do Prado (Madri), o próprio Andrea Prader reconheceu imediatamente os sinais peculiares à síndrome que descreveu dois séculos após as pinturas serem concluídas.

REFERÊNCIAS:
1.Bezerra, A.J.C; Bacelar, S. Eu tinha Prader-Willi?. Ética Revista, ano V, n.º 6, nov./dez., 2007.
2.Butler, M. Management of Prader-Willi syndrome. Prader-Willi Syndrome Association. Publisher: Springer.
3.Herrera, M; Moreno, C. Eugenia Martínez Vallejo, una invitada de peso en la corte de Carlos II; Revista Española de Obesidad • Vol. 7 • Núm. 4 • Julio-agosto 2009 (227-228)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

"A Peste" de Albert Camus

Os vendedores dos jornais da tarde anunciavam que a invasão dos ratos tinha parado. Mas Rieux encontrou o seu doente meio deitado para fora do leito, com uma das mãos no ventre e a outra em volta do pescoço, vomitando, com grandes arrancos, uma bílis rosada numa lata de lixo. Após grandes esforços, sem fôlego, o porteiro voltou a deitar-se. A temperatura era de trinta e nove e meio, os gânglios do pescoço e os membros tinham inchado, duas manchas escuras alastravam-se pelo flanco. Queixava-se agora de uma dor interna [...]Os gânglios tinham aumentado, estavam duros e fibrosos ao tato. Ao meio-dia, porém, a febre subira bruscamente a quarenta graus, o paciente delirava sem cessar e os vómitos tinham recomeçado. Os gânglios do pescoço eram dolorosos ao tato, e o doente parecia querer manter a cabeça o mais afastada possível do corpo. (Albert Camus, 1947).
O texto acima mostra apenas uma das muitas descrições semiológicas da peste bubônica que permeiam a obra prima do escritor e filósofo francês Albert Camus. O clássico intitulado "A Peste", publicado em 1947, conta a história de uma epidemia que assola Oran, pequena cidade argelina, cujos habitantes levam uma vida monótona até o flagelo dizimar considerável porcentagem de sua população.

A peste, uma zoonose causada pela bactéria Yersinia pestis, é transmitida ao ser humano pelas pulgas dos ratos-pretos. A bactéria entra através de invisíveis quebras na integridade da pele, espalhando-se para os gânglios linfáticos, onde se multiplica. Em poucos dias surge febre alta “a febre subira bruscamente a quarenta graus”, mal estar gastrintestinal “vomitando, com grandes arrancos, uma bílis rosada numa lata de lixo” e os bubos, que são gânglios linfáticos hemorrágicos e edemaciados devido à infecção “os gânglios do pescoço e os membros tinham inchado”. As hemorragias para a pele formam manchas escuras “duas manchas escuras alastravam-se pelo flanco”. As bactérias invadem a corrente sanguínea, onde se multiplicam causando a chamada peste septicêmica, que se caracteriza pelas hemorragias em vários órgãos.

O médico, Dr. Bernard Rieux, protagonista e narrador da história, não mede esforços para ver o bem estar de seus concidadãos. Ao perceber as limitações da batalha inglória que travou contra a peste, surge no Dr. Rieux um sentimento de revolta conseguinte ao sofrimento de constatar sua impotência diante dos pacientes “Tinha de ficar na margem, com as mãos vazias e o coração oprimido, sem armas e sem recursos, uma vez mais, contra esse desastre”.

Rieux luta, até o último momento, apenas com os recursos paliativos que tem em mãos. Este belo relato não esconde os momentos de dúvidas e fraquezas do médico, que aparece como um humanista que se inquieta a cada gemido de dor de seus pacientes. “Assim é que não há uma só das angústias de seus concidadãos de que não tenha compartilhado, uma só situação que não tenha também sido a sua.

Outro ponto de interesse médico discutido na obra é a posição do homem frente à situação-limite que mais o assusta: a terminalidade da vida. O autor enfatiza a mudança do comportamento das pessoas que encaram a iminência da própria morte. Com seu caráter único, Camus leva – através de deliciosas digressões filosóficas - o leitor a refletir sobre como se deve lidar com quem vislumbra seu fim.

Curiosidade: O livro fora escrito durante a Segunda Guerra Mundial. Na história de Camus, a epidemia assola Oran, como a ocupação nazista assolara a França, submetendo os habitantes a um inevitável e generalizado horror. O autor chegou a afirmar que sua obra é, de fato, uma alegoria ao nazismo e, por extensão, a todo regime totalitário.

