sexta-feira, 22 de abril de 2011

"Mãe com Criança Enferma" / Pablo Picasso

Em toda a história da arte, talvez nenhum conjunto de obras artísticas visuais reflita tão bem a miséria humana como as pertencentes ao período azul de Pablo Picasso (1881-1973).

A fase é basicamente caracterizada pelo predomínio de cores sombrias, como o azul e o verde. São obras impregnadas de melancolia, tristeza e pessimismo.

São exemplos de temas explorados nessa fase: trabalhadores exaustos, mendigos, meninos de rua, alcoólatras, idosos, doentes, amantes desesperados, mães e crianças abandonadas.

"Mãe com criança enferma". Pablo Picasso, 1903. Metropolitan Museum of Art, New York.

A figura feminina retratada na pintura acima é uma prostituta, acometida por sífilis, que Picasso conheceu ao visitar o Hospital de Saint Lazare, em Paris. A mulher, abandonada, buscava ajuda para seu filho doente.

Vê-se expresso no rosto da mãe a solidão de sua condição. Seu filho, desnutrido, aparece envolto num manto que ameniza a imagem de sua tristeza e desolação.

O pintor enfatiza tanto os olhos suplicantes dos personagens, que aparecem fixos no espectador, quanto a magra mão da jovem mãe, que agarra seu filho mantendo o gesto de carinho e proteção enquanto aguarda auxílio.

REFERÊNCIAS:
Solar, Ma Dolores Villaverde. “Achaques, dolencias y padecimientos en la mujer a través de la pintura/Ailments, ilness and sufferings in woman through painting”. January 1, 2010.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

A arte que impulsionou Jacob Henle à Medicina

Em meados do século XIX, na altura em que a microscopia anatômica desenvolvia-se rapidamente na Europa, o conceituado patologista e cientista alemão Jacob Henle (1809-1885) estava a investigar a anatomia histológica do tecido renal. A partir de 1862, ele descreveu uma série de publicações afirmando a existência de minúsculas estruturas tubulares que corriam perpendicularmente na superfície dos rins até mergulharem no interior do órgão. Estava descoberta "a alça de Henle".

Não responsável somente por essa relevante contribuição à fisiologia, Jacob Henle também revisou e reorganizou toda a histologia da época, além de descrever detalhadamente as células epiteliais.

Friedrich Gustav Jacob Henle, nascido no estado alemão da Baviera, é um dos muitos pioneiros da Medicina a experimentar a fusão da vocação artística com a atividade médica.

Henle foi um excelente músico e poeta. Tocava não apenas um instrumento musical, mas toda a família das cordas existentes na época; com destreza manuseava o violino, a viola e o violoncelo. Entre seus amigos encontrava-se o famoso compositor alemão Felix Mendelssohn (1809-1847), autor dos oratórios Paulus e Elias. Henle é tipicamente descrito como um homem espirituoso, que freqüentemente promovia recitais e concertos em sua casa.

Uma curiosa coincidência médico-artística, que marcou a trajetória profissional de Henle, é que a opção deste pela Medicina esteve intrinsecamente ligada as suas atividades musicais. Foi exatamente num sarau, provavelmente em sua própria residência, que ele conheceu Johannes Muller (1801-1858), um notável pioneiro da fisiologia e anatomia humanas, responsável pela formação de muitos médicos alemães que deram forma à Medicina na segunda metade do século XIX. Do encontro nasceria um dos maiores nomes da medicina praticada daquele século, pois Henle, movido pelo entusiasmo e carisma do grande professor, bem como pela admiração que passou a nutrir pelo mesmo, logo sentiu-se compelido a estudar Medicina. Pouco depois, em 1827, Henle ingressou na Universidade de Bonn, onde teve por mestre o próprio Johannes Muller.

Os biógrafos de Henle costumam declarar que nenhuma parte do corpo humano costumavam escapar à sua curiosidade. Vale aqui ressaltar que a reputação de Henle como cientista era simplesmente louvável. Ele acreditava que doenças infecciosas eram causadas por microorganismos vivos que se espalhavam por meio de agentes orgânicos. Essa hipótese embasou os estudos de Pasteur (1822-1895) e encontrou confirmações históricas em Robert Koch (1843-1910) (um dos seus alunos mais brilhantes).

