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sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Efeito Mozart: Movimentos de um Gênio

Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), nasceu em 27 de janeiro de 1756 em Salzburgo, na Áustria, e cresceu numa família influente e intelectual.

"Mozart tocando em Verona", 1770, por Saverio dalla Rosa
Reconhecida como uma criança prodígio com um ouvido musical infalível, Mozart possuía memória musical impecável e habilidade para leitura desde os três anos de idade. Aos quatro anos, poderia dizer se um instrumento estava fora de sintonia. Tornou-se um excelente compositor aos cinco anos, concluindo sua primeira sinfonia ao completar oito anos. Deixo-nos um legado de mais de 600 peças musicais.

Casa onde Mozart nasceu. Salzburgo, Áustria.
Conversar sobre um dos maiores gênios musicais de todos os tempos oferece-nos uma oportunidade não só para refletir se algum distúrbio neuropsiquiátrico seria subjacente ao seu comportamento excêntrico, mas também para examiná-lo como um homem de poder criativo excepcional, responsável por contribuições imensuráveis para o universo cultural e para a musicoterapia.

Através de relatos extraídos das correspondências do próprio artista, bem como depoimento de amigos e familiares, pesquisadores e biográficos de Mozart registraram seu comportamento peculiar, apontando-o como portador de Síndrome de Tourette (ST) e comorbidades psiquiátricas.

Outrora considerada uma curiosidade rara psiquiátrica, ST – caracterizada pela presença de tiques múltiplos, motores ou vocais, – é agora reconhecida como um distúrbio neuropsiquiátrico relativamente complexo, que afeta cerca de 2% da população geral. Os tiques ocorrem em ondas, com frequência e intensidade variáveis, pioram com o estresse, são independentes dos problemas emocionais e frequentemente associados a sintomas obsessivo-compulsivos e distúrbio de atenção e hiperatividade.

Linguagem de Mozart

Regeur e, mais tarde, Davies e Keynes, estavam entre os primeiros pesquisadores que falaram sobre a presença de ST e Transtorno ciclotímico em Mozart.

Simkin, um endocrinologista, pianista, musicólogo e historiador, investigou a vida e arte de Mozart a partir de um ponto de vista médico e discutiu extensivamente a presença de ST em Mozart. Com base na investigação meticulosa de Simkin, evidência de escatografia existe em 39 de 371 cartas (10,5 %) escritas por Mozart. Nove destas cartas foram escritas a sua irmã, Marianne. Em suas cartas, Mozart fez uso excessivo de palavras obscenas, centradas principalmente na defecação e vulgaridades anais, sugerindo a presença de coprofilia.

Também em sua obra, coprografia é encontrada na letra de sete de suas composições. Exemplo de propensão para a linguagem chula é a composição de Mozart intitulada Leck mir den Arsch fein rein ("Lamba-me o traseiro bonito e limpo"), composta quando ele tinha 26 anos de idade.

No início do século XX, o escritor austríaco Stefan Zweig, colecionador de manuscritos musicais, propôs que os materiais escatográficos de Mozart fossem interpretados sob a ótica psiquiátrica. Zweig enviou cópias das cartas a Sigmund Freud com a seguinte sugestão:

Essas nove cartas lançam uma luz psicologicamente surpreendente em sua natureza erótica, que, ainda mais [em Mozart], que em outros homens importantes, tem elementos de infantilidade e coprofilia. Este poderia ser um estudo muito interessante para um de seus alunos. 

Freud aparentemente recusou a proposta de Zweig.

Como Schroeder observa, psicobiógrafos posteriores tomaram as cartas como provas das tendências psicopatológicas de Mozart:

Nunca foi Mozart menos reconhecidamente um grande homem em sua conversa e ações, do que quando ele estava ocupado com um trabalho importante. Nesse momento, ele não só apresentava discurso estranho, mas ocasionalmente fazia brincadeiras de uma natureza que não correspondia a alguém como ele;[ .... ] Ou ele intencionalmente escondia sua tensão interna atrás de uma frivolidade superficial, por razões que não poderiam ser sondadas , ou tinha prazer em colocar em nítido contraste as ideias divinas de sua música com as explosões repentinas de chavões vulgares.
Comportamento motor

Onze de vinte e cinco pessoas que conviveram com Mozart e contribuíram para suas memórias mencionaram presença de movimentos perpétuos e maneirismos. O músico exibia caretas faciais, movimentos involuntários repetitivos das mãos e dos pés e saltos. Tais características têm sido consideradas como tiques motores e usadas para apoiar o diagnóstico de ST.

Karoline Pichler (1769-1843), membro da intelligentsia em Viena, que tinha filiação musical com Mozart e Haydn, descreveu um comportamento “inadequado” de Mozart durante uma improvisação de As Bodas de Fígaro:
"... de repente, pareceu cansado de tudo isso, levantou-se subitamente, e, no clima louco que tantas vezes se aproximou dele, começou a pular sobre mesas e cadeiras, miar feito um gato, e dar cambalhotas como um menino rebelde"
Comorbidades

Sabe-se que um dos distúrbios comportamentais que mais comumente coexistem com a ST é o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), presente em até 50% dos portadores.

Mozart expôs características que sugerem fortemente que ele nutria pensamentos obsessivos e rituais compulsivos. Por exemplo, foi obsessivamente meticuloso sobre o modo de higiene de sua esposa:
Rogo-vos a tomar o banho apenas a cada dois dias, e só por uma hora.
Além disso, costumava praticar brincadeiras inadequadas e trocadilhos, entregando-se a um comportamento infantil, sem apreciação das consequências. Isto poderia ser interpretado como análogo ao déficit de controle de impulso ou transtorno de conduta, também comumente encontrados em portadores de ST.

Nannerl, irmã de Mozart, escreveu o seguinte sobre o seu irmão:
Apresentava mudanças de humor repentinas da tristeza para a euforia; se num instante era dominado por uma ideia sublime, no outro entregava-se a gracejos e ao ridículo.  
Este mesmo ser que, como um artista, alcançou o mais alto estágio de desenvolvimento até mesmo em seus primeiros anos, permaneceu até o fim de sua vida completamente infantil em todos os outros aspectos da existência. Nunca aprendeu a exercer as formas mais elementares de autocontrole.  
Wolfgang Hildesheimer, um historiador do século XX, comentou que Mozart:
Foi tão estranho para o mundo da razão como para a esfera das relações humanas. Ele foi guiado unicamente pelo objetivo do momento. 
Tais relatos sinalizam a presença de labilidade emocional e impulsividade.

Para investigadores, alguns elementos de comportamento de Mozart podem indicar a presença de déficit de atenção e hiperatividade. Por exemplo, enquanto compunha, simultaneamente envolvia-se em outras atividades, como caminhar, pular ou jogar billiard.

 “Fora da música, ele foi uma nulidade.” (Pichler) 

 Há como cindir o gênio do frívolo?

Contrastando com essas afirmações, permaneceu inabalada a confiança de Mozart em suas próprias capacidades musicais, exultando com elas, e não há traço em parte alguma de sua correspondência, nem nas memórias de seus contemporâneos, que acusem qualquer dúvida ou insegurança de sua parte neste aspecto.

Paradoxalmente aos relatos sobre o estado de saúde mental de Mozart, sua música, como a Sonata para dois pianos, em Ré Maior, K.448, é descrita como tendo um "Efeito Mozart", que inclui melhoria no QI e desempenho espacial-temporal e em partes do cerebelo dentro de alguns minutos nos ouvintes.



