William Little (1810-1894), sofrendo das sequelas de uma poliomielite que lhe paralisara a perna esquerda, estudou Medicina acreditando que assim poderia tratar-se e curar-se. Anos depois, ao tornar-se especialista em cirurgia ortopédica, sustentava a possibilidade de descrever a etiologia dos transtornos motores cerebrais em crianças.
Não encontrando trabalhos científicos anteriores em que basear-se, recorreu a William Shakespeare (1564-1616).
Veio-lhe então à memória um fragmento de A Tragédia de Ricardo III (1593), onde o personagem Ricardo profere sua deficiência física e dificuldade de marcha, em associação com antecedentes de asfixia perinatal e prematuridade:
Eu, que privado sou da harmoniosa proporção, erro de formação, obra da natureza enganadora, disforme, inacabado, lançado antes de tempo para este mundo que respira, quando muito meio feito e de tal modo imperfeito e tão fora de estação que os cães me ladram quando passo, coxeando, perto deles. (Ato I, cena: I)
Também na obra, Lady Anne, viúva do príncipe de Gales, assim amaldiçoou Ricardo:
Se alguma vez tiver um filho, que nasça malformado, estranho, fora do tempo, que o seu aspecto feio e monstruoso assuste a esperançosa mãe, quando o vir; e que lhe herde a desventura. (Ato I, cena: II).
Segundo o poeta, o nascimento “fora do tempo” ocasionaria uma condição defeituosa também no filho do prematuro Ricardo.
Valorizando a descrição de Shakespeare, Little relacionou as complicações obstétricas – principalmente relacionadas à prematuridade – ao déficit de desenvolvimento motor em crianças. O cirurgião passou a observar a frequência dos problemas perinatais, postulando que os defeitos motores dependiam de maneira direta de dificuldades no momento do parto.
Em 1843, o cirurgião sugeriu à comunidade científica que havia uma associação entre a paralisia cerebral e a anoxia neonatal. Seus primeiros artigos aceitos pela Lancet, em 1844 e 1861, descreviam suas observações sobre um grupo de crianças com anormalidades do tônus muscular e desenvolvimento, além de versar sobre a rigidez espástica das extremidades nos neonatos. Muitas destas crianças, de fato, tinham antecedentes de complicações no parto.
O ponto alto foi o artigo publicado em 1862 “Da influência do parto normal, dificuldades do parto, parto prematuro e asfixias do neonato e sobre o estado mental e físico da criança, principalmente no concernente a deformidades”.
Little ocupou-se intensamente com o estudo da espasticidade, descrevendo pela primeira vez o que hoje chamamos de paralisia cerebral, na forma de diplegia espastica, que passou a chamar-se doença de Little.
A partir daí, o transtorno motor por lesão cerebral foi doença com que se ocuparam neurologistas e ortopedistas, a fim de melhorar as possibilidades cirúrgicas indicadas por Little.
Freud, após conhecer o trabalho de Little, descreveu em várias monografias a diplegia espástica, entretanto, especulou que as dificuldades perinatais eram resultados de anormalidades preexistentes no feto. O pai da psicanálise foi quem sugeriu, em 1897, a expressão "paralisia cerebral".
Define-se como Paralisia Cerebral (PC) um déficit motor central não progressivo que se origina em eventos nos períodos pré-natal ou perinatal. O mais comum evento etiológico é a anoxia cerebral; Outra causa comum seria o trauma mecânico cerebral ao nascimento.
A forma espástica (cuja lesão é localizada no trato piramidal), é encontrada em 88% dos casos.
A PC classifica-se, pela topografia da lesão, como tetraplegia, monoplegia, diplegia e hemiplegia.
Flexão e rotação interna dos quadris, flexão dos joelhos e equinismo são as deformidades mais freqüentes nas crianças que adquirem marcha. Quando a adução dos quadris é acentuada, conduz ao cruzamento das pernas (pernas em tesoura). Os reflexos tendinosos são ativos, às vezes com um prolongado clonus do pé. São comuns a contratura dos tendões dos calcanhares, limitações dos quadris em abdução e rotação externa, e limitação dos antebraços em extensão e supinação.
Atualmente, sabe-se que quando a lesão causadora da PC atinge a porção do trato piramidal responsável pelos movimentos das pernas, localizada em uma área mais próxima dos ventrículos, a forma clínica é a diplegia espástica (doença de Little), na qual o envolvimento dos membros inferiores é maior do que dos membros superiores. A região periventricular é muito vascularizada e os prematuros, por causa da imaturidade cerebral, com muita frequência apresentam hemorragia nesta área.
Desprovido de embasamento científico, mas empregando seu transcendente poder observacional, Shakespeare foi quem primeiramente associou o déficit motor às condições de nascimento.
REFERÊNCIAS:
1.LEITE, J. PRADO, G. “Paralisia cerebral Aspectos Fisioterapêuticos e Clínicos”. Revista neurociências. Volume 12 - n°1 – 2004.
2.Muzaber, F.L. Schapira, I. “PARÁLISIS CEREBRAL Y EL CONCEPTO BOBATH DE NEURODESARROLLO”. Rev. Hosp. Mat. Inf. Ramón Sardá 1998, vol. 17, Nº 2.
3.Flehmig, Inge. “Texto e atlas do desenvolvimento normal e seus desvios no lactente: diagnóstico e tratamento precoce do nascimento até o 18 mês”. São Paulo: editora Atheneu,2000.
4. Paralisia Cerebral: Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação.: http://www.sarah.br/paginas/doencas/po/p_01_paralisia_cerebral.htm
Excelente texto, Renata. Espero uma visitinha. Será um prazer...
ResponderExcluirMaravilha. Conheço um caso assim. Deficiência motora, mas causada por atraso no parto. Será a mesma coisa que a prematuridade?
ResponderExcluirAbraços
Oi Margot,
ResponderExcluirTanto as complicações que levam a prematuridade quanto a demora no parto podem decorrer do sofrimento fetal ou levar ao sofrimento fetal, ambos cursando com hipóxia neonatal e lesão cerebral. Abraços, Renata.
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ResponderExcluirConjunto de apostilas MedCurso e MedCel 2017!
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