sábado, 1 de dezembro de 2012

A Arte de vHIVer com AIDS

O vírus da AIDS é apenas um vírus. É apenas outra criatura na criação de Deus. Frank Moore
O dia 1º de dezembro é o Dia Mundial de Combate a AIDS.

Aproveito a data de hoje para reforçar a admiração que nutro pelas pessoas que sofrem da doença.

Quando o individuo se descobre portador do vírus HIV, passada a fase de aflição e atingida a aceitação, a resiliência o permite enxergar a oportunidade de uma neovida, cujo caminho crucial para sobrevivência é adquirir hábitos e cuidados regulares numa trajetória sem exposição a riscos desnecessários.

A doença o possibilita refletir sobre a necessidade de mudar algumas atitudes pra que o bem estar prevaleça. Doravante, o infectado deverá viver consigo um caso de amor e dedicação.

O vírus com o poder de enfraquecer o corpo fortalece o espírito, ensinando-o a criar munições psicológicas que funcionam como projéteis de animo para lutar pela vida a despeito da deficiência imune. A vítima, capacitada para combater – pois lutam diariamente contra o preconceito, em prol do desapego dos vícios, contra os desagradáveis efeitos adversos dos coquetéis, etc. – independentemente das armas imunológicas, torna-se um mestre na arte da resistência.

O pintor Frank Moore, artista portador de HIV que fez da Acquired immunodeficiency syndrome (AIDS) o seu foco principal de trabalho, confeccionou este criativo autorretrato colocando-se como o personagem Gulliver, gigante da obra As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift.

Frank Moore.Gulliver Awake, 1994 - 1995
Ao cabo desse tempo, acordei, tentei levantar-me, mas em vão o fiz. Vi-me deitado de costas, notando também que as pernas e os braços estavam presos ao chão, assim como os cabelos. Cheguei a observar que muitos cordões delgadíssimos me rodeavam o corpo, das axilas às coxas. Só podia olhar para cima; o sol começava a aquecer e a sua forte claridade feria-me a vista. Ouvi um confuso rumor em torno de mim, mas na posição em que me encontrava só podia olhar para o sol. ("As Viagens de Gulliver", J. Swift, 1726).
Gulliver acordando (1994 - 1995) mostra um homossexual infectado pelo HIV despertando em uma terra desconhecida. Os pequenos seres ao redor (liliputianos), assustados com a ameaça que o gigante representa, tentam em vão amarrar seu corpo. A cena nos induz a entender o quanto as pessoas que temem a presença do infectado e tentam paralisá-lo com finas amarras são pequenas e insuficientes perante uma criatura disposta a levantar-se.
Qual não foi o meu espanto quando enxerguei uma figurinha humana que pouco mais teria de seis polegadas, empunhando um arco e uma flecha, e com uma aljava às costas! Quase ao mesmo tempo os meus olhos viram mais uns quarenta da mesma espécie [...] Era com razão que me supunha de uma força igual aos mais poderosos exércitos que viessem atacar-me, desde que seus componentes fossem do tamanho daqueles que vira até então. ("As Viagens de Gulliver", J. Swift, 1726).
Muitas são as interpretações inferidas na imagem. O vírus HIV, que parece poderoso e invencível, mostra que o soropositivo oferece um risco gigante a sociedade e precisa ser um gigante para encará-la.

O corpo de Gulliver é sustentado por medicamentos. Na parte superior direita da pintura aparecem halteres feitos de comprimidos, aludindo ao fato de que o que torna o gigante mais forte (os antirretrovirais), não deixa de ser também um peso pra o usuário por conta dos efeitos colaterais.

À direita de Gulliver, surge uma caixa com uma citação do poeta árabe Abu Nuwas, afirmando que o amor pode dissolver os males e, mais filosoficamente, que o desejo vence a morte.

Outro trabalho de Frank Moore relacionado à AIDS que me tocou profundamente surgiu a partir de um passeio do artista num bosque perto de sua propriedade rural em Nova Iorque. Moore notou o crescimento de folhas numa árvore podre e caída. A cena o inspirou a criar a obra Release (1999):

Release. 1999. Frank Moore.
A árvore é representada como um braço estendido coberto de feridas sangrentas e lesões, mas desta “árvore” brota vida. A imagem revela, através das plantas e das borboletas, o renascimento e a regeneração após a aparente morte.

Falta-nos a consciência do que todo ser humano é naturalmente dotado de fragilidade, tanto corporal quanto psíquica. O ideal seria que nos valorizássemos como se portássemos o vírus HIV, vigiando nossos limites e podando nossos defeitos comportamentais. Diariamente, somos expostos a sedutoras toxinas sociais altamente virulentas que podem nos tornar deficientes da integridade humana. Precisamos proteger nossa essência e dignidade para evitar que, posteriormente, num momento de debilidade, a destrutiva miserabilidade de caráter se manifeste em nós.

REFERÊNCIAS:
Jonathan Swift. As Viagens de Gulliver

domingo, 25 de novembro de 2012

"A Cortisona", pintura de Raoul Dufy

Em dezembro de 1949, Freddy Homburger, um qualificado aquarelista, viu uma fotografia do pintor francês Raoul Dufy (1877-1953) na revista Life, evidenciando suas mãos gravemente deformadas pela artrite reumatóide.

A revista afirmava que o artista de renome, um dos mais populares do século 20, esforçava-se para pintar usando apenas a mão esquerda, pois, por conta da doença avançada, havia perdido a função hábil de sua mão direita.