Pesquisas sugerem que a música de Mozart tem um efeito terapêutico em pacientes epilépticos, possivelmente por aumentar o fluxo de sangue para as áreas temporais, giro pré-frontal dorsolateral, occipital e cerebelo.

Há grande destaque, também, para as propriedades medicativas das composições: Concertos para violino nºs 3, em Sol Maior K.216 e nº 4, em Ré Maior K.218.

Embora haja inúmeros artigos atribuindo a personalidade e comportamento peculiar de Mozart como parte de um espectro de transtornos neuropsiquiátricos, a evidência para qualquer um desses distúrbios é inexistente.

A existência singular de Mozart mostra que sua extraordinária criatividade foi beneficamente carregada por sua distintiva cognição e função neurológica.

Sua música parece ter absorvido a totalidade magnânima que Mozart carregara em si, eternizando a grandiosidade de um gênio.

Consistentemente, o que sabemos é que, a despeito de seu criticado comportamento, seu trabalho criativo alcançou, tal como aspirou, um efeito divino: sua música é capaz de ir aos recônditos do ser, aplaca dores, humaniza, promove a cura, acalenta, harmoniza e potencializa as funções intelectuais dos ouvintes.

REFERÊNCIAS: 

1. Ashoori, A. Jankovic, J. ” Mozart's movements and behaviour: a case of Tourette's syndrome?” J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2007. 
2. Bodner M, Muftuler L T, Nalcioglu O. et al FMRI study relevant to the Mozart effect: brain areas involved in spatial–temporal reasoning. Neurology 2001 
3. Hounie, A. Petribú, K. “Síndrome de Tourette - revisão bibliográfica e relato de casos”. Rev Bras Psiquiatr, 1999. 
4. Simkin B. Mozart's scatological disorder. BMJ 1992. 5. Wolfgang Amadeus Mozart. Wikipédia

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Demência: Autorretratos de William Utermohlen

William (Bill) Utermohlen nasceu em 1933 numa família de imigrantes alemães no sul da Filadélfia.

Integrou a Academia de Belas Artes da Pensilvânia no periodo entre 1951-1957.
Viveu a maior parte da carreira artística em Londres, onde residia com sua esposa, Patricia, uma historiadora de arte.

Conversação. 1990. Óleo sobre tela.
Ironicamente, o acervo de Bill retrata preferencialmente comunicações interpessoais – anos mais tarde prejudicada no artista devido ao declínio das habilidades comunicativas provocado pela doença de Alzheimer – , sendo poderosamente sensoriais, com cores intensas e arranjos espaciais envolventes, amplificado as interações dos membros da composição.

Ao receber o diagnostico de doença de Alzheimer, em 1995, seu estilo mudou dramaticamente. Pinceladas mais espessas refletem um sentimento urgente e expressionista.

Bill inicia uma série de trabalhos expressando não mais a conexões entre seres, mas uma variedade de estados espontâneos de espírito, incluindo tristeza, raiva e resignação.

A obra de Bill oferece uma narrativa visual única da experiência subjetiva de um paciente que sofre de demência. O artista pinta as mudanças graduais que vivencia – alterações que não consegue mais transmitir em palavras.

Se por um lado o declínio cognitivo engessa seus gestos e linguagem limitando o contato externo material, por outro, a liberdade do espírito criativo interno amplia a proximidade humana através das emoções expressas em seus autorretratos:

Blue Skies. 1995.
Em Blue Skies (1995) o artista testemunha o anúncio de sua doença e seu declínio iminente . O diagnóstico desta morte psíquica, que ocorre antes da morte real, produz um medo profundo. O tempo parou. O exterior é vazio. Um buraco oblíquo encontra-se acima pronto para sugá-lo. Para não ser devorado pela escuridão, ele paira sobre a mesa como um náufrago em sua jangada, como um pintor amarrado em sua tela.

Broken Figure. 1996. 

O diagnóstico é claro. Os médicos agora estão testando a memória de Bill. Eles perguntaram-lhe se ele ainda sabe o dia, o mês, o ano, e o lugar em que está. Questionam se ele ainda pode memorizar uma lista de palavras, completar uma subtração simples, nomear objetos comuns, ou realizar a cópia de simples formas geométricas. A humilhação de não conseguir responder a estas perguntas simples quebra sua auto-confiança. Em breve, ele sente que não será capaz de responder quaisquer perguntas. Toda a esperança de uma cura ou mesmo uma estabilização da sua condição está perdida. Confrontado por seu próprio declínio, a queda em sua auto-estima é vertiginosa. O retrato mostra um “eu” fragmentado.

Autorretrato - 1996
Este autorretrato fixa uma imagem de si mesmo. Bill compartilha a experiência de viver com a doença de Alzheimer testemunhando, através de seu trabalho, sua verdade pungente - ele espreita o exterior atrás das grades da prisão.

Duplo Autorretrato. 1996

Sabendo agora que a fonte de sua doença é sua cabeça, ele se concentra no contorno de seu crânio, delineando duas vezes na cabeça que surge à esquerda. Seu olhar transparece carga e resignação; à direita, sua expressão é brava e machucada.

Máscara. 1996.

A pintura acima reflete a transição de ser para não-ser. O autor registra o instante em qual o “eu” se afasta do si mesmo, se derrete, deixando apenas silêncio para trás.

Autorretrato. 1997


Neste auto-retrato, a serra vertical, como uma lâmina de guilhotina, simboliza a aproximação de uma morte prefigurada. A divisão entre o que ele sente, o que ele gostaria de fazer ou dizer, e o que ele é realmente capaz de fazer é maior a cada dia. É um encontro com o “eu” desconhecido. Suas possibilidades de expressão já não são suficientes para expressar a natureza extrema de sua experiência.

Autorretrato (verde). 1997 

Dois anos após o diagnóstico, os autorretratos são distintamente diferentes. As formas são turvas. Motivação, atenção, memória e reconhecimento visual estão agora desorganizados e tornam as tarefas desajeitadas. Emoções são precisamente expressas – nota-se o sentimento de tristeza, ansiedade, resignação e impotência.

Autorretrato. 1998; Autorretrato, 1955.

Sozinho no estúdio, Bill quer experimentar novamente os velhos movimentos da pintura. Desta vez, ele inspira-se num antigo autorretrato, quando ele tinha 22 anos de idade. O autorretrato de 1998 mostra a mudança na arquitetura de sua psique. Sua cabeça está totalmente enquadrada pelo retângulo de seu cavalete. As linhas vermelhas e amarelas estreitam a constrição de sua cabeça e servem para desligar este último retrato de si mesmo.

Autorretrato Apagado, 1999. Cabeça, 2000. 

Cinco anos após o dianóstico, o artista pinta os últimos autorretratos. Neles surge a tentativa de estruturação de uma cabeça desmontada. O artista tenta evocar uma imagem primordial de si mesmo, mas o que emerge é algo estranho e ameaçador.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

"Delirium" na Obra de Machado de Assis

Narrado em primeira pessoa, a obra machadeana que introduziu o realismo na literatura brasileira conta a biografia do defunto-autor Brás Cubas que, após a sua morte, decide narrar suas memórias a fim de se distrair na eternidade.

Ainda nos primeiros capítulos, surgem explicações sobre o óbito do autor, detalhando o funeral e também sua causa mortis: uma pneumonia contraída enquanto criava o emplastro Brás Cubas – medicamento contra a melancolia e a falta de propósito, capaz de solucionar todos os “males do espírito”.
.

Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. 

