Mostrando postagens com marcador #MÚSICA. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador #MÚSICA. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Efeito Mozart: Movimentos de um Gênio

Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), nasceu em 27 de janeiro de 1756 em Salzburgo, na Áustria, e cresceu numa família influente e intelectual.

"Mozart tocando em Verona", 1770, por Saverio dalla Rosa
Reconhecida como uma criança prodígio com um ouvido musical infalível, Mozart possuía memória musical impecável e habilidade para leitura desde os três anos de idade. Aos quatro anos, poderia dizer se um instrumento estava fora de sintonia. Tornou-se um excelente compositor aos cinco anos, concluindo sua primeira sinfonia ao completar oito anos. Deixo-nos um legado de mais de 600 peças musicais.

Casa onde Mozart nasceu. Salzburgo, Áustria.
Conversar sobre um dos maiores gênios musicais de todos os tempos oferece-nos uma oportunidade não só para refletir se algum distúrbio neuropsiquiátrico seria subjacente ao seu comportamento excêntrico, mas também para examiná-lo como um homem de poder criativo excepcional, responsável por contribuições imensuráveis para o universo cultural e para a musicoterapia.

Através de relatos extraídos das correspondências do próprio artista, bem como depoimento de amigos e familiares, pesquisadores e biográficos de Mozart registraram seu comportamento peculiar, apontando-o como portador de Síndrome de Tourette (ST) e comorbidades psiquiátricas.

Outrora considerada uma curiosidade rara psiquiátrica, ST – caracterizada pela presença de tiques múltiplos, motores ou vocais, – é agora reconhecida como um distúrbio neuropsiquiátrico relativamente complexo, que afeta cerca de 2% da população geral. Os tiques ocorrem em ondas, com frequência e intensidade variáveis, pioram com o estresse, são independentes dos problemas emocionais e frequentemente associados a sintomas obsessivo-compulsivos e distúrbio de atenção e hiperatividade.

Linguagem de Mozart

Regeur e, mais tarde, Davies e Keynes, estavam entre os primeiros pesquisadores que falaram sobre a presença de ST e Transtorno ciclotímico em Mozart.

Simkin, um endocrinologista, pianista, musicólogo e historiador, investigou a vida e arte de Mozart a partir de um ponto de vista médico e discutiu extensivamente a presença de ST em Mozart. Com base na investigação meticulosa de Simkin, evidência de escatografia existe em 39 de 371 cartas (10,5 %) escritas por Mozart. Nove destas cartas foram escritas a sua irmã, Marianne. Em suas cartas, Mozart fez uso excessivo de palavras obscenas, centradas principalmente na defecação e vulgaridades anais, sugerindo a presença de coprofilia.

Também em sua obra, coprografia é encontrada na letra de sete de suas composições. Exemplo de propensão para a linguagem chula é a composição de Mozart intitulada Leck mir den Arsch fein rein ("Lamba-me o traseiro bonito e limpo"), composta quando ele tinha 26 anos de idade.

No início do século XX, o escritor austríaco Stefan Zweig, colecionador de manuscritos musicais, propôs que os materiais escatográficos de Mozart fossem interpretados sob a ótica psiquiátrica. Zweig enviou cópias das cartas a Sigmund Freud com a seguinte sugestão:

Essas nove cartas lançam uma luz psicologicamente surpreendente em sua natureza erótica, que, ainda mais [em Mozart], que em outros homens importantes, tem elementos de infantilidade e coprofilia. Este poderia ser um estudo muito interessante para um de seus alunos. 

Freud aparentemente recusou a proposta de Zweig.

Como Schroeder observa, psicobiógrafos posteriores tomaram as cartas como provas das tendências psicopatológicas de Mozart:

Nunca foi Mozart menos reconhecidamente um grande homem em sua conversa e ações, do que quando ele estava ocupado com um trabalho importante. Nesse momento, ele não só apresentava discurso estranho, mas ocasionalmente fazia brincadeiras de uma natureza que não correspondia a alguém como ele;[ .... ] Ou ele intencionalmente escondia sua tensão interna atrás de uma frivolidade superficial, por razões que não poderiam ser sondadas , ou tinha prazer em colocar em nítido contraste as ideias divinas de sua música com as explosões repentinas de chavões vulgares.
Comportamento motor

Onze de vinte e cinco pessoas que conviveram com Mozart e contribuíram para suas memórias mencionaram presença de movimentos perpétuos e maneirismos. O músico exibia caretas faciais, movimentos involuntários repetitivos das mãos e dos pés e saltos. Tais características têm sido consideradas como tiques motores e usadas para apoiar o diagnóstico de ST.

Karoline Pichler (1769-1843), membro da intelligentsia em Viena, que tinha filiação musical com Mozart e Haydn, descreveu um comportamento “inadequado” de Mozart durante uma improvisação de As Bodas de Fígaro:
"... de repente, pareceu cansado de tudo isso, levantou-se subitamente, e, no clima louco que tantas vezes se aproximou dele, começou a pular sobre mesas e cadeiras, miar feito um gato, e dar cambalhotas como um menino rebelde"
Comorbidades

Sabe-se que um dos distúrbios comportamentais que mais comumente coexistem com a ST é o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), presente em até 50% dos portadores.

Mozart expôs características que sugerem fortemente que ele nutria pensamentos obsessivos e rituais compulsivos. Por exemplo, foi obsessivamente meticuloso sobre o modo de higiene de sua esposa:
Rogo-vos a tomar o banho apenas a cada dois dias, e só por uma hora.
Além disso, costumava praticar brincadeiras inadequadas e trocadilhos, entregando-se a um comportamento infantil, sem apreciação das consequências. Isto poderia ser interpretado como análogo ao déficit de controle de impulso ou transtorno de conduta, também comumente encontrados em portadores de ST.