Dr. Homburger, familiarizado com testes recentes do uso de cortisona para a artrite, escreveu a Dufy convidando-o para participar de um estudo clínico envolvendo a droga em sua unidade de pesquisa em Boston. Philip Hench, médico de Dufy, conhecendo os efeitos do tratamento da artrite com cortisona na Clínica Mayo, o encorajou a aceitar.

“A Cortisona” 1951. Litografia colorida. 18 cm X 23 cm. Raoul Dufy (1877-1953), França.
 Em 6 de abril de 1950, Dufy pintou A Cortisona para presentear o pesquisador Homburger e, com gratidão, escreveu:
Dou-lhe hoje uma recompensa por me oferecer a sua arte e sua ciência para o alívio das dores de minha doença.

REFERÊNCIAS: 
James C. Harris, MD. "La Cortisona".Arch Gen Psychiatry. 2010; 67 (4) :317-317.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Porfiria no filme "As Loucuras do Rei George"


A porfiria é uma doença hereditária ou adquirida, causada pelo acúmulo de porfirinas ou seus precursores em diversos compartimentos, quando faltam algumas enzimas necessárias a síntese do heme.

O termo deriva da palavra grega porphura, que significa pigmento roxo. Em algumas formas de porfiria, o acúmulo de precursores do heme excretados pela urina podem mudar sua cor, após exposição ao sol, para um vermelho ou marrom escuros ou para um tom purpúrico, sendo o termo que designa a doença uma referência à coloração arroxeada dos fluidos corporais que alguns pacientes apresentam durante um ataque.

Existem diferentes tipos de porfirias, sendo classificadas de acordo com suas deficiências enzimáticas específicas no processo de síntese do heme, sendo a Porfiria Intermitente Aguda (PIA) o tipo mais comum de porfiria aguda.

A manifestação mais comum da PIA é dor abdominal contínua ou em cólica, em ataques recorrentes ou de forma insidiosa. Ocasionalmente, adicionam-se ao quadro vômitos, neuropatia aguda e convulsões. Durante as crises, sintomas psiquiátricos podem ocorrer, incluindo ansiedade, insônia, depressão, desorientação, alucinações e paranoia.

Sugere-se que a insanidade demonstrada pelo Jorge III foi resultado de uma crise de porfiria intermitente aguda.

Jorge III. Allan Ramsay. 1762.
As “loucuras reais” demonstradas no filme As loucuras do Rei George (1994), são atualmente atribuídas aos sintomas psiquiátricos da porfiria intermitente aguda, apenas descoberta no século XX.

À medida que o rei vai dando mostras de que está louco e incapaz de exercer o poder, começam as estratégias para a sucessão no poder da corte. 



Jorge III, rei que subiu ao trono da Grã-Bretanha em 1970, ficou conhecido por seu comportamento totalmente excêntrico, suas dores abdominais, e por apresentar urina colorida.

Devido a endogamia, tanto a porfiria quanto a hemofilia são doenças hereditárias que afligem a família real inglesa.

Curiosidade: O bioquímico David Dolphin propôs em 1985 uma ligação entre a porfiria e o folclore vampírico. Reparando que essa condição é tratada com a administração de heme intravenoso, Dolphin sugeriu que o consumo de grandes quantidades de sangue poderia resultar de alguma maneira no transporte do hemo através da parede do estômago e para a corrente sanguínea. Os vampiros seriam meras vírimas de porfiria que procuravam substituir o heme e aliviar seus sintomas. À época, fora estabelecido também um paralelo com a fotossensibilidade por parte dos afetados por porfiria, condição também associada aos vampiros fictícios.

Referências:
Wikipedia: Porfiria

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Tuberculose nas Artes Visuais

A tuberculose é considerada uma das entidades médicas mais antigas da história, tida por alguns como a primeira doença que reconhecidamente afetou os seres humanos.

A enfermidade foi especialmente impactante no período final do século XVIII até o início do século XIX, quando grandes celebridades da arte se viram por ela afetadas, incluindo os músicos Purcell e Mimi; escritores como Edgar Allan Poe, Schiller e Moliere; e pintores como Watteau, Modigliani, Michelena e Cristóbal Rojas.

Muitos desses artistas iluminaram suas criações com referências a tuberculose, hora refletindo dores e desesperanças, outrora enfeitando suas pinturas com características semiológicas relativas à afecção, ou mesmo expressando o próprio padecimento. A doença romântica emprestava emoção as suas obras através da ilustração da beleza secundária ao mal, do horror e da dor.

O percurso da tuberculose pela arte inicia-se com Sandro Botticelli na época renascentista. Em várias de suas obras aparece Simonetta Vespucci, charmosa florentina acometida pelo mal que lhe cortou a vida aos 22 anos de idade. Botticelli torna a beleza de Simonetta acentuada pela enfermidade, que a faz luzir frágil, febril e pálida, como figura etérea, nos óleos como A Primavera e O Nascimento de Vênus.

O Nascimento de Venus (1484). Sandro Botticelli. Museu Galeria de los Uffizi, Florencia
Tanta beleza expressa nas pinturas é reflexo do amor profundo e secreto que o artista nutria por Simonetta, convertendo as debilidades corporais inerentes à enfermidade em virtudes dignas de louvor, colocando-a como divindade mitológica. Mais adiante, na época romântica, as mulheres imitariam esse padrão de beleza corpórea ingerindo dietas a base de água e vinagre para gerar anemias hemolíticas.