Senão quando, estando eu ocupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei. Tinha o emplasto no cérebro; trazia comigo a idéia fixa dos doidos e dos fortes.

Percorrendo o que antecedeu ao óbito, o capítulo VII, intitulado O Delírio, descreve contundentemente um episódio de delirium ou estado confusional agudo conseguinte a grave infecção do protagonista:

[...]Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos. 

Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim. Logo depois, senti-me transformado na Suma Teologica de São Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; idéia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzandoas eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino. — Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos. [...] 

Doravante, segue-se a narrativa atravessando os séculos, cruzando o presente e atingindo o futuro. Ao fim do capítulo, conclui o defunto:

Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...
REFERÊNCIAS: 
1.ASSIS, Machado. "Memórias Póstumas de Bras Cubas", 1880.
2.http://pt.wikipedia.org/wiki/Mem%C3%B3rias_P%C3%B3stumas_de_Br%C3%A1s_Cubas

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Demência de Alzheimer em "As Viagens de Gulliver" (1726)

Em 1906, Alois Alzheimer registrou na literatura médica a doença que leva seu nome. Entretanto, séculos atrás, observações sobre a demência já haviam sido relatadas não no universo científico, mas na literatura romântica.

A descrição das mudanças comportamentais observadas no envelhecimento que estampa uma das páginas do livro favorito de Voltaire, As Viagens de Gulliver (1726) – assinado por Jonathan Swift, é bastante sugestiva de doença de Alzheimer:

Em seguida, descreveu-me os Struldbruggs, dizendo que eram semelhantes aos mortais e como eles viviam até aos trinta anos; que, depois dessa idade, caíam a pouco e pouco em negra melancolia, que aumentava sempre até atingirem os oitenta; que, por então, não eram apenas sujeitos a todas as enfermidades, a todas as misérias e a todas as fraquezas dos velhos dessa idade, mas a aflitiva ideia da eterna duração de sua miserável caducidade os atormentava a tal ponto que nada podia consolá-los; que não eram simplesmente, como todos os outros velhos, cabeçudos, rabugentos, avarentos, carrancudos, linguareiros, mas gostavam de si próprios, renunciavam às doçuras da amizade, não dispensavam ternura a seus filhos e que, além da terceira geração, já não conheciam a posteridade; que a inveja e a raiva os devoravam continuamente; e que a vista dos sensíveis prazeres de que usufruem os juvenis mortais, os seus divertimentos, os seus amores, os seus exercícios os faziam de certo modo morrer a cada momento; que tudo, até a própria morte dos velhos que pagavam o tributo à natureza, lhes excitava a raiva e os mergulhava no desespero; que, por essa razão, todas as vezes que viam realizar-se um enterro, maldiziam a sua sorte e se queixavam amargamente da natureza, que lhes recusara a doçura de morrer, de acabar a sua aborrecida carreira para entrar num eterno repouso, que já não se encontravam em estado de cultivar o espírito; que a memória enfraquecia; que mal se lembravam do que tinham visto e aprendido na sua mocidade e na idade madura; que os menos miseráveis eram os que tinham entontecido, que tinham perdido completamente a memória e estavam reduzidos ao estado infantil; esses, ao menos, encontravam quem se condoesse deles, dando-lhes todos os recursos de que necessitavam.”
O trecho acima descreve o momento em que Gulliver encontra os luggnaggianos, entre os quais vive a raça imortal de Struldbruggs, indivíduos destinados a nunca morrer, mas que sofrem a devastação e as enfermidades conseguintes a idade avançada.

Inicialmente, Gulliver deduz que essas pessoas são singularmente sábias, dadas as suas décadas de aprendizado e cultura. O protagonista se surpreende ao perceber que, na verdade, os imortais viviam socialmente isolados e deprimidos, sem o alívio final da morte, exibindo todas as consequências negativas de senescência extrema, como a perda da função e redução da vitalidade.

Literatos sugerem que este retrato de senilidade fora elaborado por Swift a partir da observação do seu tio Godwin, que sofreu perda considerável de memória com o envelhecimento.

Neurologistas afirmam que a descrição de Swift seria uma espécie de premonição sobre seu próprio futuro estado mental. Escritos do mais famoso escritor da época refletem seu interesse pelos temas psicológicos e psiquiátricos.

Durante os últimos anos de vida, Jonathan Swift sofreu mentalmente o declínio cognitivo que descreveu, sendo por isso rotulado pelos seus contemporâneos como “o louco”. Dez anos antes de sua morte, em outubro de 1735, seus amigos observaram uma deterioração de sua memória e dificuldade de reconhecer as pessoas. O proprio autor registrou “Eu perdi completamente minha memória e quase não entendo uma palavra do que escrevo”. Em outubro de 1745, aos 78 de sua idade, faleceu o admirável escritor, legando a maior parte de sua fortuna para construir e dotar um hospital para “lunáticos, idiotas e incuráveis".

REFERÊNCIAS:
Miranda CM , Pérez JC , Slachevsky Ch A. "Contribuição científica de Jonathan Swift em suas "Viagens de Gulliver". . Rev Med Chil 2011 Mar; 139.
Lewis, JM. "Jonathan Swift and Alzheimer's disease". Lancet. 1993 Aug 21;342(8869):504.
Lorch, M. "Language and memory disorder in the case of Jonathan Swift: considerations on retrospective diagnosis." Oxford Journals Medicine Brain Volume 129, Issue 11 Pp. 3127-3137.

sábado, 4 de agosto de 2012

Paralisia Cerebral por Sofrimento Fetal na obra de Shakespeare

William Little (1810-1894), sofrendo das sequelas de uma poliomielite que lhe paralisara a perna esquerda, estudou Medicina acreditando que assim poderia tratar-se e curar-se. Anos depois, ao tornar-se especialista em cirurgia ortopédica, sustentava a possibilidade de descrever a etiologia dos transtornos motores cerebrais em crianças.

Não encontrando trabalhos científicos anteriores em que basear-se, recorreu a William Shakespeare (1564-1616).


Veio-lhe então à memória um fragmento de A Tragédia de Ricardo III (1593), onde o personagem Ricardo profere sua deficiência física e dificuldade de marcha, em associação com antecedentes de asfixia perinatal e prematuridade:

Eu, que privado sou da harmoniosa proporção, erro de formação, obra da natureza enganadora, disforme, inacabado, lançado antes de tempo para este mundo que respira, quando muito meio feito e de tal modo imperfeito e tão fora de estação que os cães me ladram quando passo, coxeando, perto deles. (Ato I, cena: I)

Também na obra, Lady Anne, viúva do príncipe de Gales, assim amaldiçoou Ricardo:

Se alguma vez tiver um filho, que nasça malformado, estranho, fora do tempo, que o seu aspecto feio e monstruoso assuste a esperançosa mãe, quando o vir; e que lhe herde a desventura. (Ato I, cena: II).

Segundo o poeta, o nascimento “fora do tempo” ocasionaria uma condição defeituosa também no filho do prematuro Ricardo.

Valorizando a descrição de Shakespeare, Little relacionou as complicações obstétricas – principalmente relacionadas à prematuridade – ao déficit de desenvolvimento motor em crianças. O cirurgião passou a observar a frequência dos problemas perinatais, postulando que os defeitos motores dependiam de maneira direta de dificuldades no momento do parto.

Em 1843, o cirurgião sugeriu à comunidade científica que havia uma associação entre a paralisia cerebral e a anoxia neonatal. Seus primeiros artigos aceitos pela Lancet, em 1844 e 1861, descreviam suas observações sobre um grupo de crianças com anormalidades do tônus muscular e desenvolvimento, além de versar sobre a rigidez espástica das extremidades nos neonatos. Muitas destas crianças, de fato, tinham antecedentes de complicações no parto.

