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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

"O Médico Doente", de Drauzio Varella

Drauzio Varella, formado em Medicina pela USP, é um médico brasileiro que estreitou a ligação da ciência à arte. Notável escritor, publicou Estação Carandiru, obra que ganhou os prêmios Jabuti e Livro do Ano. Dentre outros livros, é autor também de Por um Fio e Borboletas da Alma.

Cancerologista há mais de quarenta anos, Drauzio convive com pacientes terminais diariamente. A estreita ligação com o tema, entretanto, não o preparou para viver a situação inversa.

Mal fechei os olhos, o quarto foi invadido por um batalhão de enfermeiras e auxiliares perguntando-me se apresentava alguma alergia, queixa cardíaca, pulmonar, urinária ou digestiva. Enquanto respondia a uma delas, outra instalava o aparelho de pressão em meu braço, e uma terceira colocava o termômetro e enlaçava a pulseira de identidade. Um técnico de laboratório passou um garrote para colher sangue e ligar o frasco de soro: ‘Vou dar uma picadinha’. Foi o primeiro de uma série de diminutivos que viriam a ser pronunciados. [...] O emprego do diminutivo infantiliza o cidadão. Deitado de camisola e pulseirinha, sem forças para agir por conta própria, cercado de gente que diz ‘Vamos tomar um remedinho’; ‘Abre a boquinha’; ‘Levanta a perninha’... há maturidade que resista?

Ao retornar de uma viagem à Floresta Amazônica em 2004, Varella sentiu um mal estar associado à febre e, após um período de relutância obstinada, interrompeu o atendimento em seu consultório e aceitou repousar. Dias depois, foi internado. As incertezas quanto ao diagnóstico cresciam conforme aumentava a febre.

Acompanhando de perto a aflição dos colegas, o paciente viu-se na angustiante posição de compreender melhor do que o doente comum a gravidade de seu caso. Astênico, com a mente embaraçada pela doença e pela morfina, ciente da gravidade de sua situação, o médico passou a considerar a possibilidade de que seus dias estavam contados.

Em “O Médico Doente”, o autor narra sua experiência sob a ótica clínica e cirúrgica. Do leito hospitalar ele retorna aos caminhos que o levaram à profissão e revela os sentimentos de um médico impotente, à beira da morte.

REFERÊNCIA:
1.Varella, Drauzio. “O Médico Doente”. Companhia das Letras, São Paulo, 2007.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Janela da alma: um filme sobre o olhar.

O desejo de fazer um documentário sobre o "olhar" através das deficiências visuais inspirou os míopes João Jardim e Water Carvalho a produzirem o encantador filme Janela da Alma.


Walter relatou que, ao pensar no roteiro, a pergunta inicial era: que tipo de personalidade os entrevistados – escritores, cineastas, fotógrafos – tinham formado na vida, a partir dessa “cegueira”, dessa necessidade de enxergar com óculos? Mobilizado por esta curiosidade inicial, optou por fazer um ensaio sobre a capacidade de enxergar o mundo de maneira enriquecedora, apesar de uma afecção tida geralmente como obstáculo, como a miopia ou a retinose pigmentar.

O filme procura mostrar de qual forma a deficiência visual tem sido vivida como eficiência por muitos artistas que precisam do “olhar” para criar.
As pessoas não sabem mais ver, pois não têm mais o olhar interior. Vive-se um tipo de cegueira generalizada (Depoimento do fotógrafo Evgen Bavcar; cego).
São depoimentos reflexivos de algumas figuras emblemáticas da cultura artística: Saramago, Manoel de Barros, João Ubaldo, Win Wenders, Evgen Bavcar, Walter Lima Jr, Marieta Severo, Antonio Cícero, Paulo César Lopes, Arnaldo Godoy, Marjut Rimminen, Hermeto Paschoal e, também, Oliver Sacks (neurologista britânico conhecido na área médica por ter escrito livros em que conta interessantes casos clínicos romanceados).
Os olhos são a janela da alma, o que vemos é mudado pelas nossas emoções... desespero, conhecimento, eu não posso ver, mas posso ver, vejo com os olhos da mente.(Oliver Sacks)
Revelações fantásticas destes portadores de doença ocular chamam a nossa atenção para as particularidades do viver, fazendo-nos um convite a enxergar o que não vemos.
“E se fossemos todos cegos? Cegos da razão, cegos da sensibilidade, cegos de tudo aquilo que faz de nós não um ser funcional no sentido da relação humana, mas ao contrário, um ser agressivo, egoísta, um ser violento. E o espetáculo que o mundo nos oferece é justamente esse, um mundo de desigualdade, de sofrimento, um mundo sem justificação. Podemos até explicar o que se passa, mas não tem justificação.” (Depoimento do escritor José Saramago).

Se expandir-se é enfrentar o próprio limite, o que de fato amplia a visão é também o que a impede, é a necessidade de ver além que nos faz buscar sentido no invisível.


REFERÊNCIA:
RIBAS, MC; "Depoimentos à meia luz: a Janela da Alma ou um breve tratado sobre a miopia". ALCEU - v.3 - n.6 - p. 65 a 78 - jan./jul. 2003.

sábado, 10 de setembro de 2011

"O Homem Elefante": Filme conta a emocionante história de Joseph Merrick

Baseado numa história verídica, o filme norte-americano The Elephant Man (1980), conta a notável saga de Joseph Carey Merrick (1862-1890), constituindo um dos retratos humanos mais comoventes dentre as produções cinematográficas do século XX.


O diretor do filme, David Lynch, baseou-se em duas fontes para a composição do enredo: no livro, The Elephant Man (1980), de Frederick Treves, e em um livro de Ashley Montagu, chamado: The Elephant Man: A Study In Human Dignity, publicado em 1971.

Joseph Merrick (1862-1890), interpretado por John Hurt, portava uma doença que deformou de maneira irreversível 90% do seu corpo. Sua aparência chamou a atenção do famoso cirurgião Frederick Treves (Anthony Hopkins), que o encontrou num circo, no final de 1884, sendo apresentado como uma das aberrações do espetáculo. Em dezembro de 1884, Frederick Treves examinou Merrick e o apresentou como um caso em uma reunião da Sociedade Patológica de Londres:

“Ele é inglês. Tem 21 anos de idade e chama-se John Merrick. Na minha prática profissional, já vi deformidades do rosto decorrentes de ferimentos ou doenças, bem como mutilações e deformidades do corpo, devido a causas semelhantes. Mas em momento algum presenciei tão degradante versão de um ser humano como agora. Quero chamar a atenção dos senhores para esta insidiosa condição. Podem ver daí? Há um exagerado crescimento do crânio e do braço direito, totalmente inutilizado; uma alarmante curvatura da coluna. Notem a frouxidão da pele e os tumores fibrosos, que cobrem 90% do seu corpo. Tudo indica que essas deformações já existiam e progrediram rapidamente desde o nascimento. O paciente também sofre de bronquite crônica. Um aparte interessante é que, apesar das anomalias, os genitais do paciente não foram afetados e permanecem intactos. O braço esquerdo é normal, como podem ver. Então, senhores, devido a estas condições, aos tumores ósseos no crânio, à grande quantidade de massas pendentes na pele, ao crescimento exagerado do braço direito, envolvendo todos os ossos, às extensas distorções da cabeça, e à grande área coberta por papilomas, o paciente é conhecido como O Homem Elefante. Obrigado.” Frederick Treves (1884)

Fotografia de 1889.
Em 24 de junho 1886, Joseph foi admitido como residente no Royal London Hospital. Lá recebeu inúmeras visitas, a primeira sobre a qual sabemos é interpretada por Anne Bancroft, ela representa Madge Kendal, uma atriz que fazia sucesso nos palcos de Londres durante a segunda metade do século XIX. Como uma figura materna para Joseph, ela o ajuda a aceitar sua enfermidade e a encontrar alguma alegria.