REFERÊNCIAS:
1.Camus, Albert; “A Peste”. tradução de Valerie Rumjanek Chaves. - 18ª Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2009.
2.
Clayton Melo. “Uma leitura de A Peste, de Albert Camus”. Dez, 2006.
3.
Wikipédia: Peste negra.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O parto de Maria segundo Saramago

O texto abaixo é de autoria do Dr. Geraldo Roger Normando Jr. que, leitor deste blog, teve a consideração de avisar-me que havia um trecho em O evangelho segundo Jesus Cristo, onde o genial escritor português José Saramago descreve o nascimento de Cristo. Propus para o Dr. Roger Normando que sua análise literária fizesse parte do “A Arte da Medicina”. Ele generosamente aceitou publicá-lo aqui. Dotado de uma qualidade admirável, considero uma honra apresentar-lhes tão surpreendente e enriquecedor texto.

Geraldo Roger Normando Jr., Professor do Departamento de Cirurgia da Universidade Federal do Pará

O escritor José Saramago nasceu numa aldeiazinha portuguesa (Azinhaga, Golegã, 1922). Foi laureado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou o Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efetivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa, em razão da sua densa produção. Foi exaustivamente perseguido pela igreja católica até se mudar de Lisboa. Motivo: O evangelho segundo Jesus Cristo.

Viviam José e Maria num lugarejo chamado Nazaré, terra de pouco e de poucos, na região de Galileia, em uma casa igual a quase todas, como um cubo torto feito de tijolos e barro, pobre entre pobres.
O grifo acima é apenas uma biopsia da obra - não a mais famosa, decerto a mais farpante. Saramago descreve todos os passos de Jesus calcado num aspecto humanístico contundente, contornado por uma narrativa visceral, como se percebe, bastante distante dos evangelhos. Alguns críticos outorgam como irônico. No bojo, é um diálogo distante dos clichês clericais, pois escancara a fragilidade e vulnerabilidade de Jesus, a começar pelo nascimento, quando, sequer, cita a data natalina. Certamente a chave para harmonizar este romance com o mundo cristão fizeram Igreja, católicos e Governantes de seu País protestarem de forma voraz. Saramago se viu obrigado a partir do continente e passou a residir nas Ilhas Canárias, onde permaneceu até a sua morte (Lanzarote, 18 de Junho de 2010).

Sobre o conteúdo do romance e relacinando-o ao título do texto, o autor relata o final do período gestacional de Maria com muita resignação, percebida pelas andanças na moleira de um burro, no sentido Nazaré-Jerusalém-Belém, na companhia do carpinteiro José. O trabalho de parto se inicia em Jerusalém, pelos sinais de contração uterina contido silenciosamente no trejeito de Maria lidar com aos espasmos uterinos:

Quando já estavam a porta da cidade, Maria não pode reter um grito de dor, mas este lancinante, como se uma lança tivesse traspassado(...). E amanhã irei a Belém (diz José), ao recenseamento, e direi que estás de parto, vais lá depois se preciso, que não sei como são as leis dos romanos, e Maria respondeu, Já não sinto dores, e assim era, aquela lançada que a fizera gritar tornara-se um picar de espinho.
Com as dores de Maria abrandadas, José, agora aliviado, consegue chegar a Belém e começa a procurar um aconchego onde Maria pudesse dar a luz:

Apoquentava a perspectiva de ter de procurar um lugar no labirinto das ruas de Jerusalém em circunstancia de tanta aflição a mulher em doloroso trabalho de parto, e ele, como qualquer outro homem, apavorado a responsabilidade, mas sem o querer confessar. Chegando a Belém, pensava, que em tamanho e importância não diferirá muito de Nazaré, as coisas serão certamente mais fáceis, sabido como e que nas povoações pequenas, onde todos se conhecem, a solidariedade costuma a ser uma palavra menos vã. Se Maria já não se queixa, ou é que lhe passaram as dores, ou é que consegue aguentá-las, num caso como no outro, tanto faz, ala para Belém.

No rumo de Belém, eles vão acompanhados de uma parteira (escrava), que muito se preocupa com riscos de contaminação puerperal, num tempo ulterior aos miasmas de Semelweiss (1846) e às descobertas de Lister (1860) - em plena contra-mão da evolução histórica da infectologia. No final do parágrafo, Saramago deixa escorrer, aos mais afeitos a sua biografia, a própria origem campestre, e engendra no pensamento de quem o lê, a sensação de que o mesmo acontecera naquela aldeiazinha de Portugal.

A escrava Zelomi, que esse é o seu nome, vai à frente guiando os passos, e leva um pote com brasas para o lume, uma caiçola de barro para aquecer a água, sal para esfregar o recém-nascido, não vá apanhar alguma infecção. E como de panos vem Maria servida e a faca com que se há-de cortar o cordão umbilical trá-la José no seu alforge, se Zelomi não preferir cortá-lo com os dentes, já a criança pode nascer, afinal um estábulo serve tão bem como uma casa, e só quem nunca teve a felicidade de dormir numa manjedoura ignora que nada há no mundo que se pareça mais que um berço.