A obra Baroness Burdett dos irmãos Preston, representa um evento social organizado durante o Congresso Médico Internacional de Highgate, de 1881. A pintura evidencia a busca pela descoberta da cura da tuberculose e os vários médicos que colaboraram na identificação do bacilo de Koch.

Preston. Baroness Burdet Coutts Garden Party at Holly Lodge (1882).
Enfocando o interesse científico pelo combate a enfermidade, o trabalho revela a necessidade que tem o ser humano de apoiar-se em um universo de esperanças. Pouco depois de concluírem esta pintura,  os irmãos Preston, vencidos pela tuberculose ainda sem tratamento, faleceram.

Edvard Munch, pintor norueguês expressionista, representa em sua extensa obra paisagens de sua própria vida, transmitindo ao espectador a dor e a angústia que acompanharam sua existência. Quando ainda não havia completado cinco anos de idade, sua mãe morreu vítima de tuberculose e, nove anos depois, faleceu da mesma causa a sua irmã Sophie.

Aniquilando a tranquilidade de sua alma, a enfermidade e a degradação tornaram-se sombras que seguiram seus passos, tirando a vida dos seus entes queridos. A morte virou um tema obsessivo em sua vida, gerando em Munch uma visão desoladora e lúgubre do futuro:
Doença, loucura e morte foram os anjos negros ao lado de meu berço (Edvard Munch, 1989).
Em A Criança Doente, Munch retratou uma mulher agarrando com um vestígio de fé à mão de sua irmã Sophie, prestes a falecer:

Edvard Munch. A Criança Doente. (1885-1886). Museo National Gallery, Oslo
A Morte no Quarto da Doente reproduz o momento da morte de Sophie. Ela não aparece, pois está sentada em uma cadeira de espaldar alto, ao lado da cama, rodeada por três pessoas que a olham: o pai, a tia e o próprio Munch. Toda executada em tons verdes e ocre, o conjunto adquire uma introspecção bastante acentuada ao lado de uma angústia contida.

Edvard Munch. Morte no Quarto da Doente. (1895). Museo National Gallery, Oslo
Apesar de referir-se a uma morte ocorrida há anos, todos os presentes aparecem com a idade da época da execução das pinturas e gravuras, unidade de temporalidades heterogêneas, o que reforça a interpretação de que Munch recolocava-se a cada instante na dor que o atingiu no dia da morte de sua irmã, ocorrida em 1877.

Este tema, da dor proveniente da perda, repete-se também no óleo Mãe Morta e Criança (1898).

Munch. Mãe Morta e a Criança (1898).Museu National Gallery, Oslo
Em frente ao leito, onde jaz o corpo da mãe coberto por lençóis claros, uma criança pequena, vestida em vermelho, mãos nas orelhas, isola-se em relação às outras cinco pessoas que estão ao fundo do quarto.

Alice Neel, pintora norteamericana ícone do feminismo que se destacou por suas obras expressionistas de grande intensidade psicológica e emocional, foi tocada lateralmente pela enfermidade. Parte de sua vida transcorreu no Harlem Espanhol, um bairro em Manhattan, onde a pobreza e a enfermidade que se vislumbrava foram alicerces para sua imaginação.

Alice Neel. TB Harlem (1940). Museu Nacional da Mulher. Washington, DC
A pintura TB Harlem retrata Carlos Negrom, um jovem afetado por tuberculose que apresenta as fácies típicas de um tísico crônico: aspecto caquético, magro, cansado e deteriorado. Esta obra também mostra um dos manejos instaurados na era pré antibiótica para manejar a tuberculose: a toracostomia. A face desolada do doente é reflexo da impotência humana frente à desgraça, das esperanças quebradas de um paciente que se agarra com força a qualquer ilusão de vida.

Na pintura latina se destaca Cristóbal Rojas, famoso artista venezuelano do século XIX. Rojas peregrinou por diferentes correntes pictóricas, que vão desde o pós-romantismo até o impressionismo, ambicionando alcançar a maestria dos clássicos. O artista representa em suas obras aspectos dramáticos vinculados com a enfermidade e pobreza.

A Primeira e Última Comunhão mostra seis pessoas num recinto: o ambiente é desalentador, a desesperança reina na tela, uma das personagens é uma menina que recebe a primeira e provavelmente a última comunhão; em seu rosto se apreciam sinais de uma enfermidade de alto grau consumptivo, face caquética, devastada, a espera do fim dos seus dias. Em 1890 Rojas deixa o mundo em decorrência da tuberculose.

Cristobal Rojas. A Primeira e Última Comunhão (1888).
O talentoso pintor cubano Fidélio Ponce de León morreu aos 54 anos, vítima de tuberculose. Desde o diagnóstico até a morte, este artista se dedicou a trabalhar sua arte com temas obscuros relacionados à enfermidade, angústia, pobreza e morte.

A obra Tuberculose reflete a experiência própria do autor, que via o padecimento da enfermidade como um evento devastador, macabro, destinado a morte, sem esperança ou rotas alternativas.

Fidélio Ponce de León (1895-1949). Tuberculose.
Nota-se os pescoços alongados e edemaciados - sinal de escrófula; a palidez da pele; os olhos vazios, já apagados, sem vida e a mão de um dos dos personagens sobre um crânio, simbolizando a proximidade com a morte.

A tuberculose é vista através das artes sob variadas concepções, culturas e momentos históricos. Desde a beleza etérea e sobrenatural com que se manifesta no corpo de uma amante eterna durante a época renascentista, passando por seu apogeu estético no período romântico, em que o rosto tísico era sinônimo de formosura e criatividade, até alcançar o medo e a dor da perda de um ente amado e o desconsolo e horror que gera a iminência de morte.