Entre as personalidades que o visitava, destaca-se também a rainha Vitória e a princesa Alexandra, esta última, que o presenteava com freqüência, comentou no próprio diário o quão eram comoventes seus encontros com Merrick.

Joseph fora um jovem de sensibilidade artística; e assim como vários indivíduos portadores de alguma condição excêntrica fizeram da arte seu maior refúgio, também Joseph encontrou algum conforto na concretização de suas idéias criativas. Ele gostava de presentear a quem estimava com suas delicadas criações. Uma delas existe até hoje. É a maquete de uma igreja, de fabricação alemã, que ele fez para a atriz Madge Kendal, talvez em 1886:

Maquete de Igreja (1886). Joseph Merrick. Museu do Royal London Hospital.
Ao longo dos anos, debateu-se sobre qual seria a doença de Joseph. O próprio Merrick atribuía a misteriosa doença a um susto que sua mãe teria tido ao ver um elefante quando ainda grávida dele em 1862. No registro do paciente, feito em 1886 para os pacientes do London Hospital, consta que Joseph sofria de elefantíase, uma doença inflamatória adquirida encontrada em países tropicais. Certamente Joseph não sofria disso. A suspeita era a de que ele sofria de neurofibromatose tipo 1, complicada por outra doença, a fibrodisplasia. A análise das radiografias e fotos de Joseph Merrick mostram indícios de várias afecções. Ao exame de diferentes partes do seu corpo, como o fêmur, postulou-se que ele podia ter doença de Paget. Nos anos 80, dois médicos dos EUA propuseram outro diagnóstico, Tibbles e Cohen sugeriram que Joseph sofria da Síndrome de Proteus – assim denominada em alusão a Proteu, deus entalhador das formas –, uma rara doença genética, com poucos casos descritos na literatura médica. O diagnóstico encontrou adeptos e houve muitas tentativas de extrair o DNA dos restos mortais de Joseph para comprovar a hipótese. A condição física do jovem britânico foi fonte de diversos estudos médicos, entretanto, até o momento, não há prova científica sobre qual afecção o acometeu.
De facto, a minha aparência é algo medonha, mas censurar-me é censurar a Deus. Pudesse eu recriar-me novamente, não te decepcionaria. Pudesse eu abarcar o mundo de pólo a pólo ou abraçar o oceano num amplexo, seria medido pela minha alma, a base da mente do homem. (Trecho de poema de Isaac Watts com que Joseph finalizava suas cartas).

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

"O Médico", por Rubem Alves

O curta-metragem abaixo traz a adaptação de uma crônica extraída do livro O Médico, de autoria de Rubem Alves, onde o escritor interpreta poeticamente a pintura O Doutor, de Samuel Luke Fildes, valorizando a influência que possuem os profissionais da Medicina sobre a vida das pessoas:


O Médico é um vídeo produzido em parceira entre o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRMPR).

Veja também: "O Doutor" - Samuel Luke Filds

terça-feira, 16 de agosto de 2011

"Ciência e Caridade", de Pablo Picasso

Indubitavelmente, Ciência e Caridade é a principal obra de Pablo Picasso na fase inicial de sua formação. Com apenas dezesseis anos, o pintor assumiu maturamente a ambiciosa composição clássica, honrando com ela o resultado de seus estudos acadêmicos liderados por seu pai, José Ruiz Blasco, professor de pintura e desenho em Málaga.

Ciência e Caridade (1897). Pablo Picasso (1881-1973). Óleo sobre tela, 197 x 249 cm. Museu Picasso (Barcelona).

Quatros figuras estampam a imagem: no foco principal, ocupando o leito, vê-se uma pálida criatura do sexo feminino, gravemente enferma; à sua cabeceira encontra-se o doutor, sentado, tomando-lhe o pulso enquanto olha seu relógio de bolso; à esquerda da doente, uma freira oferece-lhe cuidados enquanto ampara nos braços uma criança; infere-se do retrato que tal pequena pessoa ocupa o cenário como filha da doente, a cabeça desproporcionalmente grande valoriza sua presença entre os adultos. A mãe, com o olhar fixado à criança, transmite contundentemente a angústia de saber que a deixará órfã.

A encantadora cena embute a “ciência” incorporada na figura do clínico geral bem como a freira, – cuja presença nos hospitais costumava à época ser comum –, representa a “caridade”, esta última com o poder de humanizar os cuidados práticos empregados pelo médico.

O próprio pai de Picasso serviu como modelo para o médico. Quem posa como a figura que aparece quase sem vida é sua irmã, Lola. A criança foi locada de uma mendiga em troca de algum dinheiro. E para a freira, Picasso utilizou um adolescente vestido com um hábito emprestado por um convento.

O sentimento filantrópico e o interesse no progresso científico insere a obra no âmbito de realismo social tão freqüentemente encontrado entre os círculos mais conservadores da segunda metade do século dezenove. A importância da caridade é representada pela serventia religiosa à doente. O avanço científico é evidenciado pela maneira profissional, responsável, ética e, especialmente, carregada de afeto com que o doutor oferece seus serviços.

A origem da união simbólica que dá título à tela é cativante, e estimula a reflexão sobre a necessidade de oferecer ao doente tanto o apoio científico quanto o espiritual e emocional.

Ciência e Caridade recebeu medalha de ouro na Exposição Provincial de Belas Artes de Málaga e ganhou menção honrosa na Exposição Nacional de Arte de Madrid. Atualmente, a obra é a peça mais importante do acervo do Museu Picasso, em Barcelona.


REFERÊNCIAS:
1.Museu Picasso de Barcelona
2.BEZERRA, A.J.C.; As belas artes da medicina. Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal, Brasília, 2003.
3.Moral, A. “Ciência e Caridade (Picasso)”. Ciência da Esquina. N º 19, Dezembro de 2002.

domingo, 31 de julho de 2011

Anton Tchekhov: Trajetória Dedicada à Medicina e à Literatura

Fico satisfeito quando me dou conta de que tenho duas profissões, não uma. A medicina é a minha esposa legal, a literatura a minha amante. Quando canso de uma passo a noite com a outra. Pode não ser uma situação habitual, mas evita a monotonia; ademais, nenhuma delas sai perdendo com minha infidelidade. Se não tivesse minha atividade médica, dificilmente poderia consagrar à literatura minha liberdade de espírito e meus pensamentos perdidos.
O célebre trecho acima é do famoso escritor Anton Tchekhov, que exerceu com primor a medicina e a literatura, consagrando-se como um dos grandes nomes que conciliou as duas culturas: a cultura humanística e a cultura científica.

Anton Pavlovitch Tchekhov nasceu em Taganrog em 17 de janeiro de 1860. Foi o terceiro dos seis filhos do merceeiro Pável Tchekhov.