Nannerl, irmã de Mozart, escreveu o seguinte sobre o seu irmão:
Apresentava mudanças de humor repentinas da tristeza para a euforia; se num instante era dominado por uma ideia sublime, no outro entregava-se a gracejos e ao ridículo.  
Este mesmo ser que, como um artista, alcançou o mais alto estágio de desenvolvimento até mesmo em seus primeiros anos, permaneceu até o fim de sua vida completamente infantil em todos os outros aspectos da existência. Nunca aprendeu a exercer as formas mais elementares de autocontrole.  
Wolfgang Hildesheimer, um historiador do século XX, comentou que Mozart:
Foi tão estranho para o mundo da razão como para a esfera das relações humanas. Ele foi guiado unicamente pelo objetivo do momento. 
Tais relatos sinalizam a presença de labilidade emocional e impulsividade.

Para investigadores, alguns elementos de comportamento de Mozart podem indicar a presença de déficit de atenção e hiperatividade. Por exemplo, enquanto compunha, simultaneamente envolvia-se em outras atividades, como caminhar, pular ou jogar billiard.

 “Fora da música, ele foi uma nulidade.” (Pichler) 

 Há como cindir o gênio do frívolo?

Contrastando com essas afirmações, permaneceu inabalada a confiança de Mozart em suas próprias capacidades musicais, exultando com elas, e não há traço em parte alguma de sua correspondência, nem nas memórias de seus contemporâneos, que acusem qualquer dúvida ou insegurança de sua parte neste aspecto.

Paradoxalmente aos relatos sobre o estado de saúde mental de Mozart, sua música, como a Sonata para dois pianos, em Ré Maior, K.448, é descrita como tendo um "Efeito Mozart", que inclui melhoria no QI e desempenho espacial-temporal e em partes do cerebelo dentro de alguns minutos nos ouvintes.



Pesquisas sugerem que a música de Mozart tem um efeito terapêutico em pacientes epilépticos, possivelmente por aumentar o fluxo de sangue para as áreas temporais, giro pré-frontal dorsolateral, occipital e cerebelo.

Há grande destaque, também, para as propriedades medicativas das composições: Concertos para violino nºs 3, em Sol Maior K.216 e nº 4, em Ré Maior K.218.

Embora haja inúmeros artigos atribuindo a personalidade e comportamento peculiar de Mozart como parte de um espectro de transtornos neuropsiquiátricos, a evidência para qualquer um desses distúrbios é inexistente.

A existência singular de Mozart mostra que sua extraordinária criatividade foi beneficamente carregada por sua distintiva cognição e função neurológica.

Sua música parece ter absorvido a totalidade magnânima que Mozart carregara em si, eternizando a grandiosidade de um gênio.

Consistentemente, o que sabemos é que, a despeito de seu criticado comportamento, seu trabalho criativo alcançou, tal como aspirou, um efeito divino: sua música é capaz de ir aos recônditos do ser, aplaca dores, humaniza, promove a cura, acalenta, harmoniza e potencializa as funções intelectuais dos ouvintes.

REFERÊNCIAS: 

1. Ashoori, A. Jankovic, J. ” Mozart's movements and behaviour: a case of Tourette's syndrome?” J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2007. 
2. Bodner M, Muftuler L T, Nalcioglu O. et al FMRI study relevant to the Mozart effect: brain areas involved in spatial–temporal reasoning. Neurology 2001 
3. Hounie, A. Petribú, K. “Síndrome de Tourette - revisão bibliográfica e relato de casos”. Rev Bras Psiquiatr, 1999. 
4. Simkin B. Mozart's scatological disorder. BMJ 1992. 5. Wolfgang Amadeus Mozart. Wikipédia

domingo, 24 de março de 2013

Noel Rosa e a Tuberculose Inspiradora

Há um tempo, famosos e enfermos privilegiados viviam em sanatórios nos Alpes suíços, acreditando ser o clima das montanhas favorável para a cura da tuberculose. No Brasil, Belo Horizonte, à época de sua fundação, em 1897, com seu clima ameno e situada a mais de oitocentos metros de altitude, tinha fama de ser um local propício para a sobrevida dos tuberculosos.

O notável sambista carioca Noel Rosa morou na jovem cidade, entre os anos de 1934 e 1935, obedecendo a recomendação do seu amigo e médico Edgar Mello, numa frustrada tentativa de curar sua tuberculose. Notas médicas afirmam que neste período a “doença romântica” já havia tomado um pulmão e indiciava avançar sobre o outro. Noel pesava 45 quilos.

Garçom servindo Noel Rosa; estátua localizada na entrada da Vila Isabel, Rio de Janeiro.