Como a alça de Henle, outras estruturas anatômicas ainda hoje levam seu nome, são exemplos, a camada externa das células dos folículos pilosos (camada de Henle), as membranas clássicas e fenestradas de Henle (situada nas artérias), e a espinha de Henle (situada na superfície do osso temporal).

Além das citações bibliográficas sobre sua insaciável curiosidade, há também documentos registrando que Henle possuía um finíssimo intelecto e que exibia um comportamento cauteloso e crítico diante das atividades das quais se ocupava, cultivando um profundo “envolvimento emocional” para com seus interesses. A convergência de tantas qualidades ofertou ao universo médico um dos seus exímios mestres e, claro, um admirável músico.

REFERÊNCIAS:
1. MOREL, F. The loop of Henle, a turning-point in the history of kidney physiology. Nephrol. Dial. Transplant. (1999) 14 (10): 2510-2515.
2. Evamaria Kinne-Saffran, Rolf K.H. Kinne. Jacob Henle: The Kidney and Beyond. Am J Nephrol 1994;14:355-360 (DOI: 10.1159/000168747).
3. Souza, Álvaro N. – Grandes médicos e grandes artistas – nomes que deram vida, a medicina e as artes. – Salvador, BA, 2006.

domingo, 17 de abril de 2011

Arterite Temporal e Polimialgia Reumática numa Pintura de 1436

Dentre as obras de arte mais discutidas entre os doutores que visitam o museu municipal de Bruges, na Bélgica, destaca-se um trabalho concluído por Jan van Eyck há mais de 500 anos, representando a Virgem com o Canon Van der Paele. O canon é particularmente o foco do interesse médico.

A Virgem com o Canon (1436). Jan van Eyck. Museu municipal de Bruges (Bélgica).

Oftalmologistas diagnosticaram ligeiro estrabismo divergente e lagoftalmo. Além disso, a distorção produzida pelas lentes que aparecem sobre o manuscrito em suas mãos sugere que esse canon era míope e não presbiope, como se poderia esperar em sua idade.

Também dermatologistas têm comentado anormalidades em sua pele. Eles observaram alguns nevos celulares na face, um cisto sebáceo na orelha esquerda e um epitelioma labial que fora obliterado pela restauração da  pintura em 1934.


Pormenor de  A Virgem com o Canon evidenciando o espessamento das artérias temporais.

Reumatologistas ficaram impressionados com a aparência que van Eyck registrou da região temporal de Van der Paele. São nítidamente visíveis as artérias proeminentes, bem com a formação de cicatrizes e perda de cabelo na frente da orelha esquerda e entre as sobrancelhas. Mesmo sem uma biópsia, muitos clínicos consideraram esse aspecto característico de arterite temporal.

Estudos históricos posteriores evidenciaram que ele tinha dor e rigidez no braço esquerdo. O edema difuso em sua mão esquerda indica uma esclerose crônica observada em pacientes com ombralgia de longa duração ou a síndrome de ombro-mão, uma das características de polimialgia reumática.

Segundo a acta da catedral, após onze anos de serviço regular, der Paele passou a apresentar suas primeiras dificuldades durante um culto que acontecia numa manhã de novembro, no ano de 1431. Em setembro 1434 o canon, "em vista de sua debilitação geral", obteve permissão para manter seus rendimentos, apesar de não freqüentar o serviço.

Nessa época, julgando próximo o seu fim, resolveu convidar Jan van Eyck para fazer um retrato especial, em que aparecia ao lado da Virgem, para decorar a Igreja em sua memória. A pintura foi concluída em 1436.

Ele morreu em 25 de agosto de 1443. Os dados históricos que contém registros sobre sua saúde apoiam o diagnóstico clínico de arterite temporal associado a polimialgia reumática, visto que esta última condição ocorre em 40% dos casos de arterite de células gigantes. A dor reumática com rigidez matinal, associada a fraqueza geral, forçou o van Paele a abandonar suas atividades matinais. Esta debilitação, não fatal, permitiu que ele sobrevivesse ainda por doze anos, uma história compatível com o curso natural da polimialgia reumática.