As origens da família são humildes, fato que contribuiu um tanto para sua infância difícil. O pai, autoritário mas bem intencionado, obrigava-o a trabalhar com ele na venda, e quando, falido, teve de mudar-se pra Moscou com a família, deixou o jovem Tchekhov sozinho em Tangarog para terminar o ensino médio. Sem renda, Anton logo tratou de dar aulas particulares para suster a si mesmo, mantendo-se assim por cerca de dois anos. chamavam-o ironicamente de "Cech" (cujo significado é servo). Em 1979, terminado o ginásio, Tchekhov seguiu pra Moscou, onde encontrou a família na maior pobreza, tendo chegado em certa época a dormir no chão.

Alexander Mirgorodskiy. Estátua de Tchekhov (1960). Localizada em Taganrog (Rússia).

Tchekhov matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Moscou. Graças ao seu talento literário, durante essa fase sustentou a si e a família trabalhando como colaborador em publicações periódicas em vários jornais e revistas das metrópoles russas. Formou-se em 1884 e exerceu medicina como médico responsável de uma clínica rural, da província. Foi ali que o autor conheceu as mais curiosas personalidades e a exuberante natureza pátria que ele descreveria com pinceladas magistrais em muitas de suas obras.

Não menos brilhante que sua atividade literária fora sua carreira médica. Mikhail Tchekhov, um membro da família em Melikhovo (pequena cidade onde Anton exerceu por anos a profissão), descreveu o alcance que assumiu os compromissos hipocráticos de seu irmão:
Os doentes que moravam ao redor começaram a afluir a Tchekhov. Eles viam de longe, a pé ou trazidos em carretas, outras vezes ele ia ao encontro de pacientes à distância. Desde o início do dia as mulheres camponesas e as crianças estavam em pé diante de sua porta, à sua espera, muitas vezes somente para oferecer-lhe algum agrado como prova de gratidão.
Também Tchekhov sofria com uma doença, talvez por isso não economizou em carinho e generosidade com seus pacientes. Em dezembro de 1884 teve ele um quadro de hemoptise. O diagnóstico? Tuberculose, que se agravou a partir de 1889. Em junho desse mesmo ano morreu o seu irmão Nikolaj, também vítima da doença, possivelmente infectado pelo irmão. A morte do caçula influenciou Uma História Desagradável, conto que discorre sobre um homem que enfrenta o fim de uma vida percebendo que sua existência foi sem propósito. Há relatos de que Anton sentiu indescritíveis remorsos, principalmente por não ter estado presente nos últimos dias de vida do irmão. Nikolaj também fora um exímio artista, gostava de pintar, e estampou num quadro a face adoecida do irmão:

Retrato de Anton Tchekhov por seu irmão Nikolaj Tchekhov.

Assim como ocorreu a muitos escritores, a tuberculose exerceu forte influência na atividade literária de Tchekhov, em muitos de seus textos há personagens vítimas da doença. Doutores também não faltam em suas obras, a exemplo, em Um Relato do Jardineiro-Chefe, o autor descreve num personagem médico algumas das qualidades essencialmente humanas que empregavam a si:
Ele mesmo tísico, tossia, mas quando o chamavam pra ver um doente, ele esquecia o próprio mal e, arquejando, subia montanhas, por mais altas que fossem. Ele não ligava pra o frio ou calor, desprezava fome e sede. Não aceitava dinheiro e, coisa estranha, quando perdia um paciente para a morte, ele seguia o caixão junto com os parentes e chorava. E logo ele se tornou tão indispensável para a cidade, que os moradores espantavam-se ao pensar como é eu antes conseguiam passar sem esse homem. Sua gratidão não conhecia limites. Adultos e crianças, bons e maus, honestos e malandros, em suma, todos o respeitavam e reconheciam seu valor.
Bem visto e bem quisto em toda a cidadezinha em que exerceu a profissão, conta-se que Tchekhov não aceitava pagamento pelas consultas, sua renda provinha de suas publicações literárias; dizia ele que a profissão médica já possuía por si só um inestimável valor, pois a convivência direta com o sofrimento dos doentes fornecia o substrato para seus textos, e por isso, apesar de não cobrar aos pacientes, era a medicina indiretamente responsável por seu sustento.

Observador arguto da vida e de tudo que é humano, Tchekhov foi um homem de muitas vivências. Tanto a infância difícil e a adolescência penosa, como a tuberculose e as impressões adquiridas no tempo em que observou a vida dos condenados ao trabalho forçado na ilha Sakhalina, causou profunda impressão em sua consciência e imprimiu a marca da verdade nos textos mais importantes do escritor, tornando-o insuperável. Seus curtos contos, expostos com uma economia de palavras diretamente proporcional à riqueza e profundidade do seu conteúdo humano (emocional, psicológico e social), respiram realidade, seus intensos personagens revelam-se ao leitor sem um só efeito supérfluo.

Em julho de 1904 a tuberculose recrudesceu implacavelmente, levando do mundo o genial russo, aos 44 anos de idade, em plena floração da criatividade e do talento. O artista foi sepultado no Cemitério Novodevichy, ao lado do túmulo do pai.

A grandeza de Tchekhov revela-se no conteúdo de sua vasta obra, que exala a empatia que ele possuía com tudo o que é humano. Sua compaixão e compreensão – pelos injustiçados e desvalidos, os humilhados e ofendidos, as crianças, os condenados, os animais, os doentes e os infelizes de quaisquer classes sociais –, impregnam as linhas que enriquecem a literatura mundial. A julgar pelas palavras deliciosamente belas e desprovidas de pieguice, ouso dizer que poucos homens são capazes de atingir tamanha maturidade angelical.


REFERÊNCIAS:
Tchekhov, Anton. "Um homem extraordinário e outras histórias". Porto Alegre; L&PM, 2007.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Ferdinand Hodler: o artista que imortalizou o processo de morte de sua amada

Ferdinand Hodler (1853-1918), – pintor suíço mais conhecido do Século XIX, precursor da pintura expressionista –, conheceu no ano de 1908 Valentine Godé-Darel, que se tornou sua amante. Valentine foi diagnosticada com um câncer ginecológico em 1913, e na quase totalidade de horas Hodler ficou ao lado da cama da enferma, confortando-a. O pintor utilizou o trabalho como meio de aliviar o sofrimento que passava diante da iminente e irreversível partida da amada. Essa fase difícil resultou em uma notável série de pinturas que documentam sua desintegração.

"Antes de mais nada, Hodler é um interpretador de pessoas, que consegue mostrar a alma através da pintura do corpo melhor do que ninguém ", escreveu Paul Klee, em 1911, a respeito de seu colega artista.

Hodler imortalizou a eventual extinção de Godé-Darel, mostrando-a antes, durante e após sua doença. O artista criou uma série de pinturas que forçam o espectador a enfrentar a visão do processo de morrer. A morte de Godé-Darel ocorreu em janeiro de 1915.


Fig. 1: "A juventude". Este retrato em tons de vermelho, de 1912, mostra Gode-Darel como uma bela, jovem e saudável mulher.


Fig. 2: “A doença”. Nesta segunda pintura, Gode-Darel já é registrada como uma paciente acamada.Hodler fez esta pintura onde aparecem rosas e um relógio em junho de 1914, após Gode-Darel passar por uma segunda operação.


Fig. 3: “A exaustão”. Valentine em 2 de janeiro de 1915, com os olhos fechados e a cabeça pendida. A paciente está dormindo. Seus traços estão se tornando mais nítidos, a face aparece mais angular.