Desfilando pelos distintos estilos artísticos ao longo dos tempos encontramos obras encantadoras que, apesar de refletirem manifestações da degradação orgânica, fazem florescer nossa sensibilidade adormecida. As artes carregam consigo a capacidade de despertar o lado visceral do ser humano.


REFERÊNCIAS: 
1. Cantillo, A. "Tuberculosis: expresión de belleza, horror y dolor". Colombia Medica.Vol. 40 Nº 1, 2009.
2.Chalke HD. The impact of tuberculosis on history, literature and art. Med Hist. 1962; 6: 301-18.
3. Ziskind B and Halioua B. Tuberculosis in ancient Egypt. Rev Mal Respir. 2007; 24: 1277-83.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Camptodactilia em pinturas medievais

Camptodactilia (do grego kamptos, curva, e dáktylos, dedo), ou contratura em flexão congênita, é uma deformidade em que um ou mais dedos se apresentam fletidos, caracterizada pela flexão da articulação interfalângica proximal em combinação com a hiperextensão da metacarpofalangeana e da interfalângica distal, acometendo preferencialmente o quinto dedo.

Detalhe à esquerda evidenciando mulher com turbante. Dieric Bouts, o Velho. A Festa da Páscoa, 1464-1467. Sint-Pieterskerk, Leuven.
Exemplo típico da deformidade é visto na pintura acima, representando uma figura do sexo feminino com um turbante branco detendo a bíblica "erva amarga" (Êxodo 12:8) em sua mão direita. Note a flexâo da interfalangeana proximal do quinto dedo direito, associado a hiperextensão da metacarpofalangeana (MCP) e da interfalangeana distal (IFD).

Outros exemplos são vistos adiante:

Dieric Bouts. Mater Dolorosa,. Suermondt-Ludwig-Museum, Aachen.
De acordo com a prevalente opinião, a modelo representada nas obras aqui expostas é Elisabeth van Voshem, esposa de Dieric Bouts e madrasta de Albrecht Bouts.


Albrecht Bouts . Mater Dolorosa. 1475. Suermondt-Ludwig-Museum, Aachen
Um artefato poderia explicar a apresentação incomum do quinto dedo nestas obras. Entretanto, tal alegação é improvável por conta da notável reputação de Bouts, grande observador e representador de detalhes. O artista é conhecido por ter feito, a fim de atingir os efeitos almejados, extensas correções e ajustes técnicos em suas obras.

O Maneirismo, movimento caracterizado pelo dinamismo e complexidade de suas formas a fim de se conseguir maior elegância ou emoção, poderia justificar deformidade do quinto dedo, mas tal argumento também é infundado, pois nesse caso, para inferir tensão, seria observável uma flexão da interfalangeana distal em questão (assim também seria ilustrada a mão em posição de garra ou preensão). Além disso, maneirismo não é o estilo visto em nenhuma das obra de Dieric Bouts, nem nas pinturas de seu filho Albrecht.

Exímios artistas, como os pertencentes a família Bouts, tendem a retratar fielmente o que veem, não obscurecendo a realidade pela lisonja.

Referência:
1.W Hijmans; J Dequeker. “Camptodactyly in a painting by Dirk Bouts (c. 1410–1475)”, J R Soc Med 2004;97:549–551.

sábado, 15 de setembro de 2012

Importância da Cultura na Formação Médica

"A Leitura". Pierre Renoir
Nos tempos em que não existia um manual explicando como “usar” e “consertar” o corpo humano, a chave de todo o conhecimento médico habitava nas práticas instintivas e empíricas. As ciências humanas participavam ativamente do desenvolvimento da medicina. O bom curador havia de ser não um técnico habilitado para manejar a estrutura corporal, mas um sacerdote, um mago, um profeta, um artista e um filósofo.

Estes médicos, ao duvidarem da conduta a ser tomada, buscavam inspiração nas artes, catalisando seus neurônios com a beleza embriagadora destas. Sabiam eles que os seres humanos assemelham-se a uma obra artística que, tal como pinturas abstratas, precisam de um olhar apurado para serem analisados e compreendidos. Como a partir das “catálises processadas pelo refinamento” advieram grandiosas descobertas, rendeu-nos muitos epônimos derivados da mitologia e literatura para designar doenças e medicamentos.

O médico era também um companheiro, o amigo da família, era quem visitava os doentes e rezava junto a eles e se, por acaso, morriam, sua presença era certa e esperada no sepultamento. Porque o médico era, há um tempo, mais que um cientista, um confidente, um xamã e um amigo.

Sem embasamento teórico, para optar por uma conduta adequada, o médico antigo tinha de conhecer intimamente quem necessitava dos seus cuidados: os hábitos, a história e as crenças de seus pacientes, desenvolvendo portanto a consciência de que somente acessando o cerne do outro construiria um conhecimento concreto a respeito de sua ciência e atuação.

Não é de se estranhar que personagem como Nostradamus tenha se destacado como médico. Exímio astrônomo e alquimista, dotado de grande erudição que impulsionava a imaginação, cultivava a intuição através das ideias e alimentava com sabedoria seu senso observacional para com a humanidade, brotando-lhe até mesmo um raciocínio bastante acurado a respeito do futuro.