O ponto alto foi o artigo publicado em 1862 “Da influência do parto normal, dificuldades do parto, parto prematuro e asfixias do neonato e sobre o estado mental e físico da criança, principalmente no concernente a deformidades”.


Little ocupou-se intensamente com o estudo da espasticidade, descrevendo pela primeira vez o que hoje chamamos de paralisia cerebral, na forma de diplegia espastica, que passou a chamar-se doença de Little.

A partir daí, o transtorno motor por lesão cerebral foi doença com que se ocuparam neurologistas e ortopedistas, a fim de melhorar as possibilidades cirúrgicas indicadas por Little.

Freud, após conhecer o trabalho de Little, descreveu em várias monografias a diplegia espástica, entretanto, especulou que as dificuldades perinatais eram resultados de anormalidades preexistentes no feto. O pai da psicanálise foi quem sugeriu, em 1897, a expressão "paralisia cerebral".

Define-se como Paralisia Cerebral (PC) um déficit motor central não progressivo que se origina em eventos nos períodos pré-natal ou perinatal. O mais comum evento etiológico é a anoxia cerebral; Outra causa comum seria o trauma mecânico cerebral ao nascimento. A forma espástica (cuja lesão é localizada no trato piramidal), é encontrada em 88% dos casos.

A PC classifica-se, pela topografia da lesão, como tetraplegia, monoplegia, diplegia e hemiplegia. Flexão e rotação interna dos quadris, flexão dos joelhos e equinismo são as deformidades mais freqüentes nas crianças que adquirem marcha. Quando a adução dos quadris é acentuada, conduz ao cruzamento das pernas (pernas em tesoura). Os reflexos tendinosos são ativos, às vezes com um prolongado clonus do pé. São comuns a contratura dos tendões dos calcanhares, limitações dos quadris em abdução e rotação externa, e limitação dos antebraços em extensão e supinação.

Atualmente, sabe-se que quando a lesão causadora da PC atinge a porção do trato piramidal responsável pelos movimentos das pernas, localizada em uma área mais próxima dos ventrículos, a forma clínica é a diplegia espástica (doença de Little), na qual o envolvimento dos membros inferiores é maior do que dos membros superiores. A região periventricular é muito vascularizada e os prematuros, por causa da imaturidade cerebral, com muita frequência apresentam hemorragia nesta área.

Desprovido de embasamento científico, mas empregando seu transcendente poder observacional, Shakespeare foi quem primeiramente associou o déficit motor às condições de nascimento.

REFERÊNCIAS:
1.LEITE, J. PRADO, G. “Paralisia cerebral Aspectos Fisioterapêuticos e Clínicos”. Revista neurociências. Volume 12 - n°1 – 2004.
2.Muzaber, F.L. Schapira, I. “PARÁLISIS CEREBRAL Y EL CONCEPTO BOBATH DE NEURODESARROLLO”. Rev. Hosp. Mat. Inf. Ramón Sardá 1998, vol. 17, Nº 2.
3.Flehmig, Inge. “Texto e atlas do desenvolvimento normal e seus desvios no lactente: diagnóstico e tratamento precoce do nascimento até o 18 mês”. São Paulo: editora Atheneu,2000.
4. Paralisia Cerebral: Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação.: http://www.sarah.br/paginas/doencas/po/p_01_paralisia_cerebral.htm

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Paralisia de Bell em pintura de Francisco Goya

Assimetria facial é uma condição relativamente comum na população e freqüentemente aparece em obras artísticas. Imagens de antigas esculturas representando paralisia facial podem ser vistas clicando aqui.

Na pintura, o retrato Don Andres Del Peral, feito por Francisco Goya, é um exemplo claro de assimetria facial atribuível a paralisia facial unilateral:

Don Andres del Péral (1797). Francisco de Goya. Galeria Nacional , Londres, (Inglaterra).
Também conhecida por paralisia de Bell ou paralisia facial idiopática, a assimetria caracteriza-se pela afetação unilateral dos músculos da expressão facial.

Andres Del Peral, também artista, fora amigo de Goya em Madrid. O pintor retratou-o do lado direito, minimizando a desfiguração causada pela paralisia facial à esquerda.


REFERÊNCIAS:
1.SALTER, V. “Medical conditions in works of art”. British Journal of Hospital Medicine, February 2008, Vol 69, No 2.
2.SMITH,M. “Neurology in the National Gallery”. J R Soc Med 1999;92:649-652.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Freud explica a epilepsia

A literatura, mais especificamente a intensa vida emocional transparecida na obra do escritor Fiódor Dostoiévski, inspirou Sigmund Freud a escrever Dostoiévski e o Parricídio (1928), ensaio onde o psicanalista destrincha a distinta e complexa personalidade do escritor. Quatro aspectos humanitários relevantes são analisados na obra: o artista criador, o neurótico, o moralista e o pecador.

Freud analisa também a epilepsia de Dostoiévski, concluindo que as crises são conseguintes à extraordinária atividade emocional do escritor, e que essas crises também podem ocorrer em outras pessoas que apresentam uma vida emocional excessiva, via de regra insuficientemente controlada.

É, portanto, inteiramente correto distinguir entre epilepsia orgânica e epilepsia ‘afetiva’. A significação prática disso é a de que uma pessoa que sofre do primeiro tipo tem uma moléstia do cérebro, ao passo que a que padece do segundo é neurótica. No primeiro caso, sua vida mental está sujeita a uma perturbação estranha, oriunda de fora; no segundo, o distúrbio é expressão de sua própria vida mental.(Freud em Dostoiévski e o Parricídio.)

O trecho acima mostra que Freud distingue claramente o que atualmente é classificada como epilepsia secundária da epilepsia idiopática. No primeiro caso, a causa é definida pela exacerbação paroxística de determinada função cortical devido a tumores cerebrais, AVC isquêmico, vasculites ou outra causa orgânica; no segundo, mesmo com todos os sofisticados exames de neuroimagem, não se descobre nenhum substrato orgânico.

Sabe-se que a excitação emocional está direta e indiretamente ligada a ocorrência de crises epilépticas. A tensão causada por tarefas cognitivas estressantes reduz o limiar epiléptico, podendo gerar diretamente anormalidades no eletroencefalograma (EEG) e, indiretamente, fatores emocionais como a ansiedade ou excessiva manifestação de alegria geram hiperventilação (um dos principais fatores desencadeantes das crises epilépticas), também a privação de sono decorrente do estresse pode levar a uma atividade elétrica anormal, deixando o indivíduo mais propenso às epilepsias.

É a epilepsia idiopática (ou primária) denominada anteriormente por Freud de “epilepsia afetiva”. Assim, Freud foi o primeiro a observar que a “tensão emocional” é um importante fator desencadeador das crises epilépticas.

REFERÊNCIAS:
FREUD, S. "Dostoiévski e o parricídio". In: O Futuro de uma Ilusão, O Mal-Estar na Civilização e Outros Trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. pp.67-148.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Descrição de Acidente Vascular Encefálico na Bíblia Sagrada

Em 1861, Paul Broca exibiu à sociedade científica o caso de uma paciente que apresentou afasia motora e hemiplegia direita após lesão no giro frontal inferior esquerdo. Esta descrição é considerada um marco na história da neurologia, entretanto, há evidências de que há mais de dois mil anos esses sinais já haviam sido descritos no Livro Sagrado.