Fig 4: “A dor”. A paciente está nos últimos dias de sua vida. Em 19 de janeiro de 1915, Godé-Darel fala pela última vez com Hodler, que continua a fazer retratos dela. Este esboço horrendo mostra seu rosto atormentado, sua cabeça aparece caida profundamente na almofada.


Fig.5: “A agonia”. Retrato pintado um dia antes de sua morte. Valentine já perdeu a consciência. A boca aparece aberta. Durante esta fase, torna-se impossível se comunicar com a pessoa que está morrendo. Se durar um longo tempo, a morte geralmente vem como um alívio para a família e a equipe de cuidadores.


Fig. 6: "A última pintura da morte de Godé-Darel". Nesta, feita em 26 de janeiro de 1915, um dia após sua morte Hodler simbolicamente transforma a imagem. Ela é dominada por muitas linhas horizontais. As faixas azuis na parte superior aparecem para simbolizar o céu, transmitindo a suposta idéia de é para lá que a alma vai. A base escura dos pontos de cama indica um mundo subterrâneo. O cabeçalho e rodapé da cama não parecem ser feitos de madeira. Pelo contrário, as duas pinceladas possivelmente simbolizam as medidas de tempo, o início e o fim.


Fig. 7: “Por do sol no Lago de Genebra”, 1915. Hodler repetidamente pintou essa cena, que ilustra o local onde Godé-Darel morreu.


REFERÊNCIAS:
Pestalozzi, B. “Looking at the Dying Patient: The Ferdinand Hodler Paintings of Valentine Gode-Darel”. Classic Papers, Supplement to JCO, Vol 21, No 9 (May 1), 2003: pp 74s-76s DOI: 10.1200/JCO.2003.01.178.

sábado, 26 de março de 2011

Friedrich Nietzsche - a medicina como uma profissão humana, demasiada humana

O principio fundamental da medicina humanística é a cura abrangente, tratando não só do corpo, mas também da alma do doente, através de uma conexão médico-paciente em que faz-se necessário a empatia, a paciência e a compaixão.

Em 1878, o pensador alemão Friedrich Nietzsche publicou Humano, Demasiado Humano, visando instituir a idéia de que o homem precisa ser um “espírito livre” a fim de descobrir e aplicar seus valores.


O capítulo cinco da obra, que aborda os “sinais de cultura superior e inferior”, traz uma máxima em que o filósofo expõe sua opinião sobre as características essenciais de um médico verdadeiramente humano:
...ele deve, além disso, ter uma eloquência que se adapte a cada indivíduo e que lhe atinja o coração; uma virilidade cuja simples visão afugente a pusilanimidade (a carcoma de todos os doentes); uma flexibilidade diplomática ao medicar entre os que necessitam de alegria para a cura e os que, por razões de saúde, devem (e podem) dar alegria; a sutileza de um agente policial ou advogado, que entende os segredos de uma alma sem delatá-los - em suma, um bom médico requer atualmente os artifícios e privilégios de todas as outras classes profissionais: assim aparelhado, estará em condição de tornar-se um benfeitor de toda a sociedade, fomentando as boas obras, a alegria e fecundidade do espírito, desestimulando maus pensamentos, más intenções e velhacarias (cuja fonte asquerosa é com frequência o baixo-ventre), instaurando uma aristocracia de corpo e de espírito (ao promover ou impedir matrimônios), eliminando com benevolência todos os tormentos espirituais e remorsos de consciência: apenas assim o "curandeiro" se transforma em salvador, sem precisar fazer milagres nem se deixar crucificar (Humano, demasiado humano, 1878; Nietzsche).
O aforismo de Nietzsche idealiza um médico não apenas empático, reflexivo, profissional e confiável, mas também um “instituidor de bem estar”; no entanto, a tendência atual da prática médica segue, lamentavelmente, em direção oposta: à medida que progridem os meios tecnológicos para diagnóstico, o exercício focado no âmago do próximo regride. Cada vez mais o jovem médico é exposto à alta tecnologia e menos ao lado humanístico e filosófico da medicina. Não esqueçamos que, utilizar meios técnicos ajuda a descobrir e a curar certas enfermidades, mas é através do tratamento baseado na radiografia psíquica e social do homem acometido pelo sofrimento, que reside a capacidade de salvá-lo.
Tranqüilizar a imaginação do doente para que não tenha mais que sofrer com idéias que tem de sua doença, mais que com a própria doença – acho que já é alguma coisa!E não é mesmo pouco! Compreendem agora nossa tarefa?(Aurora, 1881; Nietzsche)
Sejamos, pois, como sugere Nietzsche, médicos humanos, médicos de alma, simplesmente médicos.

REFERÊNCIAS:
1.NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
2.NIETZSCHE, F. Aurora. Tradução de Antonio Carlos Braga. São Paulo: Editora Escala, 2007.


terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

"A Peste" de Albert Camus

Os vendedores dos jornais da tarde anunciavam que a invasão dos ratos tinha parado. Mas Rieux encontrou o seu doente meio deitado para fora do leito, com uma das mãos no ventre e a outra em volta do pescoço, vomitando, com grandes arrancos, uma bílis rosada numa lata de lixo. Após grandes esforços, sem fôlego, o porteiro voltou a deitar-se. A temperatura era de trinta e nove e meio, os gânglios do pescoço e os membros tinham inchado, duas manchas escuras alastravam-se pelo flanco. Queixava-se agora de uma dor interna [...]Os gânglios tinham aumentado, estavam duros e fibrosos ao tato. Ao meio-dia, porém, a febre subira bruscamente a quarenta graus, o paciente delirava sem cessar e os vómitos tinham recomeçado. Os gânglios do pescoço eram dolorosos ao tato, e o doente parecia querer manter a cabeça o mais afastada possível do corpo. (Albert Camus, 1947).
O texto acima mostra apenas uma das muitas descrições semiológicas da peste bubônica que permeiam a obra prima do escritor e filósofo francês Albert Camus. O clássico intitulado "A Peste", publicado em 1947, conta a história de uma epidemia que assola Oran, pequena cidade argelina, cujos habitantes levam uma vida monótona até o flagelo dizimar considerável porcentagem de sua população.

A peste, uma zoonose causada pela bactéria Yersinia pestis, é transmitida ao ser humano pelas pulgas dos ratos-pretos. A bactéria entra através de invisíveis quebras na integridade da pele, espalhando-se para os gânglios linfáticos, onde se multiplica. Em poucos dias surge febre alta “a febre subira bruscamente a quarenta graus”, mal estar gastrintestinal “vomitando, com grandes arrancos, uma bílis rosada numa lata de lixo” e os bubos, que são gânglios linfáticos hemorrágicos e edemaciados devido à infecção “os gânglios do pescoço e os membros tinham inchado”. As hemorragias para a pele formam manchas escuras “duas manchas escuras alastravam-se pelo flanco”. As bactérias invadem a corrente sanguínea, onde se multiplicam causando a chamada peste septicêmica, que se caracteriza pelas hemorragias em vários órgãos.

O médico, Dr. Bernard Rieux, protagonista e narrador da história, não mede esforços para ver o bem estar de seus concidadãos. Ao perceber as limitações da batalha inglória que travou contra a peste, surge no Dr. Rieux um sentimento de revolta conseguinte ao sofrimento de constatar sua impotência diante dos pacientes “Tinha de ficar na margem, com as mãos vazias e o coração oprimido, sem armas e sem recursos, uma vez mais, contra esse desastre”.