Assim era o médico de antigamente, por possuir um espírito inquiridor, ele era, de fato, um completo cientista, interessado nas mais diversas áreas de conhecimento. Os doutores que marcaram a história possuíam, antes de quaisquer outras qualidades, a virtude da curiosidade e sensibilidade para compreender e penetrar a “alma humana”.

A partir de meados do século XIX, uma revolução no terreno da patologia fora desencadeada por importantes descobertas em campos como o da microbiologia, análises laboratoriais e outros métodos clínicos, gerando profundas transformações na medicina como um todo, incrementando consideravelmente a formulação dos diagnósticos. O surgimento da antibioticoterapia proporcionou aos médicos uma eficácia na cura e um domínio sobre os males sem precedentes na história.

Acontecia um verdadeiro “milagre” e, tudo dava a entender que no início do século XX a medicina atingiria o seu apogeu, o seu estágio de ciência exata. À medida que o prestígio das descobertas cientificas crescia, o das ciências humanas dissolvia-se no meio médico. As artes, apesar de ainda importantes, para o novo médico pouco podiam acrescentar, já que novas descobertas e métodos efetivamente científicos abriam novas dimensões.

Os enormes progressos rapidamente alcançados através das ciências biológicas e químicas, associados aos avanços tecnológicos, foram, cada vez mais, redirecionando a formação e a atuação do profissional médico e, infelizmente, modificando também sua escala de valores.

O segredo do conhecimento não mais se esconde nos documentos históricos nem nas instituições artísticas ou filosóficas, aliás, não há mais segredos: as informações se exibem totalmente desnudas nos manuais herdados de pesquisadores atentos que fizeram uma análise sistemática do comportamento físico-químico dos órgãos, tecidos e células.

Maravilha! Com tantas informações ao nosso dispor, não precisamos mais intuir sobre o que seria melhor para qual e tal paciente, não há necessidade de perder tempo colhendo tantas informações, nem num minucioso exame físico, pois diante de atuais exames complexos, esse caloroso contato afigura-nos tão insignificante!

Eis então a moderna função de grande parte das escolas médicas: orientar o aluno sobre como aplicar as informações contidas nos “manuais” especializados na “máquina” humana.

Focados apenas nos compêndios de Medicina, certamente se tornarás um especialista, um profundo conhecedor de exames precisos e especializados, porém, haverá um grande risco de te tornares nada mais que um excelente técnico, ignorante dos aspectos humanos presentes no paciente que assiste.

É deveras essencial nutrirmo-nos com o conhecimento médico adquirido até os dias atuais, tais informações são extremamente úteis para ajudarmos nossos pacientes, mas, por favor, caros doutores, não deixeis de alimentar também o seu espírito.

Nossa imaginação, assim como o corpo, precisa de nutrientes estimuladores e prazerosos. Satisfaça o seu intelecto, dê-lhe de sobremesa, após almoçar capítulos do Guyton, “A Morte de Ivan Ilitch” (garanto-lhe que Tostói jamais lhe dará indigestão).

Compreender como os fatores sociais, psicológicos e culturais afetam a saúde física e ser sensível a estes fatores fazem uma diferença importante nos resultados da saúde. Somos a vinculação do que sentimos, pensamos e produzimos. Nossas atitudes são guiadas pelo que lemos, acreditamos, duvidamos e admiramos. Também as crenças culturais influenciam consideravelmente comportamentos relacionados à saúde. Nossas ideias e realizações são, portanto, manifestações da experiência pessoal, influenciando incisivamente no resultado da nossa atividade médica.

domingo, 9 de setembro de 2012

"O Doente Imaginário", de Molière

A peça O Doente Imaginário, de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière (1622-1673), foi destinada inicialmente à diversão do rei. Famosa sátira da medicina, nela o autor nos apresenta uma medicina livresca, incapaz de progredir.


Protagonizando, o hipocondríaco Argan, entupido de remédios e clisteres prescritos por médicos interessados apenas no retorno financeiro que tinham com o emprego de seus serviços; estes doutores possuem nomes sugestivos, Sr. Purgon (purgante) e Sr. Diafoirus (diaforéticos).
BÉRALDE: [...] Não vejo pessoa que esteja menos doente do que vós, e que eu não pediria melhor constituição do que a vossa. Uma grande prova de que andais bem, e que tendes um corpo perfeitamente bem regulado, é que com todos os remédios que já tomastes, ainda não conseguistes estragar a vossa saúde. Vê que não estais morto co todos os medicamentos que lhe fizeram tomar. (ATO III, CENA III).
Molière impinge na obra a ideia de que a paixão por médicos e medicamentos é apenas uma forma desesperada de terror da morte. Que o autor fosse o “original” do Doente é amplamente especulado. A obra é alimentada por sua própria experiência como paciente. Molière tinha uma visão arguta e havia adquirido uma certa cultura médica, pois um doente inteligente e provido de espírito crítico, desiludido com os insucessos dos tratamentos, se tornaria necessariamente um autodidata em medicina.