Se eu me esquecer de ti, Oh Jerusalém, que a minha mão direita se paralise; 6 - Que minha língua se me apegue ao paladar, se eu não me lembrar de ti, se não puser Jerusalém acima de todas as minhas alegrias...(Salmos 137:5)

Provavelmente, a primeira descrição de Acidente Vascular Encefálico (AVE) foi registrada no capítulo 137 do livro bíblico de Salmos. O significado deste Salmo seria uma invocação a um castigo correspondente a um AVE da artéria cerebral média esquerda.

A paralisia da mão direita associada à imobilidade da língua descreve a forma sintomatológica clássica de AVE com hemiplegia direita e afasia motora.

REFERÊNCIAS:
1.Resende LA, Weber SA, Bertotti MF, Agapejev S. Stroke in Ancient Times: A Reinterpretation of Psalms 137:5,6. Arq Neurosiquiatr. 2008;66:581–3.
2.Tubbs RS, Loukas M, Shoja MM, Cohen-Galdol AA, Wllons III JC, Oakes WJ. Roots of Neuroanatomy, Neurology, and Neurosurgery as found in the Bible and Talmud. Neurosurgery. 2008;63:156–63.

domingo, 16 de outubro de 2011

Distrofia Miotônica em "Adoração dos Reis Magos" (1564), de Pieter Bruegel

Em Adoração dos Reis Magos (1564), de Pieter Bruegel (1525-1569) , o modelo utilizado para representação de Melchior (rei mago que presenteia Jesus com o incenso), apresenta paralisia facial bilateral.
Entrando na casa, viram o menino Jesus, com Maria sua mãe. Prostando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra.(Mt 2, 11).
  Adoração dos Reis Magos (1564). Pieter Bruegel. Galeria Nacional, Londres (Inglaterra).
É notável a atrofia muscular facial, além de outros recursos típicos condizentes com o diagnóstico de distrofia miotônica: rosto comprido, ptose parcial bilateral e calvice frontal prematura.

Close evidenciando a face característica de distrofia miotônica.
A distrofia miotônica (DM), também conhecida como doença de Steinert, tem prevalência estimada em 1 para 8.000 indivíduos. É uma doença com comprometimento multissistêmico, transmitida por herança autossômica dominante e caracterizada pela diminuição progressiva da massa muscular, principalmente na face e em membros superiores.O mecanismo molecular da doença envolve a expansão do trinucleotídeo CTG localizada no cromossomo 19q13.3.

Alternativamente, a sutil assimetria observada na face do rei poderia ser resultado de uma paralisia do nervo facial, configurando um quadro de paralisia de Bell.

Provavelmente, Bruegel – artista que nutria declarado desprezo pelo idealismo – encontrou a figura acima retratada enquanto buscava faces distintas entre os camponeses para posar pra suas obras.


REFERÊNCIAS:
1.Nishioka, SA; “Distrofia Miotônica e Cardiopatia: Comportamento dos Eventos Arrítmicos e dos Distúrbios da Condução”. Arquivos Brasileiros de Cardiologia - Volume 84, Nº 4, Abril 2005.
2.SALTER, V. “Medical conditions in works of art”. British Journal of Hospital Medicine, February 2008, Vol 69, No 2.
3.SMITH,M. “Neurology in the National Gallery”. J R Soc Med 1999;92:649-652.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A história bíblica de Sansão: um exemplo de síndrome de Guillain-Barré.

Sansão, de acordo com as escrituras sagradas, foi um homem nazireu, filho de Manoá, que liderou os israelitas contra os filisteus. Pertencia a tribo de Dã e foi o décimo terceiro juiz de Israel.

A Bíblia relata que Sansão foi juiz do povo de Israel durante vinte anos, aproximadamente de 1177 a.C. a 1157 a.C., sendo o sucessor de Abdon e o antecessor de Eli.

Tendo tomado o voto de nazireu ao nascimento, Sansão fora consagrado a Deus. Como parte desse voto, devia abster-se de pecar e cortar os cabelos. Assim cumprido, Sansão se distinguiria mais tarde como portador de uma força sobre-humana concedida pelo Espírito Santo.

A belíssima pintura de Peter Paul Rubens (1577-1640) mostra a traição de Sansão por Dalila, sua amante filistéia. Sansão apaixonou-se por ela, que o traiu entregando-o aos chefes de sua nação.

Sansão e Dalila (1609-1610). Peter Rubens. Óleo sobre madeira (185 cm x 205 cm). National Gallery (Londres).
Então, ela o fez dormir sobre os seus joelhos, e chamou a um homem, e rapou-lhe as sete tranças do cabelo de sua cabeça; e começou a afligi-lo, e retirou-se dele a sua força. (Juízes 16:19). 

Dalila fora subordinada pelos filisteus que desejavam capturar Sansão. Em troca de dinheiro, ela o seduziu a fim de extrair-lhe o segredo de sua força; ele então confessou que a força era advinda do Espírito Santo, e que persistia pelo fato dele nunca ter raspado os cabelos. Enquanto Sansão dormia em seu colo, Dalila mandou cortar seus cabelos. Submisso e fraco, ele foi aprisionado pelos guardas que o esperavam na porta, seus olhos foram arrancados e ele fora escravizado.

Detalhes pictóricos:
1.Rubens pintou atrás de Dalila uma estátua da Vênus (deusa do amor) e do seu filho, Cupido, representando a causa do destino trágico de Sansão.
2.O filisteu que corta o cabelo de Sansão tem as mãos cruzadas, simbolizando a mentira e o engano.
3.A velha em pé atrás de Dalila, fornecendo mais luz para a cena, não aparece na narrativa bíblica. Acredita-se que seja uma alcoviteira, mas o perfil adjacente ao de Dalila parece simbolizar o passado da velha e/ou o futuro de Dalila.
Mais tarde, tanto os cabelos quanto a força de Sansão foram restaurados. Durante um ritual pagão de sacrifício, os filisteus se reuniram para celebrar o deus Dagom. Como era costume, os prisioneiros desfilavam no templo para entreter a multidão escarnecedora. Provido novamente de sua força, Sansão preparou-se entre os dois pilares de sustentação central do templo e os empurrou, enterrando cerca de mil filisteus.

A lendária história de Sansão pode ser analisada sob a ótica neurológica; o autor que a escreveu no século XI a.C. provavelmente baseou-se em fatos reais. Como se explica que um homem anteriormente saudável desenvolva uma fraqueza muscular súbita, mas reversível?

A Síndrome de Guillain-Barré (SGB) explica tanto a fraqueza aguda e a perda de cabelos quanto a posterior recuperação do quadro.

A SGB é a maior causa de paralisia flácida generalizada no mundo, sendo uma doença de caráter autoimune que acomete primordialmente a mielina da porção proximal dos nervos periféricos de forma aguda/subaguda. Fraqueza progressiva é o sinal mais perceptível dos pacientes. Passada a fase da progressão, a doença entra num platô por vários dias ou semanas com subseqüente recuperação gradual da função motora. A maioria das pessoas acometidas se recuperam em três meses após iniciados os sintomas.

Como uma desordem com componente auto-imune, a SGB também pode ocasionar a perda de cabelos. O corte de cabelos sob as ordens de Dalila seria apenas uma expressão simbólica do pecado de Sansão ao apaixonar-se por uma mulher “impura” e a ela entregar seus segredos. A transgressão da lei divina causaria a quebra do voto de narizeu (representada pela falta de cabelos) e, como punição, a não concessão de forças pelo Espírito Santo.