Ao final do primeiro mês na capital mineira, escreveu poeticamente para seu médico, Dr. Edgar, que residia no Rio de Janeiro:
 
"Meu dedicado médico e paciente amigo Edgar, um abraço. Se tomo a liberdade de roubar mais uma vez seu precioso tempo é porque tenho certeza de que você se interessa por mim muito mais do que mereço. Assim sendo, vou passar a resumir as noticias que se referem à marcha do meu tratamento. E para amenizar as agruras que tal leitura oferece resolvi fazer uso das quadras que se seguem: 

 

Já apresento melhoras pois levanto muito cedo

E deitar as nove horas pra mim já é um brinquedo

A injeção me tortura e muito medo me mete

Mas minha temperatura não passa de 37 

 

Nessas balanças mineiras de variados estilos

Trepei de varias maneiras e pesei 50 quilos 

Deu resultado comum o meu exame de urina

Meu sangue noventa e um por cento de hemoglobina 

 

Creio que fiz muito mal em desprezar o cigarro

Pois não há material pro meu exame de escarro

Ate' agora só isto para o bem dos meus pulmões

E nem brincando desisto de seguir as instruções

Que o meu amigo Edgard arranque desse papel

O abraço que vai mandar o seu amigo Noel"
 
 
A carta é uma extensão da obra do compositor, contendo os mesmos procedimentos identificáveis em suas canções, tais como: rimas improváveis, versas de duplo sentido, a sutil ironia peculiar a Noel Rosa e a distinta habilidade com a língua portuguesa. 

Apesar da busca pelo clima rarefeito a fim de minimizar as consequências da tuberculose, a vida boêmia nunca deixou de ser um atrativo irresistível para o artista, que optou não abrir mão do samba, das noites regadas à bebida e do tabagismo. De volta ao Rio em 1937, jurou estar curado, mas faleceu em sua casa no bairro de Vila Isabel no mesmo ano, aos 26 anos de idade.

Quarenta anos após a morte de Noel, o sambista João Nogueira musicou a “carta à Edgar”, incluindo-a em seu LP "Vida boêmia" (EMI-Odeon, 1978). Confira:


 

segunda-feira, 18 de abril de 2011

A arte que impulsionou Jacob Henle à Medicina

Em meados do século XIX, na altura em que a microscopia anatômica desenvolvia-se rapidamente na Europa, o conceituado patologista e cientista alemão Jacob Henle (1809-1885) estava a investigar a anatomia histológica do tecido renal. A partir de 1862, ele descreveu uma série de publicações afirmando a existência de minúsculas estruturas tubulares que corriam perpendicularmente na superfície dos rins até mergulharem no interior do órgão. Estava descoberta "a alça de Henle".

Não responsável somente por essa relevante contribuição à fisiologia, Jacob Henle também revisou e reorganizou toda a histologia da época, além de descrever detalhadamente as células epiteliais.

Friedrich Gustav Jacob Henle, nascido no estado alemão da Baviera, é um dos muitos pioneiros da Medicina a experimentar a fusão da vocação artística com a atividade médica.

Henle foi um excelente músico e poeta. Tocava não apenas um instrumento musical, mas toda a família das cordas existentes na época; com destreza manuseava o violino, a viola e o violoncelo. Entre seus amigos encontrava-se o famoso compositor alemão Felix Mendelssohn (1809-1847), autor dos oratórios Paulus e Elias. Henle é tipicamente descrito como um homem espirituoso, que freqüentemente promovia recitais e concertos em sua casa.

Uma curiosa coincidência médico-artística, que marcou a trajetória profissional de Henle, é que a opção deste pela Medicina esteve intrinsecamente ligada as suas atividades musicais. Foi exatamente num sarau, provavelmente em sua própria residência, que ele conheceu Johannes Muller (1801-1858), um notável pioneiro da fisiologia e anatomia humanas, responsável pela formação de muitos médicos alemães que deram forma à Medicina na segunda metade do século XIX. Do encontro nasceria um dos maiores nomes da medicina praticada daquele século, pois Henle, movido pelo entusiasmo e carisma do grande professor, bem como pela admiração que passou a nutrir pelo mesmo, logo sentiu-se compelido a estudar Medicina. Pouco depois, em 1827, Henle ingressou na Universidade de Bonn, onde teve por mestre o próprio Johannes Muller.

Os biógrafos de Henle costumam declarar que nenhuma parte do corpo humano costumavam escapar à sua curiosidade. Vale aqui ressaltar que a reputação de Henle como cientista era simplesmente louvável. Ele acreditava que doenças infecciosas eram causadas por microorganismos vivos que se espalhavam por meio de agentes orgânicos. Essa hipótese embasou os estudos de Pasteur (1822-1895) e encontrou confirmações históricas em Robert Koch (1843-1910) (um dos seus alunos mais brilhantes).

Como a alça de Henle, outras estruturas anatômicas ainda hoje levam seu nome, são exemplos, a camada externa das células dos folículos pilosos (camada de Henle), as membranas clássicas e fenestradas de Henle (situada nas artérias), e a espinha de Henle (situada na superfície do osso temporal).

Além das citações bibliográficas sobre sua insaciável curiosidade, há também documentos registrando que Henle possuía um finíssimo intelecto e que exibia um comportamento cauteloso e crítico diante das atividades das quais se ocupava, cultivando um profundo “envolvimento emocional” para com seus interesses. A convergência de tantas qualidades ofertou ao universo médico um dos seus exímios mestres e, claro, um admirável músico.

REFERÊNCIAS:
1. MOREL, F. The loop of Henle, a turning-point in the history of kidney physiology. Nephrol. Dial. Transplant. (1999) 14 (10): 2510-2515.
2. Evamaria Kinne-Saffran, Rolf K.H. Kinne. Jacob Henle: The Kidney and Beyond. Am J Nephrol 1994;14:355-360 (DOI: 10.1159/000168747).
3. Souza, Álvaro N. – Grandes médicos e grandes artistas – nomes que deram vida, a medicina e as artes. – Salvador, BA, 2006.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Leopold Auenbrugger - Músico Criador do Revolucionário Método de Examinar os Pacientes Através da Percussão das Cavidades

“A Auenbrugger pertence esta bela descoberta”. Jean-Nicolas Corvisart (1808)

Como o austríaco Auenbrugger, memorável personagem do universo médico, mudou completamente o modo de detectar as doenças que acometem as cavidades orgânicas?