Comédia singularmente amarga, apesar dos risos que traz em vários momentos, a peça fotografa uma fase penosa da vida do irônico autor, que escolheu traduzir de forma engraçada o que sentiu quando, atrozmente doente (vítima de tuberculose pulmonar), viu-se abandonado pelos médicos que o assistiram; assim, O Doente Imaginário é um protesto da inteligência e do corpo contra a implacável destruição imposta pela doença, contra a impotência humana, contra a exploração de alguns da miserável condição humana.
ARGAN – Mas afinal, meu irmão, há pessoas tão sábias e tão inteligentes quanto vós e vemos que no mal estar todos apelam para os médicos.
BERALDE – É um traço da fraqueza humana e não da verdade de sua arte. 
ARGAN – Mas é preciso que os médicos achem o seu ofício verdadeiro, já que o utilizam para si mesmos.
BERALDE – É que há alguns entre eles que também estão na crença popular, da qual aproveitam , e outros que dela aproveitam sem acreditar. O vosso senhor Purgon, por exemplo, não vê fineza; é um homem de todo médico, da cabeça aos pés; um homem que acredita em suas regras mais do que todas as demonstrações da matemática, e que acharia um crime querer verificá-las; que não vê nada de oculto na medicina, nada de duvidoso, nada de difícil, e que, com uma impetuosidade de prevenção, uma rigidez de confiança, uma brutalidade e senso comum, fornece a torto e a direito purgantes e sangrias e não imagina nada além. [...] É a nossa inquietude, a nossa impaciência, que tudo estraga, e quase todos os homens morrem de seus remédios, e não de sua doença. (ATO III, CENA III)
Publicando a obra, Molière emite um grupo de alarme: a medicina está se enterrando no palavratório. E o autor vai mais longe, chega mesmo à negação da própria medicina. E esta negação se origina da sua experiência com médicos antiéticos que lhe extorquiam dinheiro prometendo saúde numa época em que o diagnóstico de tuberculose equivalia a uma sentença de morte.

Nos últimos dias de vida, vendo que a tuberculose apenas progredia e tirava-lhe o fôlego, Molière concluiu que não se curam os doentes do corpo, mas tão só os maníacos; suporta-se; conforma-se; ou melhor, ri-se deles.

O último ato da vida do autor foi numa noite de inverno. Menosprezando os conselhos dos médicos que lhe diziam para ficar em repouso e não ir ao teatro, Molière foi representar o obidiente hipocondríaco Argan em sua sua famosa peça "O Doente Imaginário" em 17 de fevereiro de 1673. Recitando os versos, ele apresentou hemoptise no palco. Em seguida, enquanto a plateia delirava em aplausos, foi tomado por uma convulsão e levado pra casa, onde morreu às 22h da mesma noite.

O grande escritor e artista cômico que sonhou ser um ator de tragédias, representou alegria para os outros e fez de sua própria vida a tragédia que tanto queria representar. Não é surpreendente que o mestre da dissimulação e duplo sentido tenha encerrado a trajetória num momento em que encenava um falso doente.

REFERÊNCIAS:
MOLIÈRE. "O Doente Imaginário". Ed. Martin Claret, 2a edição. 2009.

sábado, 4 de agosto de 2012

Paralisia Cerebral por Sofrimento Fetal na obra de Shakespeare

William Little (1810-1894), sofrendo das sequelas de uma poliomielite que lhe paralisara a perna esquerda, estudou Medicina acreditando que assim poderia tratar-se e curar-se. Anos depois, ao tornar-se especialista em cirurgia ortopédica, sustentava a possibilidade de descrever a etiologia dos transtornos motores cerebrais em crianças.

Não encontrando trabalhos científicos anteriores em que basear-se, recorreu a William Shakespeare (1564-1616).


Veio-lhe então à memória um fragmento de A Tragédia de Ricardo III (1593), onde o personagem Ricardo profere sua deficiência física e dificuldade de marcha, em associação com antecedentes de asfixia perinatal e prematuridade:

Eu, que privado sou da harmoniosa proporção, erro de formação, obra da natureza enganadora, disforme, inacabado, lançado antes de tempo para este mundo que respira, quando muito meio feito e de tal modo imperfeito e tão fora de estação que os cães me ladram quando passo, coxeando, perto deles. (Ato I, cena: I)

Também na obra, Lady Anne, viúva do príncipe de Gales, assim amaldiçoou Ricardo:

Se alguma vez tiver um filho, que nasça malformado, estranho, fora do tempo, que o seu aspecto feio e monstruoso assuste a esperançosa mãe, quando o vir; e que lhe herde a desventura. (Ato I, cena: II).

Segundo o poeta, o nascimento “fora do tempo” ocasionaria uma condição defeituosa também no filho do prematuro Ricardo.

Valorizando a descrição de Shakespeare, Little relacionou as complicações obstétricas – principalmente relacionadas à prematuridade – ao déficit de desenvolvimento motor em crianças. O cirurgião passou a observar a frequência dos problemas perinatais, postulando que os defeitos motores dependiam de maneira direta de dificuldades no momento do parto.

Em 1843, o cirurgião sugeriu à comunidade científica que havia uma associação entre a paralisia cerebral e a anoxia neonatal. Seus primeiros artigos aceitos pela Lancet, em 1844 e 1861, descreviam suas observações sobre um grupo de crianças com anormalidades do tônus muscular e desenvolvimento, além de versar sobre a rigidez espástica das extremidades nos neonatos. Muitas destas crianças, de fato, tinham antecedentes de complicações no parto.

O ponto alto foi o artigo publicado em 1862 “Da influência do parto normal, dificuldades do parto, parto prematuro e asfixias do neonato e sobre o estado mental e físico da criança, principalmente no concernente a deformidades”.


Little ocupou-se intensamente com o estudo da espasticidade, descrevendo pela primeira vez o que hoje chamamos de paralisia cerebral, na forma de diplegia espastica, que passou a chamar-se doença de Little.