REFERÊNCIAS:
1.Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas. “Síndrome de Guillain-Barré”. Portaria SAS/MS no 497, de 23 de dezembro de 2009.
2. SALTER, V. “Medical conditions in works of art”. British Journal of Hospital Medicine, February 2008, Vol 69, No 2.
3. SMITH,M. “Neurology in the National Gallery”. J R Soc Med 1999;92:649-652.

sábado, 25 de junho de 2011

"Triste Herança", de Joaquín Sorolla

Com Triste Herança, óleo sobre tela completado em 1899, o pintor espanhol Joaquín Sorolla encerra sua contribuição artística ao “realismo social” iniciado poucos anos antes.

Triste herança (1899). Joaquín Sorolla. Colección privada Bancaja (Espanha).

Antigamente, o termo “triste herança” era usado para referir-se aos males padecidos pelos filhos como conseqüência das enfermidades dos seus progenitores. Tais moléstias eram consideradas vergonhosas por afetar somente descendentes de indivíduos cuja vida era tachada de “pecaminosa” ou fora de sintonia com os comportamentos considerados decentes pela sociedade da época.

Sifílis, tuberculose e alcoolismo são exemplos de doenças que pertenciam ao catálogo de males que se manifestariam na procriação, resultando em seres aleijados e enfraquecidos, condenados, em sua maioria, a viver da caridade exercida por instituições públicas, sobretudo pela igreja.

Inicialmente, Sorolla intitulou a obra de Os Filhos do Prazer, mas mais tarde, por influência de seu amigo, o nobre escritor Blasco Ibánez, deu-lhe a denominação conhecida nos tempos atuais.

Analisando a pintura de um ponto de vista médico, podemos insinuar que as afecções que apresentam os protagonistas da composição são do tipo neurológicas, como a paralisia cerebral infantil, a enfermidade de Duchenne ou a poliomielite.


REFERÊNCIAS:
Roberto Cano de la Cuerda, Susana Collado-Vázquez ;“Deficiencia, discapacidad, neurología y arte”; Rev Neurol 2010; 51 (2): 108-116.

domingo, 5 de junho de 2011

Antigas Esculturas Representam Paralisia Facial Periférica

"A expressão facial dos seres humanos me fascina, pois ela delata tanto o mais baixo e animalesco dos sentimentos quanto a mais forte e suave emoção do espírito”(1821). Com esta frase, Charles Bell (1774- 1842) definiu a importância filosófica da paralisia facial periférica (PFP), condição que elimina a simetria facial, um dos atributos de beleza, criando assim um efeito antiestético que minimiza o prazer do homem ou aumenta seu sofrimento.

A Paralisia Facial Periférica, também chamada Paralisia de Bell, caracteriza-se pelo acometimento dos músculos da hemiface, nos andares superior, médio e inferior. Caso a parte superior da face não seja acometida, a paralisia é dita central. Suas causas são decorrentes de transtornos no VII par de nervos cranianos ou nervo facial, composto pelo nervo facial propriamente dito (motor) e pelo nervo intermediário de Wrisberg (aferências sensitivas parassimpáticas).

As eferências motoras são responsáveis pelos movimentos da face, enquanto as aferências sensitivas pela sensação gustativa dos 2/3 anteriores da língua. A sua porção parassimpática é responsável pela inervação das glândulas lacrimais, submandibulares, sublingual e da cavidade nasal (BENTO e BARBOSA, 1994). A apresentação mais comum da PFP é a idiopática, que ocorre em cerca de 70% dos casos e é diagnosticada após a exclusão de todas as etiologias possíveis.

A história da paralisia facial periférica acompanha a história da própria espécie humana. A PFP tem sido representada nas artes desde o antigo Egito. A condição neurológica era amplamente conhecida também entre os gregos, romanos, incas e outras culturas indígenas da América pré-colombiana. A imagem egípcia apresentada abaixo é provavelmente um dos primeiros documentos representativos da PFP na história da neurologia:


A) Cabeça de barro, Alto Egito. Modelado aproximadamente 4.000 anos atrás, mostrando paralisia facial direita. É um dos mais antigos documentos da história da neurologia.
B) Crisaor, filho de Gorgo, com paralisia facial direita; do Templo de Ártemis, na ilha de Corfu, de VI a V a.C (fotografado pelo médico do rei Guilherme II, quando viajaram para Corfu para visitar o Templo de Ártemis).

As figuras B e C mostram que a afecção do nervo facial foi bem documentada no período helenístico. O enciclopedista romano Aurélio Cornélio Celso (25 a.C. — 50 d.C), registrou uma descrição resumida da paralisia facial periférica. Incas na América pré-colombiana nos forneceu várias representações artísticas da PFP.


C) Escultura em mármore encontrada em uma tumba da Grécia Antiga. Paralisia facial esquerda é bem representada.
D) Vaso romano encontrado em uma tumba da Grécia Antiga.

Representações da condição nas artes plásticas tornou-se mais extensa desde o Renascimento.Pintores holandeses retrataram indivíduos com paralisia facial periférica, durante e após este período. Muitas destes retratos tinham como objetivo a "educação moral", para ensinar aos jovens a não rir da deformidade humana.

O primeiro estudo médico da doença é atribuído a Avicena (Abu Ali al-Husayn ibn Abdalla Ibn Sina, 979-1037 dC). Ele foi o primeiro a registrar as diferenças entre os tipos centrais e periféricos da PFP:

"Se a doença que produz a paralisia vem do cérebro, metade do corpo fica paralisado. Se a doença não está no cérebro, mas no nervo, só o que depende desse nervo é paralisado".


A) Frontispício da edição romana de 1593 do Canon de Avicena. Avicena estudou a etiologia, tratamento e prognóstico da paralisia facial periférica, que distinguiu da paralisia facial central.
B) Escrito em árabe, o diagnóstico diferencial entre a paralisia facial central e periférica.
C) Caretas da antiga Suíça representando a paralisia facial.

Avicena incluía entre as causas de PFP a compressão por tumor ou a secção do nervo. Para o tratamento, ele receitou plantas medicinais para aplicação tópica, todas elas com efeito vasodilatador.. Ele enfatizou que "se a secção do nervo ocorreu, a única alternativa é fazer a sutura do coto". Em relação ao prognóstico, ele afirmou que "não se deve esperar a recuperação de qualquer paralisia facial que dure mais de seis meses". Podemos considerar que Avicena tinha um avançado conhecimento da paralisia facial periférica para o seu tempo.

Em 1798, Nicolaus Friedreich A. de Würzburg, avô de Nicolaus Friedreich de Heildelberg - que descreveu a ataxia que leva seu nome -, publicou um estudo detalhado sobre o início, o quadro clínico, a evolução e o tratamento da paralisia facial periférica em três pacientes. A exposição a correntes de ar frio havia ocorrido nos três casos, antes do início da paralisia. Assim, Friedreich postulou que a PFP pode ocorrer quando as causas locais atuam sobre o nervo facial.

Dentre os pioneiros a descrever a PFP, destaca-se também Charles Bell. Seu primeiro caso de paralisia facial periférica foi anunciado em 1821, e em 1828 fora publicado seu trabalho mais importante. Entretanto, Charles Bell fez outras contribuições à história da neurologia e da anatomia: ele reconheceu as diferenças entre a divisão anterior e posterior dos nervos espinhais, identificou o nervo torácico longo, destacou o nervo craniano VII, descreveu o sinal de Bell e foi o primeiro a descrever a hiperacusia e disgeusia como sintomas de PFP.