Rieux luta, até o último momento, apenas com os recursos paliativos que tem em mãos. Este belo relato não esconde os momentos de dúvidas e fraquezas do médico, que aparece como um humanista que se inquieta a cada gemido de dor de seus pacientes. “Assim é que não há uma só das angústias de seus concidadãos de que não tenha compartilhado, uma só situação que não tenha também sido a sua.

Outro ponto de interesse médico discutido na obra é a posição do homem frente à situação-limite que mais o assusta: a terminalidade da vida. O autor enfatiza a mudança do comportamento das pessoas que encaram a iminência da própria morte. Com seu caráter único, Camus leva – através de deliciosas digressões filosóficas - o leitor a refletir sobre como se deve lidar com quem vislumbra seu fim.

Curiosidade: O livro fora escrito durante a Segunda Guerra Mundial. Na história de Camus, a epidemia assola Oran, como a ocupação nazista assolara a França, submetendo os habitantes a um inevitável e generalizado horror. O autor chegou a afirmar que sua obra é, de fato, uma alegoria ao nazismo e, por extensão, a todo regime totalitário.

REFERÊNCIAS:
1.Camus, Albert; “A Peste”. tradução de Valerie Rumjanek Chaves. - 18ª Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2009.
2.
Clayton Melo. “Uma leitura de A Peste, de Albert Camus”. Dez, 2006.
3.
Wikipédia: Peste negra.

domingo, 12 de dezembro de 2010

"O Ingênuo" de Voltaire

Uma pequena grande obra que revela a peculiar sensibilidade crítica do filósofo francês Voltaire, é o conto O Ingênuo, onde o protagonista é um hurão honesto e sincero, espantado com as ridículas convenções sociais da França do século XVIII.

Com seu estilo literário único, Voltaire se mostra um genial pensador iluminista que nos leva a meditar sobre nossos hábitos, religiões e, não raro, profissões

Em determinado momento, Voltaire ataca os “médicos da moda”, culpando-os pela piora do estado de saúde dos pacientes vítimas de um inadequado exercício da prática médica:

Mandaram chamar um médico da vizinhança. Era um desses que visitam os doentes correndo, que confundem a doença que acabaram de ver com a que estão examinando, que exercem uma cega rotina em uma ciência à qual nem toda a maturidade de um espírito são e prudente poderá tirar seus perigos e incertezas. Agravou o mal com uma precipitação em prescrever um remédio em moda da época. Há modas até na medicina! Essa mania era bastante comum em Paris. [...] Mandaram chamar outro médico. Este, em lugar de ajudar a natureza e deixá-la agir em uma jovem criatura cujos órgãos a induziam para a vida, só se preocupou em contrariar o seu colega. Em dois dias a doença tornou-se fatal. (O Ingênuo - 1767)

O texto acima destaca a importância de valorizar a individualidade de cada paciente. Certamente, o caminho para a cura é o tratamento não somente da doença, mas do doente.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

A Obra Literária "Frankenstein" e as Questões de Ética Médica

"Eu via o horrível espectro de um homem estendido, que, sob a ação de alguma máquina poderosa, mostrava sinais de vida e se agitava com um movimento meio vivo, desajeitado. Deve ter sido medonho, pois terrivelmente espantoso devia ser qualquer tentativa humana para imitar o estupendo mecanismo Criador do mundo.” Mary Shelley – Prefácio de Frankenstein (1818).

O famoso romance de autoria de Mary Shelley, escritora britânica nascida em Londres, relata a história de um estudante de ciências naturais que criou um monstro em seu laboratório. O monstro na obra de Shelley, criado pelo protagonista do livro, Victor Frankenstein, surge como uma falha do projeto obsessivo desse cientista pela busca do conhecimento, que se estende desde o aprendizado de antigos alquimistas, como Paracelso e Cornelius Agrippa, até os grandes nomes pioneiros da química moderna.

E quem era eu? Tudo ignorava de minha criação e de meu criador; mas sabia que não tinha dinheiro, amigos ou espécie alguma e propriedade. Era, além do mais, dotado de um aspecto hediondo, deformado e repelente; eu nem era da mesma natureza que o homem. Era mais ágil do que ele e podia viver com alimentação mais parca; suportava quase sem problemas os extremos do frio e do calor; minha estatura era muito superior à dele. Quando olhava ao redor ninguém encontrava que se assemelhasse. Era eu, então, um monstro, uma nódoa sobre a terra, de quem todos fugiam e a quem todos renegavam?

Com essas palavras o monstro criado pelo Dr. Victor Frankenstein dá-se conta de sua triste condição. – Um ser incomum gerado por um cientista aparece de repente como um ser humano adulto, mas entra no mundo sem nada saber sobre si mesmo, à maneira de uma criança. Uma criatura delicada vem a amar a natureza e aprende sobre a humanidade observando as pessoas. No entanto, ao tentar se comunicar com o mundo é rejeitado pela sociedade devido à sua aparência grotesca.

Também seu criador, o jovem universitário e cientista, ao ver-se diante de sua criatura horrível, rejeita-a; esta rejeição, fruto do seu erro e da percepção deste erro, fará brotar no monstro a vingança e, conseqüentemente, a desgraça em sua vida.

"Frankenstein" revela muitos desafios médicos e sociais que a nossa sociedade enfrenta hoje. A obra de Shelley desperta uma série de questionamentos éticos, dentre eles: como lidamos com o mal, o feio ou o deformado em nossa sociedade? Qual a essência do ser humano? Quais os reais problemas na experimentação científica com a vida (pesquisas com células-tronco embrionárias, manipulação genética, etc.)? O que é ciência aceitável, e quando ela vai longe demais?

Aprenda, se não pelos meus preceitos, antes por meu exemplo, o perigo que representa a assimilação indiscriminada da ciência, e quanto é mais feliz o homem para quem o mundo não vai além do seu ambiente quotidiano, do que aquele que aspira tornar-se maior de que sua natureza lhe permite. Victor Frankenstein

A experiência do protagonista seria, de certa forma, precursora das experiências genéticas feitas pelo homem atualmente. Assim como o médico da novela mostra a determinação apaixonada para tentar o que parecia impossível, a melhor das intenções da medicina moderna tem gerado alguns dos maiores sucessos e alguns dos piores pesadelos.

Mary Shelley escreveu a história quando tinha apenas 19 anos, entre 1816 e 1817, e a obra foi primeiramente publicada em 1818.

REFERÊNCIAS:
1. Shelley, Mary; Frankenstein ou o Moderno Prometeu.; São Paulo, Publifolha. 1998.
2. FLORESCU, Radu. Em busca de Frankenstein: o monstro de Mary Shelley e seus mitos.; Trad. Luiz Carlos Lisboa. São Paulo: Mercuryo,1998

3. Silveira, G.; Nepomuceno, L. Atos de criação: questões éticas no Frankenstein de Mary Shelley e em “O golem”, de António Vieira; Patos de Minas: UNIPAM, (6): 293-306, out. 2009

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

"O Paralítico" - Jean-Baptiste Greuze

O mais belo exemplo de medicina paliativa representada na arte pode ser apreciado em O Paralítico, do pintor francês Jean-Baptiste Greuze (1725-1805):

O Paralítico - Os frutos de uma boa educação; Greuze, Jean-Baptiste, 1763; Óleo sobre tela; The Hermitage, St. Petersburg.