As coisas se deram mais ou menos assim: até o século dezoito os principais meios diagnósticos disponíveis consistiam em ouvir adequadamente a história do paciente, inspecioná-lo, contar a freqüência respiratória e o pulso. Aferir a temperatura ainda era algo novo e não constava no exame padrão recomendado pelos professores da época. Estetoscópio? Nem pensar, ainda não existia (seria inventado por Laennec décadas mais tarde). Se uma determinada cavidade do corpo, a chamada caixa torácica, por exemplo, fosse acometida por uma doença qualquer, se enchia de um líquido estranho e os médicos não tinham outra forma de detectar a agressão senão no exame pós-morte, a autópsia. Com o mal longe dos olhos e das mãos dos médicos os danos eram inexoráveis.

Aí aparece a inventividade do nosso personagem, o médico e flautista Joseph Leopold Auenbrugger. Filho de um estalajadeiro, o médico aprendeu com o pai a avaliar a quantidade de vinho de uma barrica pela percussão. Quando se formou em medicina, teve a idéia – diz-se ele – de adaptar tal procedimento ao exame do doente. Ele foi o criador de um novo e revolucionário modo de examinar os pacientes: a percussão das cavidades orgânicas. Músico, ele estava familiarizado com coisas como ressonância, timbre, altura do som, o que lhe ajudou muito em seus estudos sobre o novo método.

Em condições normais as vibrações produzidas pela percussão do tórax são abafadas devido a grande diferença acústica observada entre a parede torácica e o parênquima pulmonar. Se o parênquima é substituído pelo ar, como ocorre na situação conhecida como penumotórax, a diferença acústica se acentua ainda mais, e o abafamento do som se torna mais pronunciado. O resultado é um som de maior amplitude e duração, francamente musical, descrito sempre como “timpânico” (em referência ao tímpano) instrumento musical presente em qualquer orquestra sinfônica da atualidade. Se o tecido pulmonar é preenchido por líquido ou algo sólido, a dita diferença acústica é minimizada e o som produzido se torna de baixa amplitude e curta duração, descrito usualmente como “surdo”.

Na literatura: Em 1761, o famoso médico publicou seu Inventum Novum ex Percussione Thoracis Humani, obra escrita em latim, de 97 páginas, que apresentou o revolucionário meio de investigação das cavidades orgânicas. Ao apresentar sua obra à comunidade científica, Auenbrugger escreveu:

Apresento ao leitor um novo método para detecção de doenças, descoberto por mim. Consiste na percussão do tórax e na avaliação das condições internas da cavidade de acordo com a ressonância do som assim produzido. Minhas descobertas não foram antes confiadas ao papel por causa de um incontrolável impulso ou pelo desejo de teorizar. Sete anos de observação tornaram o assunto claro pra mim, o suficiente para que me sinta em condições de publicá-lo. Sei que encontrarei oposição às minhas opiniões. A inveja e a acusação, o ódio e a calúnia sempre foram o ônus daqueles que iluminaram a arte ou a ciência com suas descobertas. Leopold Auenbrugger (1761).

De fato, somente 46 anos depois, quando o clínico francês Jean Nicolas Corvisart, médico pessoal de Napoleão Bonaparte, introduziu o método percussivo na prática clínica e divulgou sua tradução em francês do trabalho de Auenbrugger é que a importância do invento foi definitivamente estabelecida.

REFERÊNCIAS:
1. Sakula, Alex. Auenbrugger: Opus and Opera. J.Roy. College Physicians,Vol 12; 1978.
2. Souza, Álvaro N. – Grandes médicos e grandes artistas – nomes que deram vida a medicina e as artes. – Salvador, BA, 2006.
3. SCLIAR, Moacyr, "A Paixão Transformada", Companhia das letras, São Paulo, 1996

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A Mente Artística de Virginia Apgar – Idealizadora da Escala de Apgar

Virginia Apgar, médica anestesiologista famosa por sua tremenda contribuição à neonatologia, também costumava tocar viola com reconhecida destreza. De sua mente criativa, impulsionada pela inclinação musical, brotou a idéia que revolucionaria a história da Medicina.

A violinista que criou os próprios instrumentos musicais

O interesse de Virginia pela música iniciou-se ainda na infância, provavelmente assistindo os concertos domiciliares promovidos pelo pai. Na vida adulta, já médica e cientista reconhecida, o apego à música era tanto que, conforme consta, ela sempre levava seus instrumentos às viagens científicas. Enquanto desbravava seu nome na história da medicina, Apgar tocou em três orquestras: Teaneck Symphony of New York, Amateur Music Players e Catgut Acoustical Society. A partir de um determinado momento de sua vida, a Dra. Virginia passou a construir seus próprios instrumentos musicais. Aparentemente simples, o violino moderno é composto por 70 peças independentes. Por essa razão, ou seja, dado a complexidade do engenho usualmente são necessários artesãos bem adestrados para a tarefa. Então, como uma médica anestesiologista – ocupadíssima em salvar recém-nascidos e devolvê-los ativos às mães – foi transformar-se numa fabricante de violinos? A história é a seguinte. Dentre suas pacientes, estava Carleen Hutchins, uma fabricante de instrumentos de cordas. Enquanto se recuperava da cirurgia, deitada num leito de hospital, Hutchins percebe, manuseando e percutindo uma espécie de concha onde se alojava o aparelho de telefone, que o material poderia muito bem transformar-se nas costas de uma viola. Hutchins dirige-se a sua médica, Virginia Apgar, e pergunta se ela poderia ter aquela concha. Virginia atenciosamente garantiu que logo consultaria a direção do hospital. Naturalmente, o hospital não permitiu a doação e, de pronto, uma das mulheres mais importantes da história da Medicina moderna e sua paciente arquitetaram um plano audacioso. Enquanto a primeira vigiava, a moribunda, armada com uma serra e uma barra, tratou de substituir a tão cobiçada concha por outra peça não muito diferente. O plano foi um sucesso! Se o gosto musical e a adversidade já uniam aquelas duas mulheres, agora um “golpe” as tornava cúmplices. A mistura entre atenção médica, música e crime fez surgir uma forte amizade entre médica e paciente. Nos anos que se seguiram, Apgar construiu uma viola, um violino, um mezzo violino e um violoncelo, tudo sob a orientação de Hutchins.

