quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

"O Médico Doente", de Drauzio Varella

Drauzio Varella, formado em Medicina pela USP, é um médico brasileiro que estreitou a ligação da ciência à arte. Notável escritor, publicou Estação Carandiru, obra que ganhou os prêmios Jabuti e Livro do Ano. Dentre outros livros, é autor também de Por um Fio e Borboletas da Alma.

Cancerologista há mais de quarenta anos, Drauzio convive com pacientes terminais diariamente. A estreita ligação com o tema, entretanto, não o preparou para viver a situação inversa.

Mal fechei os olhos, o quarto foi invadido por um batalhão de enfermeiras e auxiliares perguntando-me se apresentava alguma alergia, queixa cardíaca, pulmonar, urinária ou digestiva. Enquanto respondia a uma delas, outra instalava o aparelho de pressão em meu braço, e uma terceira colocava o termômetro e enlaçava a pulseira de identidade. Um técnico de laboratório passou um garrote para colher sangue e ligar o frasco de soro: ‘Vou dar uma picadinha’. Foi o primeiro de uma série de diminutivos que viriam a ser pronunciados. [...] O emprego do diminutivo infantiliza o cidadão. Deitado de camisola e pulseirinha, sem forças para agir por conta própria, cercado de gente que diz ‘Vamos tomar um remedinho’; ‘Abre a boquinha’; ‘Levanta a perninha’... há maturidade que resista?

Ao retornar de uma viagem à Floresta Amazônica em 2004, Varella sentiu um mal estar associado à febre e, após um período de relutância obstinada, interrompeu o atendimento em seu consultório e aceitou repousar. Dias depois, foi internado. As incertezas quanto ao diagnóstico cresciam conforme aumentava a febre.

Acompanhando de perto a aflição dos colegas, o paciente viu-se na angustiante posição de compreender melhor do que o doente comum a gravidade de seu caso. Astênico, com a mente embaraçada pela doença e pela morfina, ciente da gravidade de sua situação, o médico passou a considerar a possibilidade de que seus dias estavam contados.

Em “O Médico Doente”, o autor narra sua experiência sob a ótica clínica e cirúrgica. Do leito hospitalar ele retorna aos caminhos que o levaram à profissão e revela os sentimentos de um médico impotente, à beira da morte.

REFERÊNCIA:
1.Varella, Drauzio. “O Médico Doente”. Companhia das Letras, São Paulo, 2007.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Relato de um jogador patológico, por Dostoiévski

Jogo patológico é um transtorno psiquiátrico inserido nos manuais diagnósticos há cerca de 20 anos. Pode ser considerado um transtorno do espectro impulsivo-compulsivo,apresentando características compartilhadas com os transtornos por uso de substâncias psicoativas.

O portador do transtorno apresenta preocupação com o jogo e com a obtenção de dinheiro para jogar, incapacidade de controlar o comportamento do jogo, mesmo frente a nítidas conseqüências adversas sócio-ocupacionais e/ou legais.

Um caso de jogo patológico bastante representativo é narrado no livro O jogador, de Fiódor Dostoiévski.

Através do protagonista, Aleksei Ivanovitch, o autor evidencia a lancinante evolução do transtorno, evidenciando três fases bem definidas no comportamento de jogar: vitória (na qual o jogador consegue controlar o impulso para jogar, permitindo algum ganho com o jogo); perdas (onde o impulso para jogar se torna mandatório, interferindo na capacidade de avaliação e repercutindo em prejuízos finaneiros); e desespero (na qual o jogador apresenta prejuízos significativos em várias dimensões de sua vida pessoa).

Não só desviou os olhos da vida, dos seus próprios interesses, dos da sociedade, dos seus deveres de homem e cidadão, dos seus amigos (porque fez amigos), não só deixou de ter qualquer objetivo a não ser o do ganho, mas desligou-se mesmo de suas recordações... Lembro-me de si numa época apaixonada e intensa da vida, mas estou certo de que esqueceu as melhores impressões desse período; os seus sonhos, os seus desejos quotidianos não tem agora maior alcance senão o de “pair” e “impair”, “rouge”, “noir”, os doze números do centro, etc., etc., estou certo disso. (Dostoiévski em "O jogador").

Aleksei demonstra preocupação e atividade pessoal dirigidas exclusivamente ao jogo, mesmo com as inúmeras perdas financeiras e sociais, além dos problemas legais, exibindo todas as características clínicas que permitem considerá-lo um jogador patológico.

O autor, que relata com precisão o sofrimento psicológico associado ao jogo patológico era, provavelmente, um jogador compulsivo e, para quitar as dívidas decorrentes do transtorno, cumpriu um contrato com seu editor escrevendo este relato autobiográfico em apenas vinte e seis dias.

Sigmund Freud, em Dostoiévski e o parricídio, sugere que Dostoiévski, assim como os demais jogadores impulsivos, teriam um desejo inconsciente de perder, jogando para aliviar o sentimento de culpa. Nas palavras do pai da psicanálise:
Todos os pormenores de sua conduta impulsivamente irracional demonstram isso. Ele nunca descansava antes de ter perdido tudo. Para ele, o jogo era também um método de autopunição. (Freud em "Dostoiévski e o Parricídio").

REFERÊNCIAS:
1.Dias, FM. “Um jogador patológico por Dostoiévski” Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul vol.30 no.3 Porto Alegre Sept./Dec. 2008
2.Dostoiévski F. O jogador. Brasil: Editora 34; 2004
3.FREUD, S. "Dostoiévski e o parricídio". In: O Futuro de uma Ilusão, O Mal-Estar na Civilização e Outros Trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. pp.67-148.
4.OLIVEIRA, M; SAAD, AC. “Jogo patológico: uma abordagem terapêutica combinada”.J Bras Psiquiatr, 55(2): 162-165, 2006.