segunda-feira, 16 de setembro de 2013

"Delirium" na Obra de Machado de Assis

Narrado em primeira pessoa, a obra machadeana que introduziu o realismo na literatura brasileira conta a biografia do defunto-autor Brás Cubas que, após a sua morte, decide narrar suas memórias a fim de se distrair na eternidade.

Ainda nos primeiros capítulos, surgem explicações sobre o óbito do autor, detalhando o funeral e também sua causa mortis: uma pneumonia contraída enquanto criava o emplastro Brás Cubas – medicamento contra a melancolia e a falta de propósito, capaz de solucionar todos os “males do espírito”.
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Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. 

Senão quando, estando eu ocupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei. Tinha o emplasto no cérebro; trazia comigo a idéia fixa dos doidos e dos fortes.

Percorrendo o que antecedeu ao óbito, o capítulo VII, intitulado O Delírio, descreve contundentemente um episódio de delirium ou estado confusional agudo conseguinte a grave infecção do protagonista:

[...]Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos. 

Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim. Logo depois, senti-me transformado na Suma Teologica de São Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; idéia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzandoas eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino. — Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos. [...] 

Doravante, segue-se a narrativa atravessando os séculos, cruzando o presente e atingindo o futuro. Ao fim do capítulo, conclui o defunto:

Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...
REFERÊNCIAS: 
1.ASSIS, Machado. "Memórias Póstumas de Bras Cubas", 1880.
2.http://pt.wikipedia.org/wiki/Mem%C3%B3rias_P%C3%B3stumas_de_Br%C3%A1s_Cubas

domingo, 1 de setembro de 2013

Experiência de Quase Morte na Arte

Representações literárias e pictóricas de Experiências de Quase Morte (EQM) recorrem desde a antiguidade. O tema cativa o público devido a seu caráter misterioso e fascinante.

O termo EQM refere-se a um conjunto de alterações sensoriais e perceptivas vivenciadas durante a morte clínica, sendo esta caracterizada pela parada da respiração, da atividade cardíaca e do funcionamento cerebral, mas não pela impossibilidade de reanimação.

Platão, no Livro X de A República, relata o seguinte fato:


"A República". Platão.  Livro X (Pág. 81-83)
 O trecho acima conta a vivencia de um soldado chamado Er que, após uma grande batalha, já morto e em estado de putrefação, foi agrupado para ser incinerado conforme o costume, mas levantou-se do fogo funerário e contou o que aconteceu durante o período de sua morte clínica.

O Primeiro estudo descritivo destas experiências foi feito pelo geólogo Albert Heim em 1892, cujo interesse surgiu após experiência mística quando vítima de uma queda que teve nos Alpes. Durante décadas, o pesquisador colheu relato de alpinistas que sobreviveram a quedas aparentemente mortais, concluindo que as experiências vivenciadas próximas a morte assemelhavam-se entre si 95% dos casos.

O moderno interesse ocidental pelas experiências de quase morte aumentou após a publicação do livro Vida Após a Vida (1975) do escritor, médico e psicólogo Raymond A. Moody, que analisou 150 casos de experiências próximas da morte.

Pesquisadores descrevem traços comuns a estas experiências, tais como:
1) Projeção do corpo: sensação de deixar o corpo e pairar sobre ele, após acordado, comumente descrevem os fatos que ocorreram ao seu redor no momento da morte clínica.
2) Movimentos em um túnel: Sensação de locomoção num túnel escuro.
3) Visão de luz: Dirige-se a uma luz intensa, apaziguadora e bastante atrativa.
4) Encontro com pessoas já mortas: conhecidas ou não, seres sagrados, entidades não identificadas ou “seres de luz”.
5) Panorama da própria vida: O indivíduo experimenta um revisão da própria vida.
6) Fronteira: Descrevem a visão de um limite entre a vida terrena e uma outra vida.
7) Retorno à vida: Decisão voluntaria de voltar à vida se perceber que ainda há coisas a terminar.

O pintor holandês Hieronymous Bosch pintou este tema em sua obra Ascensão dos Abençoados:

Ascensão dos Abençoados. 1504. H. Bosch.
Em primeiro plano, embaixo, vemos pessoas morrendo que, enquanto morrem, estão rodeadas por seres espirituais que tentam direcionar sua atenção para cima. Sobre elas há um túnel que se perde na distância. No final do túnel há uma luz muito brilhante. Enquanto passam pelo túnel, as pessoas ajoelham-se em reverência a luz.

Diversos estudos sugerem que a experiência independe da formação educacional, orientação religiosa ou de qualquer outro fator demográfico; Outro dado interessante é que as pessoas com conhecimento anterior sobre EQM experimentaram este fenômeno com menor frequência que os indivíduos que ignoravam a existência de tais experiências, demonstrando assim que a EQM não é um produto de expectativas anteriores do indivíduo, invalidando portanto a coerente suposição da sugestionabilidade.
  
Melvin Morse, professor de pediatria da Universidade de Washington, publicou em 1998 o livro Transformados pela Luz, no qual descreve as mudanças ocorridas nos indivíduos que vivenciaram EQMs, dentre as alterações, destacam-se: o aumento de espiritualidade e da preocupação com os outros; a valorização da vida e menos medo da morte; fortalecimento da crença na vida após a morte; maior confiança e flexibilidade em lidar com as dificuldades e uma menor preocupação com status e posses materiais; maior amor ao próximo.

Mas qual seria a real origem de tais experiências? São várias as posições dos especialistas na tentativa de explicar o fenômeno de forma racional. Susan Blackmore, psicóloga inglesa, famosa pesquisadora sobre a etiologia da EQM, acredita que a experiência não passa de ilusões decorrentes de alterações no sistema neurotransmissor devido talvez a hipóxia, como artifício cerebral para evitar o trauma na hora da morte.

Outros defensores da teoria neurofisiológica sugerem que a interessante vivencia decorre de uma excitação no lobo temporal causada pelo estresse da proximidade com a morte, já que investigadores constataram que, estimulando eletricamente este lóbulo, podem imitar alguns aspectos da EQM, tais como a sensação de prazer e os sentidos das memórias da vida.

Explicações psicológicas defendem a despersonalização, na qual pessoas diante de uma realidade desagradável como a iminência da morte substituem essa realidade não aceita por fantasias plausíveis com o intuito de se proteger.

Os que acreditam na teoria da vida após a morte argumentam que a ciência necessita de melhores ferramentas para explicar porque indivíduos que passaram pela EQM descrevem detalhadamente o que ocorreu a seu redor enquanto socorridos e inconscientes. Os pesquisadores Ring e Cooper (1997, 1999) encontraram 31 casos em suas pesquisas de pessoas cegas (algumas de nascimento) que tiveram percepção visual e descreveram objetos e acontecimentos ao experienciarem uma EQM. Inúmeros registros comprovam que tais pacientes, quando reanimados, são capazes de narrar detalhadamente os procedimentos médicos sofridos durante a ressuscitação.

REFERÊNCIAS:
1. Souza, J.Z. "PODEMOS VOLTAR DA MORTE? Algumas reflexões sobre EQM." Psicol. Argum., Curitiba, v. 27, n. 56, p. 55-64, jan./mar. 2009. 
2. Morse, M., & Perry, P. (1997). Transformados pela luz. Rio de Janeiro: Record: Nova Era. 
3. PLATÃO. "A República". 380 a.C. 
4. Whinnery, J. E. (1997). Psychophysiologic correlates of unconsciousness and near-death experiences. Journal of Near-Death Studies, 15, 231-258.