A criação da Escala de Apgar

Em 1952, Virginia fez sua maior intervenção na Pediatria, mais especificamente, na neonatologia. Graças a ela, sempre que uma criança nasce aplica-se um teste de vitalidade denominado Escala de Apgar. Freqüência cardíaca, esforço e frequência respiratória, reflexos, tônus muscular e cor da pele são os critérios aplicados ao rebento; Zero, 1 ou 2 pontos, são atribuídos, em ordem decrescente de gravidade, a cada um dos importantes parâmetros. Em função desses resultados um conjunto de cuidados especiais é imediatamente dispensado ao bebê. Antes deste teste, a atenção pós-parto era quase que totalmente dedicada às mães, advindo dessa prática altas taxas de mortalidade dos infantes. Esta brilhante idéia surgiu durante um café da manhã no hospital em que trabalhava, do qual participavam Virginia e um estudante de medicina. Por alguma razão desconhecida, o estudante chamou-lhe a atenção para a necessidade de se avaliar melhor as crianças que nasciam naquela instituição. Convencida, Virginia disse ao estudante: “Isto é fácil. Faça desta maneira.” Assim, tomando um pequeno pedaço de papel distribuído pelo refeitório com orientações sobre como carregar a própria bandeja, Virginia escreveu os critérios que definiriam afinal a consagrada Escala de Apgar. Os resultados superaram as expectativas dos membros do hospital, visto que o método reduziu drasticamente a mortalidade infantil. Hoje em dia, este é o primeiro teste a que se submete qualquer recém-nascido.

Em 1974, durante a cerimônia fúnebre de Apgar,o prof. Stanley James, ex-assistente da mestra, pronunciou as seguintes palavras: "Aprender, era o foco de sua vida. Sua curiosidade era insaciável... ela nunca estava satisfeita. Essa rara qualidade capacitou-a a seguir na vida sem que se deixasse enjaular pelos costumes ou tradiçoes". Sem dúvida alguma, o anseio por descobrir e fazer mais, sentimento que emoldurou a trajetória de Virginia Apgar, está firmemente alicerçado na curiosidade.

Os instrumentos construídos por Virginia hoje repousam na Universidade de Columbia, como um marco do zelo e carinho de Apgar pela inventividade artística e música erudita.

REFERÊNCIAS:
Souza, Álvaro N. – Grandes médicos e grandes artistas – nomes que deram vida, a medicina e as artes. – Salvador, BA, 2006.
Goodwin, JW. “A personal recollection of Virginia Apgar. L Obstet Gynaecolofy; 2002.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A Doença de Frédéric Chopin

"O primeiro médico, ao olhar-me, disse que eu morreria; o segundo, que me restava um último suspiro; e o terceiro, que eu já estava praticamente morto." F. Chopin, Mallorca, 1838.

Frédéric François Chopin, brilhante compositor e pianista polonês, nasceu em 1 de março de 1810, em Elazowa Wola. Biograficamente, o artista é pintado como um jovem de saúde frágil, consequência de uma grave doença crônica iniciada na infância; malgrado a debilitação, Chopin é mundialmente conhecido como um dos maiores e mais importantes compositores da história.


Ary Scheffer (1795-1858): "Portrait of Frédéric Chopin", Versailles: Musée national du château et des Trianons.

Está além de qualquer dúvida que Chopin sofreu uma desordem crônica de múltiplos órgãos, possivelmente herdada, cujo sintoma predominante foi a tosse. No século 18, seus contemporâneos aceitaram o diagnóstico de tuberculose pulmonar, no entanto, descrição de novas entidades clínicas provocaram novos dilemas e, atualmente, a mais sustentável hipótese diagnóstica parece ser outra.

Encontramos sobre Chopin, tanto nos escritos de seus contemporâneos, quanto em cartas pessoais, notas sobre as queixas iniciadas ainda na infância. Além de freqüentes infecções do trato respiratório, o compositor apresentava distúrbios gastrintestinais que resultaram numa considerável perda de peso.

Em 1826, quando o músico possuía 16 anos de idade, adoeceu gravemente, e passou seis meses queixando-se de sintomas respiratórios e dores “insuportáveis” de cabeça. Aos 20 anos, mudou-se para França em busca de aperfeiçoar sua arte, mas nesse período, a doença de Chopin piorou, obrigando-o a mudar-se para a ilha mediterrânea de Mallorca, buscando um clima mais agradável. Mesmo no novo ambiente, a sua tosse produtiva, febre recorrente, hemoptise, perda de peso e astenia continuaram progredindo e ele apresentou uma exacerbação da infecção nasal acompanhada de um bloqueio muito incômodo da passagem de ar.