A cena passa-se no quarto da casa de um idoso fragilizado. Esticado - deitado, meio sentado - um homem debilitado ("o paralítico") olha passivamente pra um prato de comida que lhe está sendo oferecido por um cavalheiro que está flexionado em sua direção. Em contraste com o pálido paralítico, que veste um casaco marrom, o jovem homem em pé está bem vestido e tem a face corada. Os braços do paralítico, ligeiramente flexionados, estendem-se sobre seu corpo, um pé repousa sobre um banquinho e suas pernas estão cuidadosamente cobertas com um cobertor.

Em torno do homem idoso há uma família numerosa que lhe dedica toda atenção. A cena conta também com a presença dos filhos e de um cão. A única figura que não está olhando para o paciente é um menino que se ajoelha ao seu lado, com um braço colocado delicadamente sobre sua perna paralítica.

Detalhe de O Paralítico - Os frutos de uma boa educação.

Greuze pintou o quadro de forma que o idoso, em sua posição esticada, ocupa um grande espaço no centro da imagem, sugerindo assim a importância do enfermo, que domina a cena. A atenção do espectador é mais atraída por esta figura central, também a iluminação - o fundo é escuro, enquanto a almofada contra a qual repousa o homem é clara e brilhante – faz com que a figura do homem apareça sob um banho de luz. Assim, o espectador participa com a família em focar a atenção sobre o paciente.

O Paralítico mostra a dedicação oferecida a um idoso apaixonado por sua família. A intenção de Greuze seria a de despertar no público a consciência de que a atenção ao enfermo é um ato de amor imprescindível para manter o conforto de quem necessita de cuidados especiais.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

"Os Aleijados" Pieter Bruegel

Alguns deficientes do aparelho locomotor podem ser vistos em Os Aleijados, de Pieter Bruegel (1525 – 1569):

Os Aleijados (1568). Pieter Bruegel. "O Velho". Óleo sobre madeira. 22 x 18 cm.

O artista pintou cinco portadores de necessidades especiais que se movimentam ajudados por órteses artesanais. Três deles olham para o espectador da cena. Suas fisionomias sugerem retardo mental. Quatro dos cinco deficientes usam capas com caudas de raposas penduradas nos casacos; tais capas, símbolo da degradação humana, eram utilizadas por leprosos e serviam de advertência aos transeuntes para que se mantivessem a uma prudente distância do hanseniano.

Para Bruegel, as pessoas sadias não se importavam com os demais. Uma curiosidade que pode ser vista nesse quadro, é que os portadores de necessidades especiais se encontram juntos, como se estivessem isolados pela sociedade por serem diferentes da maioria. Os cinco deficientes representam classes sociais distintas. Pelos toucados que apresentam nas cabeças tratar-se-ia de um rei, um bispo, um soldado, um burguês e um camponês. Bruegel, ironicamente, pintou-os com deformidades físicas. A única pessoa sadia da cena, uma freira que aparece de costas para os demais, afasta-se do grupo.

A intenção de Bruegel em Os Aleijados seria a de mostrar o que a pessoa se tornou e o que qualquer um poderia se tornar, alertando a população sobre a suscetibilidade de todos às afecções, pois todos são imperfeitos e, portanto, iguais.

A obra integra o acervo do Museu do Louvre, em Paris.

1.CIVITA Victor. Mestres da Pintura: Brueghel. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
2.BEZERRA, A.J.C.; As belas artes da medicina. Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal, Brasília, 2003.
3.Roberto Cano de la Cuerda, Susana Collado-Vázquez ;“Deficiencia, discapacidad, neurología y arte”; Rev Neurol 2010; 51 (2): 108-116

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O Suicídio na Literatura

O suicídio é um fenômeno complexo que tem atraído a atenção de escritores, teólogos, médicos, sociólogos e artistas através dos séculos; Não apenas um problema filosófico, o tema ocupa hoje um importante lugar nas questões de saúde pública. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), quase 1 milhão de pessoas morrem por suicídio por ano, a freqüência ocupa a terceira posição entre as causas mais comuns de falecimento da população da faixa etária de 15 a 35 anos, sendo uma das 10 maiores causas de morte em todos os países.

10 de Setembro é o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio, uma iniciativa da Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio juntamente com a OMS. O dia foi criado com o objetivo de promover o compromisso mundial com medidas para prevenir a principal causa evitável de mortes prematuras.

O escritor alemão Hermann Hesse, descreveu sua visão do “homem suicida” na obra clássica O Lobo da Estepe (1927). O livro conta a história de vida do complexo Harry Haller, personagem que padece de esquizofrenia. À época em que o livro foi escrito, a preocupação com a prevenção do suicídio era escassa na sociedade, em parte porque a compreensão da saúde mental estava apenas começando a engatinhar. Ao fim do texto, Hesse deixa claro o quão necessário é alertar a todos sobre a importância de estudar o homem, não apenas “o mecanismo dos fenômenos vitais”, mas, principalmente, seu estado mental:

É próprio do suicida sentir seu eu, certo ou errado, como um germe da Natureza, particularmente perigoso, problemático e daninho, que se encontrava sempre extraordinariamente exposto ao perigo, como se estivesse sobre o pico agudíssimo de um penedo onde um pequeno toque exterior ou a mais leve vacilação interna seriam suficientes para arrojá-lo no abismo. Esta classe de homens se caracteriza na trajetória de seu destino porque para eles o suicídio é a forma de morte mais verossímil, pelo menos segundo sua própria opinião. A existência dessa opinião, que quase sempre é perceptível já na primeira mocidade e acompanha esses homens durante toda sua vida, não representa, talvez, uma particular e débil força vital, mas, ao contrário, encontram-se entre os suicidas naturezas extraordinariamente tenazes, ambiciosas e até ousadas. Mas assim como há naturezas que caem em febre diante da mais ligeira indisposição, assim propendem essas naturezas a que chamamos "suicidas" e que sempre são muito delicadas e sensíveis à menor comoção, a entregar-se intensamente à idéia do suicídio.

Se tivéssemos uma ciência que possuísse coragem e autoridade suficientes para ocupar-se do homem em vez de fazê-lo simplesmente no mecanismo dos fenômenos vitais, se tivéssemos uma verdadeira Antropologia, uma verdadeira Psicologia, tais fatos seriam conhecidos de todos.

O filósofo francês Albert Camus, em seu célebre ensaio O Mito de Sísifo (1942) aborda a problemática do suicídio como saída que o ser humano inventa para a situação absurda que se encontra. Preocupado com o tema, Camus escreveu:

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder a questão fundamental da filosofia.


A criação do Dia Mundial de Prevenção do Suicídio representa um enorme avanço na área de saúde mental.