REFERÊNCIAS:
1.Antônio Carlos Lopes, tratado de Clínica Médica, 2 edição, Roca, 2009.
2.DEQUEKER, JV. “Polymyalgia rheumatic with temporal arteritis, as painted by Jan Van Eyck in 1436”.CMA JOURNAL/JUNE 15. 1981/VOL. 124.

sábado, 16 de abril de 2011

"Freud, além da alma" / Clássico das artes cinematográficas conta a história do pai da psicanálise

Freud (1962) ou Freud, além da alma, é uma biografia cinematográfica americana baseada na história do neurologista austríaco Sigmund Freud.



Dirigido por John Huston, o filme retrata a trajetória do fundador da psicanálise no período entre 1885 e 1890. A história comprime os anos que levou Freud para desenvolver a sua teoria psicanalítica, momento em que a maioria de seus colegas recusavam-se a tratar a histeria acreditando que os sintomas eram meros estratagemas para atrair a atenção. O neurologista, entretanto, aprende a usar a hipnose para descobrir os motivos das neuroses de seus pacientes, especialmente através do tratamento de Cecily, uma jovem paciente histérica. O enredo enfoca os aspectos fundamentais da elaboração da teoria psicanalítica e exploração do inconsciente.

Elenco:

Montgomery Clift: Sigmund Freud
Susannah York: Cecily Koertner
Larry Parks: Dr. Josef Breuer
Fernand Ledoux: Dr. Charcot
Alexander Mango: Dr. Babinsky
Eric Portman: Dr. Theodore Meynert

Curiosidade:

O roteiro original do filme foi escrito pelo admirável filósofo francês Jean-Paul Sartre.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Síndrome de Pickwick: os distúrbios respiratórios do sono e sua relação com a literatura clássica inglesa

É bem conhecido que o estudo de diferentes obras de arte revelam características de diversas afecções antes mesmo delas serem descritas. Não raramente, também a literatura ficcional antecede a ciência. O fabuloso romancista inglês Charles Dickens (1812-1870), amplamente conhecido por marcar a era vitoriana com seu profundo senso de observação humana e de crítica social, povoou sua obra com memoráveis protagonistas.

Um dos seus secundários personagens ganhou um posto nos anais da medicina. Trata-se do “gorducho Joe”, descrito no capítulo LIV do primeiro sucesso de Dickens As Aventuras do Sr. Pickwick (1836).

Através dessa divertida história, Dickens narra de forma mágica as aventuras de quatro membros de um clube especial que tem como líder o Sr. Samuel Pickwick, uma espécie de filósofo que, junto com seus três seguidores, iniciam uma turnê pela Inglaterra com o intuito de observar descobertas científicas e analisar as diversas variedades do comportamento.

Joe é marcado por seu voraz apetite associado a muitos ataques de sono durante o dia:

... e no caixote sentou-se um garoto gordo e de rosto vermelho em estado de sonolência. [...] Joe - que droga aquele garoto, foi dormir novamente. [...] Em resposta aos tiros de enormes armas em um exército militar, todas as pessoas estavam excitadas exceto o garoto gordo, e ele dormia profundamente como se o barulho do canhão fosse a sua canção de ninar... senhor, será que é possível beliscá-lo na sua perna, nada mais o acorda. [...] Joe ronca enquanto espera a mesa... o ronco do garoto penetrou como um baixo e monótono som vindo distante da cozinha.

Gravura ilustrando Joe – The Fat Boy, contida na primeira versão do livro The posthumous papers of the Pickwick Club.

Fã de Dickens, o pai da medicina moderna Sir William Osler, em sua obra The principles and practice of medicine (1905), registrou o seguinte comentário: Tenho observado um fenômeno extraordinário que associa a excessiva obesidade de pessoas jovens a uma incontrolável tendência a dormir –como o obeso de Pickwick.

Levando em consideração a observação de Osler, no ano de 1956 Burwell notou a lúcida descrição dos sinais que acometem o jovem Joe, atribuindo o rubor facial do personagem a uma policitemia decorrente de uma diminuição da oferta de oxigênio, e consagrou o termo “pickwickiano” para descrever pacientes obesos e sonolentos, portadores de hipoventilação, policitemia e cor pulmonale. O termo Síndrome de Pickwick fora então empregado para designar a condição que reunia tal conjunto de sinais e sintomas.