Em Mallorca, médicos locais concluíram que ele sofria de tuberculose pulmonar, em seguida, Chopin retirou-se para Paris, onde seus médicos, utilizando o recém inventado estetoscópio, discordaram de tal diagnóstico.

Chopin apresentou também sintomas de puberdade atrasada, e aos 22 anos de idade, ele escreveu “Em um lado há suíças, no outro simplesmente não vai nascer”(Kubba, YOUNG, 1998). Além disso, o pianista nunca chegou a gerar crianças, o que nos leva a crer numa possível infertilidade.

De acordo com George Sand, com quem Chopin manteve um relacionamento duradouro, ele por vezes apresentava dores abdominais e diarréias recorrentes, especialmente após comer carne de porco e outros alimentos gordurosos. (O'Shea, 1998).

No outono de 1849, sua saúde deteriorou-se ainda mais, sua respiração tornou-se intensamente penosa, acompanhada por exacerbadas crises de tosse. Chopin morreu em 17 de outubro de 1849, aos 39 anos de idade. Seu corpo foi enterrado no cemitério Pere Lachaise. Satisfazendo a vontade do músico, o "Requiem" de Mozart foi executado durante o funeral.

O atestado de óbito menciona tuberculose, mas uma autópsia realizada posteriormente pelo memorável patologista francês, Dr. Jean Baptiste Cruveilhier, declarou que tuberculose não foi encontrada nos pulmões nem em outros lugares. O médico afirmou nunca ter visto as mudanças patológicas observadas nos pulmões de Chopin.

Acredita-se que Chopin foi vítima de mucoviscidose, uma doença hereditária de secreção mucosa alterada, descrita primeiramente em 1932, originada por uma mutação no cromossoma 7, que impede a absorção de oxigênio nos pulmões e estimula o crescimento de bactérias causadoras de pneumonia. A manifestação mais grave da doença genética é chamada de fibrose cística, tal diagnóstico justificaria a o comprometimento gastrointestinal do músico, bem como os sintomas pulmonares, a infertilidade e a puberdade atrasada.

Além disso, os argumentos de fundo genético dos problemas de saúde de Frederic Chopin apontam em favor da fibrose cística. Em primeiro lugar, sua história familiar mostra que duas das suas três irmãs tinham queixas semelhantes e morreram prematuramente. Em segundo lugar, os três membros da família (F. Chopin e seus dois irmãos) tinham sintomas multiorgânicos progressivos que começaram na infância e não foram iniciados por qualquer causa conhecida.

Outra fato que nos leva a aventar que a afecção em questão se trata de fibrose cística é o "tórax em barril", característico da doença, e que pode ser visto claramente numa caricatura feita do compositor no ano de 1844:


Caricatura feita em 1844 mostra um tórax em barril e os membros finos de Chopin; M. Maurvois

A fibrose cística parece ser a única hipótese diagnóstica que explica todas as queixas de Chopin, porém, não há conclusões definitivas nesta enunciação. A análise genética do DNA do coração de Chopin, que se encontra em Varsóvia, poderia nos esclarecer essa dúvida, mas as entidades polacas ainda não autorizaram o exame.

O nome de Chopin evoca a imagem de um artista sentimental, um dos gigantes do período musical romântico. Sua música tornou-se um símbolo de sua tragédia pessoal e, por vezes, um protesto contra as restrições que a doença crônica o infligia. Cientistas seguem tentando revelar o segredo etiogênico da moléstia padecida pelo espetacular compositor durante a maior parte de sua vida, e é possivelmente em seu nobre coração que, se permitido, encontrarão a resposta.

REFERÊNCIAS:
KUBBA A.K., YOUNG M.A. (1998). The long suffering of Frédéric Chopin. Chest 113:210-216.
O’SHEA J.G. (1987). Was Frédéric Chopin’s illness actually cystic fibrosis? Med. J. Aust.147: 586-589.
Niecks F. Frederick Chopin: as a man and a musician. 2nd ed.London: Novello, Ewer, & Co., 1890;(vol 2)277-328
O’SHEA J.G. (1998). Muzyka i medycyna. [Music and medicine]. Polskie Wydawnictwo Muzyczne: 183-200.

domingo, 27 de junho de 2010

Theodor Billroth - Medicina e Música

“É uma das superficialidades do nosso tempo julgar como opostas a ciência e a arte. A imaginação é mãe de ambas.” Theodor Billroth

Christian Albert Theodor Billroth, conhecido como “pai” da moderna cirurgia abdominal, também foi um talentoso pianista e violinista amador.

O MÉDICO:

Billroth trabalhou como médico de 1853-1860 na Charité , em Berlim. De 1860-1867 foi professor na Universidade de Zurique e diretor do hospital cirúrgico de Zurique. Lá, publicou seu livro clássico: Die Allgemeine chirurgische Pathologie und Therapie (1863). Cinco anos depois, Billroth tornou-se professor de cirurgia na Universidade de Viena e, posteriormente, foi nomeado chefe da Clínica Cirúrgica II no Krankenhaus Allgemeine (Hospital Geral de Viena), foi nessa instituição que ele desenvolveu plenamente seus extraordinários talentos e inovações nas técnicas cirúrgicas. O quadro abaixo, pintado por Seligman em 1890, retrata Billroth operando no Krankenhaus Allgemeine:

O cirurgião, descrito como intuitivo e inventivo, foi responsável por uma série de cirurgias, incluindo a primeira esofagectomia (1871), a primeira laringectomia (1873) e a mais famosa, a gastrectomia (1881) para câncer gástrico que recebeu seu nome (Billroth I – gastrectomia com duodenostomia e Billroth II – gastrectomia com jejunostomia). Conta-se que Billroth foi apedrejado quase até a morte nas ruas de Viena, quando o primeiro paciente submetido à gastrectomia morreu após o procedimento.