D) Escultura de Lucas van Leyden mostrando parotidite provável e paralisia facial periférica direita.

Outras representações:


A) Máscara de dança esquimó do Alaska
B) Napoleão esculpido em rolha de garrafa do Sul da França.
C) Máscara de madeira de Liberia.
D) Máscara de Ceilão, que representa o "Deus da Surdez", com uma cobra saindo do nariz.


A) Deus da doença "Naha-Kola-Sanaya", do Ceilão. O "Deus da doença" é acompanhado por 18 demônios, dois deles com paralisia facial (setas)
B) Máscara de Java, mostrando paralisia facial esquerda.
C) Máscara de marfim japonesa do século V d. C.
D) máscara japonesa esculpida em madeira (Século V d.C)


A) Século 17: "Jarro de homem barbado", apresentado na exposição de arte barroca em Augsburg.
B) Século 18: "Facial Gnome"do "anão de jardim" do Palácio de Mirabell, Salzburgo (Áustria). Escultor: Bernard Mandl.
C) Século 19 fotografias tiradas de Duchenne. O paciente é calvo e aparece em sofrimento apreensivo.
D) Charles Bell, primeiro professor de Anatomia e Cirurgia no Colégio Real de Cirurgiões, em Londres. Ele próprio tinha paralisia facial periférica.


REFERÊNCIAS:
1.BARBOSA, V. C. Paralisia Facial Periférica. In: LOPES FILHO, O.; CAMPOS, C. A. H. Tratado de Otorrinolaringologia, 4ª Ed. São Paulo: Roca, 1994.
2.Resende,LA. Weber,S.“Peripheral facial palsy in the past. Contributions from Avicenna, Nicolaus Friedreich and Charles Bell”. Arq Neuropsiquiatr 2008;66(3-B):765-769.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Síndrome de Pickwick: os distúrbios respiratórios do sono e sua relação com a literatura clássica inglesa

É bem conhecido que o estudo de diferentes obras de arte revelam características de diversas afecções antes mesmo delas serem descritas. Não raramente, também a literatura ficcional antecede a ciência. O fabuloso romancista inglês Charles Dickens (1812-1870), amplamente conhecido por marcar a era vitoriana com seu profundo senso de observação humana e de crítica social, povoou sua obra com memoráveis protagonistas.

Um dos seus secundários personagens ganhou um posto nos anais da medicina. Trata-se do “gorducho Joe”, descrito no capítulo LIV do primeiro sucesso de Dickens As Aventuras do Sr. Pickwick (1836).

Através dessa divertida história, Dickens narra de forma mágica as aventuras de quatro membros de um clube especial que tem como líder o Sr. Samuel Pickwick, uma espécie de filósofo que, junto com seus três seguidores, iniciam uma turnê pela Inglaterra com o intuito de observar descobertas científicas e analisar as diversas variedades do comportamento.

Joe é marcado por seu voraz apetite associado a muitos ataques de sono durante o dia:

... e no caixote sentou-se um garoto gordo e de rosto vermelho em estado de sonolência. [...] Joe - que droga aquele garoto, foi dormir novamente. [...] Em resposta aos tiros de enormes armas em um exército militar, todas as pessoas estavam excitadas exceto o garoto gordo, e ele dormia profundamente como se o barulho do canhão fosse a sua canção de ninar... senhor, será que é possível beliscá-lo na sua perna, nada mais o acorda. [...] Joe ronca enquanto espera a mesa... o ronco do garoto penetrou como um baixo e monótono som vindo distante da cozinha.

Gravura ilustrando Joe – The Fat Boy, contida na primeira versão do livro The posthumous papers of the Pickwick Club.

Fã de Dickens, o pai da medicina moderna Sir William Osler, em sua obra The principles and practice of medicine (1905), registrou o seguinte comentário: Tenho observado um fenômeno extraordinário que associa a excessiva obesidade de pessoas jovens a uma incontrolável tendência a dormir –como o obeso de Pickwick.

Levando em consideração a observação de Osler, no ano de 1956 Burwell notou a lúcida descrição dos sinais que acometem o jovem Joe, atribuindo o rubor facial do personagem a uma policitemia decorrente de uma diminuição da oferta de oxigênio, e consagrou o termo “pickwickiano” para descrever pacientes obesos e sonolentos, portadores de hipoventilação, policitemia e cor pulmonale. O termo Síndrome de Pickwick fora então empregado para designar a condição que reunia tal conjunto de sinais e sintomas.

A curiosidade imposta pela síndrome despertou o interesse sobre o estudo dos distúrbios do sono na classe médica. Pouco depois, médicos franceses observaram que doentes tidos como “pickwickianos” apresentavam repetidos episódios de apnéia durante o sono, justificando ser a redução dos níveis de oxigênio responsável por uma má qualidade de descanso noturno, o que explica a presença de sonolência diurna nesses pacientes. Gastaut descreveu então a apnéia obstrutiva do sono, destacando a existência de pausas repetidas na respiração, bem como a importância do ronco faringeano na síndrome.

Há somente poucas décadas que as desordens respiratórias relacionadas ao sono e à obesidade começaram a tomar um importante lugar nas publicações médicas. Certamente, a excelente caracterização de um sujeito obeso e com distúrbios respiratórios feita há 150 anos por Charles Dickens antecipou a ciência nesta sua obra, onde nos apresentou um esboço do que seria tempos depois descrito como o fenótipo clássico de um portador do distúrbio do sono.

A síndrome de Pickwick é hoje preferencialmente chamada de síndrome obesidade-hipoventilação alveolar e classificada como um subtipo da síndrome da apnéia obstrutiva do sono.

REFERÊNCIAS:
1. DICKENS, C. As Aventuras do Sr. Pickwick. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
2. SILVA, G.A; síndrome obesidade-hipoventilação alveolar. Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: DISTÚRBIOS RESPIRATÓRIOS DO SONO. 39 (2): 195-204, abr./jun. 2006
3. OSLER, W. The principles and practice of medicine. 6ª edición. Nueva York: Appleton; 1905:431.
4. MENDOZA, R.M. La neurología en un personaje de Dickens.Síndrome Pickwickiano, apneas hipopneas del sueño ehipertensión intracraneal. Gac Méd Caracas 2009;117(2):154-162
5. Rabec, C. LEPTIN, OBESITY AND CONTROL OF BREATHING : THE NEW AVENTURES OF MR PICKWICK. Rev Electron Biomed / Electron J Biomed 2006;1:3.

sábado, 9 de abril de 2011

Epilepsia na Obra de Rubens

Em Os Milagres de Santo Ignacio de Loyola (1618), Peter Pawel Rubens (1577-1640) registrou magnificamente duas personagens epilépticas.

Os Milagres de Santo Ignácio de Loyola (1618). Pieter Pawel Rubens (1577-1640). Óleo sobre tela, 535 x 395 cm. Kunsthistorisches Museum (Viena).

A pintura evidencia Santo Ignacio ministrando uma missa na presença de alguns religiosos. Ele eleva os olhos aos céus, põe a mão esquerda sobre o altar e, com a direita, abençoa os doentes que suplicam por um milagre curativo.

Observe a representação realista das possíveis crises tônico-clônicas nas duas figuras que aparecem à esquerda na imagem.


Em primeiro plano, caído no chão, destaca-se um homem apresentando sialorréia durante a convulsão e, logo atrás dele, uma mulher cianótica aparece amparada, enquanto se contorce e lança um grito epiléptico, com o rosto e o corpo em desalinho.