REFERÊNCIAS:
1.Gunnel D, Frankel S. Prevention of suicide: aspirations and evidences. British
Medical Journal, 1999, 308: 1227-1233.
2.Prevenção do suicídio: um manual para médicos clínicos gerais,OMS; Genebra, 2000.
3.HESSE, Hermann. “O Lobo da Estepe”, Rio de Janeiro: Record, 1998.
4.CAMUS, Albert. O mito de sísifo: ensaio sobre o absurdo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

"A Morte de Ivan Ilitch" de Liev Tolstói

"Ivan Ilitch via que estava morrendo e sentia-se constantemente desesperado. No fundo da alma sabia bem que estava morrendo; mas não só não conseguia habituar-se a essa idéia, como não a compreendia mesmo - era incapaz de compreendê-la." Liev Tolstói

Em A Morte de Ivan Ilitch, considerada por alguns críticos literários a novela mais perfeita já escrita, Liev Tolstói (1828-1910) traça a trajetória de um paciente terminal confrontado com sua doença. O protagonista, Ivan Ilitch, membro de uma corte de apelação provincial, leva uma confortável vida burguesa. A doença – câncer –mudará tudo, transformará sua vida numa jornada de sofrimento e degradação. Com sua genialidade, o escritor russo nos leva a ocupar “o lugar do doente”, fazendo-nos refletir sobre o quanto a desatenção do médico pode ser desfavorável à evolução geral do paciente:

Ivan Illich foi. Tudo se passou como previa e como se passa sempre. Uma longa espera, expressões solenes e doutorais que conhecia muito bem, pois no tribunal era a mesma coisa, auscultação, apalpações, as perguntas habituais, exigindo certas respostas previamente determinadas e evidentemente inúteis, um ar importante que significava: vocês não precisam fazer mais do que obedecer-nos e nós arranjaremos tudo; sabemos muito bem, sem possíveis dúvidas, como se arranjam essas coisas, sempre da mesma forma, qualquer que seja o paciente. Tudo se passava, sem tirar nem pôr, como no tribunal. Do mesmo modo que ele representava uma farsa diante dos acusados, ali o famoso clínico a representava diante dele. O médico dizia: isto e aquilo indicam que o senhor tem isto e aquilo; mas no caso em que o exame não o confirme, seremos levados a supor que seu mal é este ou aquele. E se chegarmos a essa suposição... nesse caso... etc., etc. [...]Ivan Ilitch concluiu do resumo do médico que a coisa ia mal; para o médico, para toda gente mesmo, talvez aquilo não tivesse importância, mas para ele, pessoalmente, a coisa ia muito mal. E essa conclusão abalou de maneira dolorosa Ivan Ilitch, despertando nele um profundo sentimento de piedade de si mesmo e de ódio ao médico, tão indiferente em face de um fato daquela importância. [...] Ivan Ilitch saiu lentamente, retomou com tristeza o seu trenó e mandou tocar para casa. Durante todo o trajeto não cessou de meditar sobre as palavras do médico, esforçando-se por traduzir todos aqueles termos científicos, complicados e obscuros numa linguagem simples, a ver se encontrava nela a resposta à sua pergunta: o meu caso será perigoso, muito perigoso ou não será nada? E pareceu-lhe que as palavras do médico significavam que o seu caso era muito mau. As ruas revestiram-se de uma estranha tristeza aos olhos de Ivan Ilitch: os fiacres estavam tristes, as casas, os passantes, as lojas, tudo estava triste. E a dor que ele sentia, aquela dor surda, obstinada, que não o abandonava um instante, parecia adquirir, graças às frases ambíguas do médico, um significado novo, muito mais sério.

Os médicos, como mostra o texto acima, não se mostram dispostos a ajudá-lo; pelo contrário, o tom de “indiferença” e as palavras utilizadas pelo doutor exacerbam a sensibilidade do doente, fazendo-o se deparar com a morte de uma forma extremamente dolorosa. Seu criado, Guerássim, apieda-se dele; e é com esse homem simples que Ivan Ilitch aprenderá, afinal, o significado da fé e do amor.

A Morte de Ivan Ilitch é um dos clássicos utilizados na disciplina “Humanidades Médicas”, já instituída em diversas universidades do país.

REFERÊNCIAS:
TOLSTÓI, L A morte de Ivan Ilitch. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1998.


terça-feira, 24 de agosto de 2010

"Olhai os Lírios do Campo" - Érico Veríssimo

Os médicos são personagens freqüentes na obra de Érico Veríssimo (1905 – 1975). Alguma vivência com o tema deu-lhe o período em que trabalhou numa farmácia, em sua terra natal, Cruz Alta, no interior do Rio Grande do Sul. Mais que os aspectos técnicos, no entanto, interessava-lhe a dimensão humana da profissão. Olhai os Lírios do Campo, do qual foi extraído o trecho abaixo, é exemplar nesse sentido:

“Ele principiava a ser um médico de verdade, estava diante da vida, atendia os seus clientes com toda a solicitude e às vezes tinha de esforçar-se para ser delicado e não se encolher diante de criaturas que, pelo aspecto físico ou pela natureza de seus males, lhe inspiravam repugnância ou mal-estar. Fazia-lhes perguntas, interessava-se pela vida deles. Aos poucos ia perdendo os velhos temores de fracasso e aquela sensação de que os outros não tinham confiança nele. Atirava-se à clínica cheio de coragem e isso já era a metade da vitória.”

Olhai os Lírios do Campo conta a história do dr. Eugênio Fontes, que, menino pobre, estuda medicina, apaixona-se por uma idealista colega, Olivia – mas opta por uma vida de conforto, casando com Eunice, filha de um rico empresário. Desgostoso com a existência fútil, volta a exercer a medicina, mas agora encarando a profissão por seu lado social e humano. Escrita em 1938, a obra denuncia a comercialização da medicina e propõe soluções: um sistema socializado, que imporia também uma triagem: “só seguiriam a profissão médica os que tivessem vocação”, diz Eugênio a seu colega e mentor, o dr. Seixas. Esse projeto encaixa-se num contexto mais amplo de transformação, pois é a sociedade que está doente: “A vida ali estava a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa. Os homens viviam tão ofuscados por desejos ambiciosos que nem sequer davam por ela. Nem com todas as conquistas da inteligência tinham descoberto um meio de trabalhar menos e viver mais. Agitava-se na terra e não se conheciam uns aos outros, não se amavam como deviam”.

Para Érico Veríssimo, a medicina é, sobretudo, um ato de amor.

REFERÊNCIAS:
1.VERÍSSIMO, Érico. Olhai os lírios do campo. 32. ed. Porto Alegre: Globo, 1976
2.SCLIAR, Moacyr, "A Paixão Transformada", Companhia das letras, São Paulo,
1996


domingo, 22 de agosto de 2010

Candidatos à internação numa enfermaria casual - Luke Fields

O pintor e ilustrador inglês Sir Samuel Luke Fildes (1843 - 1927) sempre deixou transparecer sua preocupação com os pobres, motivo que o fez juntar-se, no ano de 1869, à equipe do Jornal The Graphic, uma revista semanal editada pelo reformador social William Thomas Luson. Fildes compartilhava com Thomas a crença no poder das imagens para mudar a opinião pública sobre temas como a pobreza e a injustiça. Ambos esperavam que a comoção da sociedade diante das ilustrações resultasse em atos de caridade e ação social coletiva. Sob esta perspectiva, Luke Fildes pintou “Candidatos à internação numa enfermaria casual”, quadro que expressa vividamente o sofrimento dos pobres:

Candidatos à Internação numa Enfermaria Casual, Luke Fields, 1874; Óleo sobre tela, 137 x 243cm; Royal Holloway College de Londres Unversity

Aqui, o problema da saúde é tratado através da representação de um elenco de personagens familiares organizados em fila na porta de uma enfermaria. Observamos uma mãe solteira, talvez viúva, com duas crianças com fome, o funcionário com deficiência, buscando apoio do Estado, o bêbado na cartola, as crianças esfarrapadas, dentre outros.

Ainda nos dias atuais, a imagem acima é amplamente utilizada em diversas fontes para ilustrar os problemas da saúde pública.