O MÚSICO:

Relatos biográficos deixam claro que o primeiro amor de Billroth foi a música. Quando jovem, não pensava em ser médico; graças ao incentivo da mãe e família, entrou na escola médica, onde foi considerado um aluno deficiente e com incapacidade de se concentrar em quaisquer coisas que não a música. Tempos depois, apaixonado pela profissão de médico, o cirurgião escreveria “Descobri que a medicina é uma arte tão encantadora quanto as outras”. Passou a valorizar seu ofício, mas mesmo depois que tornou-se famoso como cirurgião, Billroth continuou a ser apaixonado por música clássica. Seus avós, ambos profissionais cantores de ópera, ensinaram-o a tocar piano durante a infância, desde então passou a ser familiarizado com as obras de compositores clássicos. Em 1960, Billroth conheceu Johannes Brahms, época em que o compositor era ainda uma estrela em ascensão da cena musical vienense. Eles se tornaram amigos íntimos, e, influenciado por ele, o cirurgião resolveu escrever um livro chamado "Wer ist Musikalisch?" , segundo ele, tratava-se de uma “pequena obra fisiológica e psicológica sobre a música”. A obra, publicada postumamente por Hanslick, foi uma das primeiras tentativas de aplicar métodos científicos à musicalidade. Em 1887, vítima de insuficiência cardíaca, Billroth morreu em Opatija, Áustria-Hungria , antes que pudesse concluir a investigação.

O notável médico historiador Henry Sigerist descreveu Billroth como um herói carismático e um dos mais agradáveis personagens da história da cirurgia.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Kazi RA, Peter RE. "Christian Albert Theodor Billroth: master of surgery"; J Postgrad Med 2004; 50:82-83.
Tan S Y, MD, JD and Davis C A; “Theodor Billroth (1829-1894): pioneer of modern surgery”; Singapore Med J 2008; 49 (1) : 4

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Impactos da surdez na vida e obra de Beethoven

"Quando encontro-me em profundo desespero, tenho paciência e penso: todo o mal traz consigo algum bem." Ludwig van Beethoven

É bem conhecido que o admirável músico alemão foi atormentado por uma progressiva surdez durante grande parte de sua vida. Essa condição levou o gênio a um isolamento social extremo devido ao qual sofreu grave depressão. Paradoxalmente, foi nesse momento que Beethoven alcançou uma linguagem musical ímpar em termos de emoções, chegando ao ápice do sucesso de sua carreira.

Através de fragmentos extraídos de textos escritos pelo próprio compositor, podemos conhecer o processo que culminou na grave deficiência auditiva, bem como avaliar a profunda angústia que esta lhe causou.


SURDEZ

Os primeiros sintomas ocorreram em Viena, tinha Ludwig os seus 26 anos de idade. Iniciada precocemente com um estranho zumbido, a surdez foi progredindo, até alcançar um estado irreversível de grave deficiência auditiva.

Numa carta ao amigo e médico Franz Gerhard Wegeler, datada de 21 de junho de 1801, o maestro refere detalhadamente a progressão dos sintomas, os tratamentos propostos por vários médicos, obviamente inúteis, e a angústia provocada pela ineficácia dos métodos empíricos.

Você tem tido notícia da minha situação? Os meus ouvidos nos últimos 3 anos estão cada vez mais fracos. Frank, o diretor do Hospital de Viena, procurou retonificar o meu organismo com tônicos e meus ouvidos com óleo de Mandorle. Não houve nenhum efeito, a surdez ficou ainda pior. Depois um asno de um médico me aconselhou banhos frios, o que me levou a ter dores fortes. Outro médico me aconselhou banhos rápidos no Danúbio, todavia a surdez persiste, as orelhas continuam a rosnar e estalar dia e noite. Te confesso que estou vivendo uma vida bem miserável. Há quase 2 anos me afastei de todas as atividades sociais, principalmente porque me é impossível dizer para as pessoas : Sou surdo !... Se minha profissão fosse outra, talvez poderia me adaptar à minha doença, mas no meu caso a surdez representa um terrível obstáculo. E se os meus inimigos vierem a saber ? O que falarão por aí? Para te dar uma ideia desta estranha surdez, no teatro eu tenho que me colocar pertíssimo da orquestra para entender as palavras dos atores e a uma certa distância não consigo ouvir os sons agudos dos instrumentos e do canto. Surpreendentemente, nas conversas com as pessoas muitos não notaram minha surdez, acreditam que eu sou distraído. Muitas vezes posso ouvir o som da voz mas não entendo as palavras, mas se alguém grita eu não suporto ! O doutor Vering me disse que certamente meu ouvido melhorará, se isso não for possível tenho momentos em que penso que sou a mais infeliz criatura de Deus.

Em de novembro de 1801, Beethoven, cheio de esperanças, reescreveu à Wegeler:

O que você pensa do doutor Schmidt? Parece ser um outro homem. Me contam maravilhas dele. O que você acha? Um médico me disse que viu em Berlim um menino surdo-mudo começar a ouvir e um homem surdo por sete anos se curar totalmente.

Chegou a consultar-se com o doutor Schmidt, que apenas recomendou que descansasse em Heilingenstadt, pequena aldeia proxima à Viena.

