Resta explicar, rapazes, porque ligo tanto à medicina. Ninguém, ignora que uma das ... pegas infantis mais vulgarizadas no Brasil, e talvez, no mundo, é perguntarem ao rapazinho o que ele vai ser na vida. Foi o que fizeram também comigo uma vez, eu não teria 10 anos. Fiquei atrapalhado, com muita vergonha de mim, e de repente, escapei: - Vou ser médico. Positivamente eu não tinha a menor disposição pra ser médico, nem coisíssima nenhuma. Era menino, e apenas nos poucos momentos em que largava a meninice achava bonito, desejava, confesso, ser homem grande, tomar bonde, fumar, andar com dinheiro no bolso. Vou ser médico... Para que falei tamanha bobagem! Todos acharam a resposta muito certa e nunca mais se discutiu dos meus futuros. Nem eu discuti. Fiquei certo como os outros que ia ser médico no mundo, mas jamais fiz o menor esforço para dirigir. Nem os outros, seja dito em honra dos meus bons pais. E fiquei... o diabo é que nunca pude esclarecer direito o que fiquei; e sinto sempre uma hesitação danada quando, nos hotéis, enchendo a ficha de hospedagem, tropeço no “Profissão”. Pianista? Professor? Jornalista? Crítico de arte? Folclorista? Ou mais recentemente: Funcionário público? Só me arrependo de não ter ficado médico por causa dos fichários dos hotéis. No resto, não me arrependo, porque não tenho mesmo a menor vocação.
Mas aquela resposta de menino me valia a vida inteira. Me tornei médico às avessas, isto é, doente. Mais ou menos imaginário. Sou duma perfeição prelecional no descrever os sintomas das doenças. Das minhas doenças. E finalmente a medicina entorpeceu minhas leituras. Li bastante sobre os bastidores dela, e principalmente a sua história. E quando encontro, em outras leituras, qualquer referência sobre medicina, ficho. Fichava, aliás. Por que ficava? Fichava sem saber por que fichava. Fichava por causa daquela resposta de menino e porque os instintos viciados, ignorantes das proporções e dos anos, continuam imaginando que ainda serei médico um dia.No prefácio acima, vê-se claramente que o autor atribui, inicialmente, esse “namoro” ao prestígio da medicina, que era particularmente valorizada em 1939, época em que a profissão tinha a sua melhor imagem na história do Brasil. Certamente era preferível, num hotel, assinar “Dr. Mário” que simplesmente “Mário”.
Também as suas próprias doenças, bem como a curiosidade intelectual, o impelem ao ofício de curar. Fica evidente, na última frase, que “os instintos” continuaram guardando uma paixão platônica pela medicina.
Em Terapia musical, ele mostra a potencialidade da meloterapia na correspondência entre ritmos musicais e ritmos orgânicos; cita Celso e Herófilo, Platão, Pinel e Charcot. Conta que em meados do século XVIII o dr. Gordon y Arosta organizou uma farmacopéia de instrumentos, recomendando o violino para a melancolia e hipocondria, a flauta para tuberculose, a harpa para histeria, o trombone contra a surdez e o oboé como tônico geral. O autor doutrina: uma organização social que empregasse a terapêutica musical à coletividade não é uma utopia, porque isso já existe, só faltando sistematização.
Mais interessante, embora com menos prescrições, é A medicina dos excretos. Aqui, Bach dá lugar às fezes e à urina, utilizados com fins terapêuticos. Mário mostra a simbologia que existe por trás de tais procedimentos e crenças, por exemplo, assim como o esterco fertiliza a terra, ele melhora o organismo. Os excretos mantém pois uma noção de princípio da vida, de vitalização, de saúde. Daí seu uso como medicamento. Asma, diz, em Pernambuco, se cura com uma colher de bosta de vaca.
O segundo ensaio, que muitos consideram não tão agradável quanto o primeiro, é riquíssimo do ponto de vista antropológico.
REFERÊNCIAS:
1.Andrade, M. Namoros com a medicina – I. Terapêutica musical – II. A medicina dos Excretos. Porto Alegre: Livraria do Globo; 1939.
2.SCLIAR, Moacyr, "A Paixão Transformada", Companhia das letras, São Paulo, 1996
Nossa,como tá bonito isso aqui!Sobre o post,gostei,mas fico de expectante por ser bem leiga no assunto.
ResponderExcluirComo sempre belíssimo texto, Renata!
ResponderExcluirhttp://pacientesensinam.blogspot.com/