Chama-se atenção que a posição e as dores do parto de Maria eram iguais às de todas as outras mulheres:

Entrou a escrava, disse uma palavra animadora, Coragem, depois pôs-se de joelhos entre as pernas abertas de Maria, que assim têm de estar abertas as pernas das mulheres para o que entra e para o que sai, Zelomi [a escrava] já perdera o conto às crianças que vira nascer, e o padecimento desta pobre mulher é igual ao de todas as outras mulheres, Como foi determinado pelo senhor Deus quando Eva errou por desobidiência, Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos nascerão entre dores, e hoje, passados já tantos séculos, com tanta dor acumulada, Deus ainda não se dá por satisfeito e a agonia.
Já na cidade de Belém, eis o trabalho de parto, enfim, se concretizando:

Viemos de Nazaré de Galileia ao recenseamento, na hora que chegamos cresceram-lhe as dores, e agora está nascendo.

E dá-se, então o nascimento de Jesus Cristo:

O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo. Envolto em panos, repousa na manjedoura, não longe do burro, porém não há perigo de ser mordido, que ao animal prenderam-no curto. Zelomi saiu fora a enterrar as secundinas, ao tempo que José se vem aproximando. Ela espera que ele entre e deixa-se ficar, respirando a brisa fresca do anoitecer.
Posteriormente três pastores chegam ao estábulo. Maria, encostada e ainda adormecida, desperta e ouve cada um deles, ao lado da manjedoura, onde descansa o rebento (Caravaggio, 1609):

O primeiro pastor avançou e disse, Com estas minhas mãos mungi as minhas ovelhas e recolhi o leite delas. Maria, abrindo os olhos, sorriu. Adiantou-se o segundo pastor e disse, por sua vez, Com estas minhas mãos trabalhei o leite e fabriquei o queijo. Maria acenou com a cabeça e voltou a sorrir. Então, o terceiro pastor chegou-se para diante, num momento pareceu que enchia a cova com a sua grande estatura, e disse, mas não olhava nem o pai nem a mãe da criança nascida, Com estas minhas mãos amassei este pão que te trago, com o fogo que só dentro da terra há o cozi. E Maria soube quem ele era.



Nota-se a simplicidade franciscana que cobre todo ambiente. No celeiro feito de madeira, um burro e um boi (delineado atrás do burro) compõem a imagem do fundo. Há resíduos de palha pelo chão, enquanto em uma cesta da Santa Família se vê um pedaço de pão, as ferramentas de José e algumas peças de roupa.

José (vestindo vermelho, como Maria) introduz os pastores (à direita). Maria mantêm o menino em seu aconchego e, afora as duas auréolas, apenas o jovem semi desnudo, ajoelhado e com as mãos cruzadas, dão ao momento um significado especial, no meio da pobreza (Fonte:Web Gallery of art).

Imagem: A adoração dos pastores - Caravaggio - 1609


Referências:
1.Lopes, JM. Saramago - Biografia. Leya. 2010.
2.Saramago J. O Evangelho segundo Jesus Cristo. Companhia das letras, 1991

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Agnódice: A Primeira Médica Relatada na História

Agnodice ou Agnodike (IV a. C), a mais antiga mulher a ser mencionada pelos gregos, tencionava fortemente ser médica. Natural de Atenas, aonde havia proibição legal para mulheres estudarem medicina, Agnódice viajou a Roma a fim de aprender a fazer partos e, dedicando-se principalmente ao estudo da obstetrícia e da ginecologia, obteu conhecimentos básicos sobre a saúde da mulher.

Desejando voltar a seu país e nele colocar em prática os conhecimentos adquiridos em Roma, a solução para tonar-se impune foi radical: Agnódice voltou à Grécia com os cabelos curtos e travestida de homem, sentindo-se dessa forma segura para exercer a medicina.


Arte em relevo. Agnódice: médica diante do areópago. Medalhão exposto na nova Faculdade de Medicina (Paris).

Quando começou a atuar, com muito sucesso, atraiu muitos clientes, despertando assim o ciúme de outros médicos. Raivosos com Agnódice e acreditando que fosse realmente homem, eles a acusaram falsamente de estar praticando atos libidinosos com as pacientes.

Levada ao tribunal (areópago), ela tentou se defender da falsa acusação; porém, quando percebeu que seria condenada à morte, despiu-se diante do juiz e dos jurados. Atitude extrema causou em todos grande surpresa e comoção. Além disso, várias de suas pacientes declararam em frente ao templo que se ela fosse executada, iriam morrer com ela. O juiz reconheceu a injustiça que estava sendo cometida contra Agnódice, livrou-a da acusação e promulgou uma lei determinando que, a partir daquele momento, as mulheres teriam o direito de praticar a medicina na Grécia.

Graças à ousada e corajosa atitude de Agnódice, as mulheres hoje são maioria na profissão.

REFERÊNCIAS:
1.BEZERRA, Armando "Admirável mundo médico: a arte na história da medicina" - Brasília, 2002
2.Greenhill, William Alexander (1867), "Agnodice", in Smith, William, Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology, 1, Boston: Little, Brown and Company
3.
Wikipédia: Agnodice