DEPRESSÃO:

E foi em Heilingenstadt que Beethoven atingiu a plenitude de seus pensamentos musicais. Lá também, escreveu o Testamento de Heilingenstadt, documento que nos prova o drama psicológico vivido pelo compositor em seu isolamento. A depressão do maestro, em parte, foi reflexo de sua doença, mas não deixemos de mencionar que, filho de um pai rígido e rude, Beethoven parece ter tido uma infância bem infeliz, o que, de fato, influenciou muito na crise que quase o levou ao suicídio.

Ó homens que me tendes em conta de rancoroso, insociável e misantropo, como vos enganais. Não conheceis as secretas razões que me forçam a parecer deste modo. Meu coração e meu ânimo sentiam-se desde a infância inclinados para o terno sentimento de carinho e sempre estive disposto a realizar generosas ações; porém considerai que, de seis anos a esta parte, vivo sujeito a triste enfermidade, agravada pela ignorância dos médicos. [...]Devo viver como um exilado. Se me acerco de um grupo, sinto-me preso de uma pungente angústia, pelo receio que descubram meu triste estado. Mas que humilhação quando ao meu lado alguém percebia o som longínquo de uma flauta e eu nada ouvia! Ou escutava o canto de um pastor e eu nada escutava! Esses incidentes levaram-me quase ao desespero e pouco faltou para que, por minhas próprias mãos, eu pusesse fim à minha existência. Foi a arte, somente a arte, que me salvou. Ah, parecia-me impossível deixar o mundo antes de ter dado tudo o que ainda germinava em mim![...]Esta foi minha vida, angustiosa. Quando lerem estas linhas saberão que aqueles que de mim falaram, cometeram grande injustiça. Peçam ao Dr. Schmidt para descrever minha doença para que o mundo possa se reconciliar comigo, ao menos após minha morte. Ludwig van Beethoven, in Testamento de Heilingenstadt, 6 de Outubro de 1802. [O testamento foi encontrado em Viena, numa pequena escrivaninha, anos após a sua morte.]

ESTUDOS PATOGÊNICOS:

Inúmeras hipóteses têm surgido para determinar as condições patológicas que causaram a surdez do músico, mas apesar das diversas propostas, a verdadeira natureza ainda é desconhecida. Segundo alguns autores, a perda progressiva e o zumbido tipo chiado referido por Beethoven são sintomas característicos de otosclerose. Um artigo mais recente defende que se trata de uma surdez tipo mista, devido ao início precoce, bilateral, simétrico e de evolução diferente de cada lado. Considera-se também a hipótese de que o ouvido interno pudesse ter sido acometido por uma neurite tóxica, infecciosa ou luética.

Dados da autópsia realizada no dia seguinte de sua morte:

"A cartilagem do pavilhão é grande e irregular. O meato acústico externo próximo ao tímpano mostra descamações epiteliais. A trompa de Eustáquio tem mucosa espessa e a parte óssea estreita. As células mastoideas e o parte petrosa do osso temporal principalmente próximo à
cóclea está hiperêmico. Os nervos acústicos estão atróficos e desmielinizados. As artérias auditivas estão dilatadas e escleróticas”. por Johann Wagner e Karl Rokitansi

A CRIAÇÃO - NONA SINFONIA:

Proporcionalmente ao processo de perda de audição, surgiram sons que “gritavam” na cabeça de Beethoven, sons estes que, segundo ele, expressavam sua alma e sua vida. Foram esses sons que deram origem a sua obra-prima. Completada em 1824, quando já quase completamente surdo, foi a última sinfonia composta por Beethoven. A mais conhecida obra do compositor foi apresentada pela primeira vez em Viena. O músico que regeu a sinfonia foi Michael Umlauf, na época também diretor do teatro. Beethoven hesitou a regência graças ao avançado estado de sua surdez. Ao término da apresentação, o artista não pode perceber que estava sendo ovacionado. Umlauf teria ido a ele e o virado em direção ao público para aceitar seus aplausos.

Abaixo, um vídeo com a representação da Nona sinfonia em sua estréia. Faz parte de “Beloved Immortal”, um filme magnificamente dirigido por Bernard Rose. O vídeo evidência a surdez diante da orquestra, a forma como a música “gritava em sua cabeça” fazendo-o ouvir enquanto relembra cenas da própria vida e Umlauf virando-o para receber os aplausos.



"Abracem-se milhões! Enviem este beijo para todo o mundo! Irmãos, além do céu estrelado Mora um Pai Amado. Milhões se deprimem diante Dele? Mundo, você percebe seu Criador? Procure-o mais acima do Céu estrelado! Sobre as estrelas onde Ele mora!" - Ode an die Freude, Schiller, 1786. (Nona sinfonia, quarto movimento).

Através da inevitável solidão Beethoven alcançou uma linguagem musical cheia de emoções, que provavelmente nunca teria conseguido em condições físicas normais. Já que não podia ouvir o mundo, a voz criativa que havia em si manifestou-se plenamente. Talvez a própria surdez, por isolá-lo do mundo e colocá-lo entre as estrelas, tenha sido uma das principais colaboradoras de sua genial obra.

REFERÊNCIAS:
1.MORRIS, EDMUND “Beethoven” , OBJETIVA, 2007.
2.BENTO, R. “A Surdez de Beethoven, O Desafio de um Gênio” Arq. Int. Otorrinolaringol. / Intl. Arch. Otorhinolaryngol.,São Paulo, v.13, n.3, p. 317-321, 2009.
3. Beethoven, Ludwig, "testament", Heiglnstadt, 6 de octubre de 1802.