LEIA MAIS:
"O Doutor" - Samuel Luke Fildes

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

"O Doutor" - Samuel Luke Fildes

O inglês Sir Samuel Luke Fields foi o artista responsável por um dos mais belos quadros que têm médicos como tema. A célebre obra retrata um médico pensativo observando uma criança gravemente doente:

" The Doctor",1891; Samuel Luke Fildes (1844-1927), Óleo sobre tela, Galeria Tate (Londres)

Ao pintar a criança enferma Fields inspirou-se no drama que viveu com o falecimento do seu filho na noite de natal de 1877. O quadro foi uma homenagem do pintor ao médico prestativo que assistiu seu filho até a hora da morte. Para que a tela fosse mais real possível, Luke Fields reproduziu no seu ateliê a sala de sua casa, palco do óbito de seu herdeiro.

No quadro, nota-se o médico em primeiro plano, olhando para sua paciente enquanto pensa se, a despeito do grau da enfermidade, é possível encontrar uma terapêutica eficaz.Observa-se também uma jovem doente, pálida, fraca e adormecida.

No fundo vemos uma mãe aflita, preocupada e desesperançosa, sua cabeça baixa traduz o desespero de quem espera o pior. Também é notável a expressão do pai, que não pode conter sua preocupação com a doença de sua filha, mas procura manter a calma, a fim de confortar a mãe. Se levarmos em consideração a época em que a tela foi pintada, é possível supor que o quadro retrata uma vítima de alguma doença infecciosa incurável, comum na era pré-antibiótica.



O Doutor foi concluído em 1891, atendendo a um pedido da rainha Vitória, da Inglaterra. O trabalho que custou três mil libras esterlinas, foi intermediado por Sir Henry Tate, em cuja homenagem existe atualmente em Londres, na Galeria Tates, onde essa obra de arte encontra-se exposta.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Tuberculose na Literatura Russa

Ninguém se salva sozinho. F.M.Dostoiévski

Em “O Idiota” o escritor russo Dostoiévski criou um personagem que sofria de uma grave doença pulmonar. São-nos bem conhecidas as caracteristicas clínicas conseguintes à infecção por Mycobacterium tuberculosis. Observando a descrição dos sintomas de Hipólito, dentre eles: tosse persistente, hemoptise, mal-estar generalizado, fraqueza, febre, sudorese noturna, calafrios, extrema palidez, prostração, etc; percebemos claramente que estamos diante de um caso de tuberculose pulmonar:

“Hipólito chegou. E tão fraco e cansado que se atirou sobre uma poltrona, sem pronunciar uma palavra, literalmente prostrado, logo desandando a tossir de maneira sofrida até vir sangue. Seus olhos emitiam chispas e duas rosetas rubras lhe tingiam as faces [...] Sua inquietação era quase convulsiva, e tinha a fronte pelada de suor... Sua inquietude provinha mais da febre do que da aglomeração [...] Os dentes do rapaz rangiam, como se o acometesse um calafrio [...] Lívido, Hipólito levou quase um minuto calado, com a respiração presa. Por fim, retomado o fôlego, pronunciou, com tremendo esforço...": “Nesse ínterim, segurei a maçaneta da porta para me ir sem lhe responder, mas estava sem fôlego, eu próprio, e a minha atrapalhação provocou tal acesso de tosse que mal me pude suster. Creio que levei tossindo uns três minutos ou mais [...] Procurei uma cadeira, fiquei quase sem poder tomar fôlego, respirando com muita dificuldade [...] Tal visita me cansou demais e não me senti nada bem aquela manhã, de tardinha me senti tão fraco que me estirei na cama, acometendo-me acessos de febre com rajadas de delírio

CONFISSÕES DE UM CONDENADO À MORTE

O texto abaixo, de beleza literária rara, discorre sobre o tempo em que a tuberculose, devido ao seu caráter extremamente agressivo e a falta de tratamento eficaz, era considerada incurável. Muitas vítimas pereciam por conta da moléstia. Foi nesse ambiente que Dostoiévski escreveu sobre o jovem Hipólito, personagem que aos 18 anos padecia da enfermidade, para traduzir a dor e a desesperança provocada pela tuberculose, à época equivalente a uma condenação. Algumas frases proferidas por Hipólito nos mostram o desespero de alguém que, ainda com sede de viver, descobre quão pouco tempo resta-lhe de vida:

“Não esquecer o pensamento: Não estarei maluco nesse instante, ou melhor, nesses minutos? Já me asseguraram, positivamente, que doentes como eu, em seu último estágio, perdem a cabeça por uns tempos [...] Mas é isso certo? É verdade que a minha natureza já se deixou vencer? Se eu for torturado por alguém, agora, naturalmente que ainda darei gritos, vociferarei e não direi que é indiferente sofrer só porque tenho duas semanas de vida [...] A idéia, prosseguiu ele, de que não vale a pena viver poucas semanas começou a me vir seguramente há um mês, quando eu dispunha apenas desse mês para viver [...] Admirei-me de te podido viver seis meses sem que ela me tivesse vindo antes. Estava farto de saber que não havia possibilidade de cura. Quanto a isso, nunca procurei me enganar. Compreendia a minha situação, claramente. Mas a verdade é que quanto mais claramente a compreendia mais desejo tinha de que a minha vida se prolongasse. Agarrei-me à vida, queria viver apesar de tudo [...] Conheci um pobre diabo que depois (segundo me contaram) morreu de fome. Quando vim a saber, fiquei furioso: minha vontade era ressuscitá-lo, se eu tivesse tal dom, somente para o executar, pois não se deve deixar-se morrer por tão pouco! [...] Que vontade que me vinha de me ver solto na rua, apenas com os meus dezoito anos, sem roupa, sem teto, completamente abandonado e só, sem trabalho, sem parentes de qualquer espécie, largado numa grande cidade, sentindo fome, desdenhado mas com saúde, pois então haveria de mostrar a todos... Que é que eu poderia mostrar? [...] Fique o mundo sabendo que Colombo foi feliz não quando descobriu a América mas sim quando a estava por descobrir."

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Autorretrato de Goya com o Doutor Arrieta

"Goya em gratidão ao seu amigo Arrieta pela competência e o cuidado com que ele salvou sua vida em sua doença aguda e perigosa sofrida no final de 1819 na idade de 73 anos. Pintou-o em 1820." F. Goya (inscrição que consta na parte inferior do Autorretrato de Goya com Dr. Arrieta)



Foi no outono de 1792 que Francisco José de Goya y Lucientes, pintor favorito dos reis de Bourbon, ficou febril e hemiplégico à direita, mesma época em que tornou-se surdo, possuía ele 46 anos de idade. Goya já tinha a saúde bastante debilitada, queixava-se frequentemente de fortes dores e fraqueza muscular, sintomas conseqüentes a uma intoxicação crônica resultante da absorção, por seu organismo, do chumbo (saturnismo) existente no pigmento branco da tinta que usava. Aos 73 anos (1819), sofreu novo acidente vascular cerebral, o que agravou sua hemiplegia. Seriamente doente, entregou-se aos cuidados do médico e amigo Eugenio García Arrieta. Logo que seu estado de saúde melhorou, Goya pintou o Autorretrato de Goya com o Doutor Arrieta para presentear ao médico como prova de sua gratidão pelo amparo recebido durante a doença. Nessa belíssima pintura, o artista retratou-se agonizante, com o rosto pálido, a boca ligeiramente aberta, aparentemente sem forças e sustentado pelo Dr. Arrieta, que com carinho e delicadeza ampara o enfermo enquanto lhe administra um medicamento por via oral.