A curiosidade imposta pela síndrome despertou o interesse sobre o estudo dos distúrbios do sono na classe médica. Pouco depois, médicos franceses observaram que doentes tidos como “pickwickianos” apresentavam repetidos episódios de apnéia durante o sono, justificando ser a redução dos níveis de oxigênio responsável por uma má qualidade de descanso noturno, o que explica a presença de sonolência diurna nesses pacientes. Gastaut descreveu então a apnéia obstrutiva do sono, destacando a existência de pausas repetidas na respiração, bem como a importância do ronco faringeano na síndrome.

Há somente poucas décadas que as desordens respiratórias relacionadas ao sono e à obesidade começaram a tomar um importante lugar nas publicações médicas. Certamente, a excelente caracterização de um sujeito obeso e com distúrbios respiratórios feita há 150 anos por Charles Dickens antecipou a ciência nesta sua obra, onde nos apresentou um esboço do que seria tempos depois descrito como o fenótipo clássico de um portador do distúrbio do sono.

A síndrome de Pickwick é hoje preferencialmente chamada de síndrome obesidade-hipoventilação alveolar e classificada como um subtipo da síndrome da apnéia obstrutiva do sono.

REFERÊNCIAS:
1. DICKENS, C. As Aventuras do Sr. Pickwick. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
2. SILVA, G.A; síndrome obesidade-hipoventilação alveolar. Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: DISTÚRBIOS RESPIRATÓRIOS DO SONO. 39 (2): 195-204, abr./jun. 2006
3. OSLER, W. The principles and practice of medicine. 6ª edición. Nueva York: Appleton; 1905:431.
4. MENDOZA, R.M. La neurología en un personaje de Dickens.Síndrome Pickwickiano, apneas hipopneas del sueño ehipertensión intracraneal. Gac Méd Caracas 2009;117(2):154-162
5. Rabec, C. LEPTIN, OBESITY AND CONTROL OF BREATHING : THE NEW AVENTURES OF MR PICKWICK. Rev Electron Biomed / Electron J Biomed 2006;1:3.

sábado, 9 de abril de 2011

Epilepsia na Obra de Rubens

Em Os Milagres de Santo Ignacio de Loyola (1618), Peter Pawel Rubens (1577-1640) registrou magnificamente duas personagens epilépticas.

Os Milagres de Santo Ignácio de Loyola (1618). Pieter Pawel Rubens (1577-1640). Óleo sobre tela, 535 x 395 cm. Kunsthistorisches Museum (Viena).

A pintura evidencia Santo Ignacio ministrando uma missa na presença de alguns religiosos. Ele eleva os olhos aos céus, põe a mão esquerda sobre o altar e, com a direita, abençoa os doentes que suplicam por um milagre curativo.

Observe a representação realista das possíveis crises tônico-clônicas nas duas figuras que aparecem à esquerda na imagem.


Em primeiro plano, caído no chão, destaca-se um homem apresentando sialorréia durante a convulsão e, logo atrás dele, uma mulher cianótica aparece amparada, enquanto se contorce e lança um grito epiléptico, com o rosto e o corpo em desalinho.


Durante a Idade Média, era a epilepsia tida como uma possessão por espíritos malignos, que deviam ser expulsos por Cristo. As autoridades eclesiais criam que exorcizar o demônio do corpo de uma vítima era a única cura para a síndrome. Um sacerdote era designado “curador”. Este interessante fato histórico pode ser apreciado na tela de Rubens. É clara na pintura a representação da crise como uma possessão demoníaca, uma vez que uma dupla imagem de demônios aparece na parte superior esquerda do quadro, como se a benção concebida pelas mãos de Santo Ignácio houvesse operado o milagre da cura dos dois epilépticos.

Cor, luz e perspectiva mostram a enorme influência da Escola Veneziana na pintura de Rubens. Os recursos técnicos do pintor e a retórica barroca da tela aumentam a dramaticidade da obra.

REFERÊNCIAS:
1.Peter Wolf: Sociocultural History of Epilepsy
2.BEZERRA, A.J.C.; As belas artes da medicina. Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal, Brasília, 2003.