Durante a Idade Média, era a epilepsia tida como uma possessão por espíritos malignos, que deviam ser expulsos por Cristo. As autoridades eclesiais criam que exorcizar o demônio do corpo de uma vítima era a única cura para a síndrome. Um sacerdote era designado “curador”. Este interessante fato histórico pode ser apreciado na tela de Rubens. É clara na pintura a representação da crise como uma possessão demoníaca, uma vez que uma dupla imagem de demônios aparece na parte superior esquerda do quadro, como se a benção concebida pelas mãos de Santo Ignácio houvesse operado o milagre da cura dos dois epilépticos.

Cor, luz e perspectiva mostram a enorme influência da Escola Veneziana na pintura de Rubens. Os recursos técnicos do pintor e a retórica barroca da tela aumentam a dramaticidade da obra.

REFERÊNCIAS:
1.Peter Wolf: Sociocultural History of Epilepsy
2.BEZERRA, A.J.C.; As belas artes da medicina. Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal, Brasília, 2003.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Distonia Oromandibular Idiopática / "O Bocejador" de Brueghel

A síndrome de Brueghel ou distonia oromandibular idiopática é uma condição neurológica que acomete principalmente homens na sétima década de vida. A síndrome é caracterizada por espasmos dos músculos perioculares associada com espasmos severos da metade inferior da face, mandíbula e músculos da região cervical. Vêem-se movimentos anormais da boca, língua e mandíbula. A condição pode ser agravada pelo comer ou falar.

A pintura O Bocejador de Pieter Brueghel mostra a face de um homem com a boca aberta e as pálpebras fortemente cerradas. Segundo os historiadores da arte, esta pintura retrata somente um bocejo:

O Bocejador (1564). Pieter Brueghel. Museu Real de Belas Artes (Bélgica).

A distonia do nervo motor trigêmeo produz uma boca amplamente aberta, simulando um grande bocejo. Em 1976, Madsen creditou a R.E. Kelly a observação da semelhança desta pintura com a síndrome da distonia oromandibular e blefaroespasmo e sugeriu o epônimo de síndrome de Brueghel.

REFERÊNCIAS:
1.Carvalho, RM; Gomi, C. Tratamento do blefaroespasmo e distonias faciais correlatas com toxina botulínica - estudo de 16 casos. Arq. Bras. Oftalmol. vol.66 no.1 São Paulo Jan./Feb. 2003.
2.Roberto Cano de la Cuerda, Susana Collado-Vázquez ;“Deficiencia, discapacidad, neurología y arte”; Rev Neurol 2010; 51 (2): 108-116
3. Sociedade Brasileira de História da Medicina - A Neurologia na Arte

domingo, 21 de novembro de 2010

A Conversão de São Paulo do Ponto de Vista Médico

A conversão de São Paulo, descrita em três ocasiões na bíblia sagrada, ocorreu a caminho a Damasco para aprisionar cristãos. No capítulo 22 do livro de Atos, o apóstolo conta a sua experiência:

6. Ora, aconteceu que, indo eu já de caminho, e chegando perto de Damasco, quase ao meio-dia, de repente me rodeou uma grande luz do céu.
7.E caí por terra, e ouvi uma voz que me dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues?
8.E eu respondi: Quem és, Senhor? E disse-me: Eu sou Jesus Nazareno, a quem tu persegues. (
ATOS. 22. 6-8)
[...]
11.E, como eu não via, por causa do brilho daquela luz, fui levado pela mão dos que estavam comigo, e cheguei a Damasco. (
ATOS. 22: 11)

Em A Conversão de São Paulo , de Michelangelo (1475–1564), Paulo é retratado no chão, ofuscado pela visão de uma luz divina:

Michelangelo Buonarroti (1475–1564). A Conversão de São Paulo, 1542. Capela Paulina (Vaticano).

Em Atos, o apóstolo relata que uma luz brilhante o cegou e que, em seguida, caiu no chão. Sua visão foi recuperada somente após três dias. A experiência de Paulo foi atribuída a uma crise epiléptica do lobo temporal com aura emocional que talvez tenha evoluído para generalização secundária, que foi assustadora e dramática, seguida de cegueira cortical pós-ictal (Landsborough, 1987).

Em algumas de suas cartas, Paulo dizia possuir uma enfermidade que quem padecia costumava ser desprezado. Lembremos que, à época, a epilepsia era chamada de "morbus insputatus": doença cuspida; pois, lamentavelmente, o preconceito gerou um costume que perdurou durante séculos: cuspir nos epilépticos.

Nas cartas, Paulo também afirma que, por vezes, sentiu-se arrebatado para o Paraíso. Tal sensação é atribuída à aura extática, outrora descrita pelo escritor russo Fíodor Dostoiévski, epiléptico que afirmou que durante os segundos antecedentes a crise, sentia-se “no céu”:

Que importa que seja doença? Quem mal faz que seja uma intensidade anormal, se esse fragmento de segundo, recordado e analisado depois, na hora da saúde, assume o valor da síntese da harmonia e beleza, visto proporcionar uma sensação desconhecida e não advinda antes? Um estado de ápice, de reconciliação, de inteireza e de êxtase devocional, fazendo a criatura ascender à mais alta escala da vivência? ... Sim, por este momento se daria toda a vida! (O Idiota – Dostoiévski).

Curiosidade: Antigamente, na Irlanda, a epilepsia era chamada de "doença de São Paulo".

REFERÊNCIAS:
1. Landsborrough D. St. Paul and temporal lobe epilepsy. J Neurol Neurosurg Psychiatry 1987.
2.DOSTOIÉVSKI, Fíodor "O Idiota" Editora José Olympio, 1951 - Rio de Janeiro.
3.Bíblia Sagrada - Tradução de João Ferreira de Almeida‎.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Capela Sistina: Estruturas Neuroanatômicas Ocultas em "A Separação da Luz e das Trevas" / Michelangelo Buonarroti

"Em nenhum lugar Deus se mostra mais a mim em sua graça do que em alguma bela forma humana; e só isso amo, pois nisso ele se espelha." Trecho de soneto de Michelangelo.

A SEPARAÇÃO DA LUZ E DAS TREVAS (A cena representa a número I na ordenação feita pelos livros de arte. Nela, com os braços levantados, o Criador afasta as trevas à sua direita a luz à esquerda).

É inquestionável que Michelangelo Buonarroti (1475-1564), por possuir um fascínio intenso pela anatomia humana, realizou inúmeras dissecações de cadáveres.

Em um artigo publicado em 1990, Meshberger argumentou convincentemente que no afresco A Criação de Adão, localizado no teto da capela sistina, Michelangelo ilustrou um cérebro humano.

Apresentamos agora uma outra estrutura neuroanatômica oculta nos afrescos pintados por Michelangelo. Dessa vez, é em A Separação da Luz das Trevas, onde encontramos, embutida no pescoço do Criador, especificamente uma visão ventral do tronco encefálico:


Observar a perfeição com que Michelangelo ocultou as estruturas anatômicas em A Criação de Adão e A Separação da Luz e das Trevas, leva-nos a concluir que o artista possuía um profundo conhecimento da anatomia do cérebro.

LEIA MAIS:

O Anatomista Michelangelo em "A Criação de Adão".

REFERÊNCIAS:
Suk, Ian BSc, BMC; Tamargo, Rafael J. MD, FACS. “Concealed Neuroanatomy in Michelangelo's Separation of Light From Darkness in the Sistine Chapel”. Neurosurgery: May 2010 - Volume 66 - Issue 5 - p 851–861.