A partir daí, o transtorno motor por lesão cerebral foi doença com que se ocuparam neurologistas e ortopedistas, a fim de melhorar as possibilidades cirúrgicas indicadas por Little.

Freud, após conhecer o trabalho de Little, descreveu em várias monografias a diplegia espástica, entretanto, especulou que as dificuldades perinatais eram resultados de anormalidades preexistentes no feto. O pai da psicanálise foi quem sugeriu, em 1897, a expressão "paralisia cerebral".

Define-se como Paralisia Cerebral (PC) um déficit motor central não progressivo que se origina em eventos nos períodos pré-natal ou perinatal. O mais comum evento etiológico é a anoxia cerebral; Outra causa comum seria o trauma mecânico cerebral ao nascimento. A forma espástica (cuja lesão é localizada no trato piramidal), é encontrada em 88% dos casos.

A PC classifica-se, pela topografia da lesão, como tetraplegia, monoplegia, diplegia e hemiplegia. Flexão e rotação interna dos quadris, flexão dos joelhos e equinismo são as deformidades mais freqüentes nas crianças que adquirem marcha. Quando a adução dos quadris é acentuada, conduz ao cruzamento das pernas (pernas em tesoura). Os reflexos tendinosos são ativos, às vezes com um prolongado clonus do pé. São comuns a contratura dos tendões dos calcanhares, limitações dos quadris em abdução e rotação externa, e limitação dos antebraços em extensão e supinação.

Atualmente, sabe-se que quando a lesão causadora da PC atinge a porção do trato piramidal responsável pelos movimentos das pernas, localizada em uma área mais próxima dos ventrículos, a forma clínica é a diplegia espástica (doença de Little), na qual o envolvimento dos membros inferiores é maior do que dos membros superiores. A região periventricular é muito vascularizada e os prematuros, por causa da imaturidade cerebral, com muita frequência apresentam hemorragia nesta área.

Desprovido de embasamento científico, mas empregando seu transcendente poder observacional, Shakespeare foi quem primeiramente associou o déficit motor às condições de nascimento.

REFERÊNCIAS:
1.LEITE, J. PRADO, G. “Paralisia cerebral Aspectos Fisioterapêuticos e Clínicos”. Revista neurociências. Volume 12 - n°1 – 2004.
2.Muzaber, F.L. Schapira, I. “PARÁLISIS CEREBRAL Y EL CONCEPTO BOBATH DE NEURODESARROLLO”. Rev. Hosp. Mat. Inf. Ramón Sardá 1998, vol. 17, Nº 2.
3.Flehmig, Inge. “Texto e atlas do desenvolvimento normal e seus desvios no lactente: diagnóstico e tratamento precoce do nascimento até o 18 mês”. São Paulo: editora Atheneu,2000.
4. Paralisia Cerebral: Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação.: http://www.sarah.br/paginas/doencas/po/p_01_paralisia_cerebral.htm

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Síndrome de Proteus

O deus grego marinho Proteus, personagem da Odisséia, de Homero, é o mais velho dos filhos de Poseidon. Esta divindade mitológica, oracular e pastor dos animais marinhos, é conhecido também como "velho do mar".

Proteus - xilogravura de Jörg Breu. Apresentada noLivro de Emblemas, por Andrea Alciato (1531).
Venerado como profeta, possui o dom da premonição, atraindo assim o interesse de muitos curiosos. Entretanto, não é fácil acessar às informações sobre os acontecimentos vindouros. Tem direito a saber o destino os seres determinados e corajosos. Proteus responde apenas quem tem capacidade de capturá-lo.

Ao aproximar-se um ser humano que ele julga medíocre, ele foge ou metamorfoseando-se, assume aparências tão monstruosas quanto assustadoras. Fica a par das predições o homem que é persistente o suficiente para enfrentar tais artimanhas.

Em 1983, Wiedeman propôs o nome Síndrome de Proteus para uma doença com capacidade infligir às vítimas forma monstruosa. Trata-se de uma hamartomatose congênita que afeta os três folhetos embrionários, acarretando o crescimento excessivo dos tecidos.

A síndrome apresenta grande polimorfismo clínico e evolutivo, podendo manifestar-se com tumores subcutâneos, macrocefalia, gigantismo parcial das mãos e dos pés, nevo pigmentado, hemi-hipertrofia, e outras anomalias cranianas e viscerais.

Retrato de Joseph Merrick evidenciando as manifestações da Sìndrome de Proteus.
O mais conhecido portador da síndrome de Proteus foi Joseph Merrick, cuja trajetória é narrada no filme e livro O Homem Elefante”, de 1988.

Muito apropriada é a denominação dada por Wiedeman, visto que a síndrome se caracteriza por uma inconstante diversidade morfológica em sua apresentação e evolução.

REFERÊNCIAS:
1.Wiedemann HR, Burgio GR, The proteus syndrome. Partial gigantism of the hands and/or feet, nevi, hemihypertrophy, subcutaneous tumors, macrocephaly or other skull anomalies and possible accelerated growth and visceral affections. Eur J Pediatr 1983;140:5-12.
2.VIEIRA, NR. PEREIRA, L. “Síndrome de Proteus: relato de caso.” An bras Dermatol, Rio de Janeiro, 76(2):201-208, mar./abr. 2001.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Síndrome de Ondina: Mitologia & Distúrbio Respiratório

Havia uma ninfa da água muito formosa chamada Ondina que, assim como todas as ninfas, era imortal. O acontecimento capaz de ameaçar sua felicidade eterna seria apaixonar-se por um mortal e ter um filho. Isto lhe ocasionaria a perda da beleza e da imortalidade.

Ondina Sonhando. Gonzalo Juliani.
Lawrence, um audaz cavaleiro mortal, conquistou o coração de Ondina e esta, apaixonada, confidenciou-lhe o que a relação entre os dois poderia custar. Ele, para demonstrar todo o amor que sentia, afirmou: “Sempre que estiver acordado e cada vez que eu respirar, meu pensamento será de lhe amar e lhe ser fiel”.

Um ano após o casamento, nasceu o filho do casal. A partir do momento em que se tornou mãe, Ondina passou a envelhecer, como qualquer mortal. Enquanto os atrativos físicos da ninfa desvaneciam, diminuía o interesse de Lawrence pela esposa.

Uma tarde, quando Ondina caminhava próximo ao estábulo, escutou uns gemidos que lhe soaram como sendo do seu marido e, ao entrar no local, viu Lawrence nos braços de outra mulher. Ondina, fitando seu marido, sentenciou:

“Você me jurou a fidelidade a cada respiração. Eu aceitei a sua promessa. Assim seja, permaneça acordado para lembrar de respirar, pois se acaso você dormir, sua respiração não ocorrerá e morrerá!”.

 Lawrence se viu condenado a manter-se acordado para sempre.

O termo médico Maldição de Ondina, tomado da clássica obra da mitologia nórdica Ondina (1811), de Friedrich La Motte Fouqué, designa uma doença genética raríssima causada por uma mutação no gene PHOX2B localizado no cromossomo 4, que gera uma desordem no sistema nervoso central desativando o controle automático da respiração durante a fase REM do sono, ou seja, assim que a pessoa que tem a síndrome dorme, ela para de respirar.

Fisiologicamente, sofremos hipopneias durante o sono. A cada apneia, os níveis de CO2 aumentam e os de O2 diminuem, deflagrando novo movimento inspiratório. Descrita em 1962 por Severinghaus e Mitchell, a Síndrome de Ondina (também conhecida como Maldição de Ondina, Síndrome da Hipoventilação Central Congênita ou Hipoventilação Alveolar Primária) é uma condição que compromete o sistema nervoso autônomo (SNA) provocando uma insensibilidade em detectar aumento de CO2 e diminuição de O2, indutores do estímulo que deve atingir o centro respiratório situado no Tronco Encefálico. O controle voluntário permanece intacto. Está presente desde o nascimento e necessita de suporte ventilatório durante o sono; em um terço dos pacientes existe dependência ventilatória 24 horas por dia.

É preferível utilizar o termo Síndrome Central Congênita ou Hipoventilação Alveolar Primária a Maldição de Ondina, em função do aspecto trágico e sombrio da sua origem, ligada a lenda de uma maldição.

REFERÊNCIAS: 
1.Assencio-Ferreira, V, Silveira,M. “Era uma vez Ondina: Relato de caso”. Distúrb Comun, São Paulo, 21(3): 385-389, dezembro, 2009. 
2.Garzón, F. Raggio, V. "Maldición de Ondina:presentación de un caso clínico." Arch Pediatr Urug 2007; 78(1): 29-34

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Síndrome de Marfan em pintura italiana do século XVI

“Não há perfeita beleza sem algo estranho e anormal na forma”, com esta frase o artista italiano Parmigianino assinou seu estrondoso óleo sobre madeira A Virgem com Longo Pescoço (originalmente intitulado La Madonna dal Collo Lungo). Atualmente localizada na Galeria Uffizi, em Florença (Itália), estima-se que a obra fora confeccionada entre os anos 1534 e 1540.

A pintura evidencia a Virgem, sentada em um alto pedestal e envolvida com roupas extravagantes, segurando o Menino Jesus. A direita de Maria, vê-se seis anjos e, à esquerda, surge discretamente uma representação de São Jerônimo.

“Virgen Del cuello largo”. 1534-1540. Óleo sobre madeira. 216 × 132 cm. Galleria degli Uffizi. Florença (Itália).
Nota-se que a modelo que inspirou Parmigianino apresenta proporções humanas distorcidas, com comprimento anormal do pescoço e dos membros, bem como longuíssimos quirodáctilos, além de possuir quase o dobro do tamanho dos anjos representados à sua direita.

Detalhe evidenciando o comprimento do pescoço e dos dedos.
Tais características sugerem que a figura retratada pode ter sido vítima da Síndrome de Marfan, uma doença autossômica dominante do tecido conjuntivo descrita em 1896 pelo pediatra francês Antonie Marfan, causada por mutações no gene da fibrilina-1 (FBN1).

Uma grande variedade de anormalidades músculo-esqueléticas ocorre nesta síndrome, destacando-se a elevada estatura, dolicostenomelia (termo cunhado por Antonie Marfan para designar o comprimento excessivo dos membros), aracnodactilia (crescimento exagerado dos dedos) e frouxidão ligamentar.

Outras alterações incluem escoliose, deformidades da parede torácica, mobilidade articular anormal e protusão acetabular.

Curiosidade: representações artísticas das características sindromicas descritas por Marfan não se restringem aos séculos atuais, também o faraó Akhenaten, o qual governou o Egito antigo de 1350 a 1334 a.C., fora retratado com dolicostenomegalia.

Imagens representando o Faraó Akhenaten com seus membros anormalmente longos. Museu Egipcio (Cairo).

Referências:
1.BARRETO M., BRESSANE, R. et al, “Síndrome de Marfan”. Porto Alegre, 2002.
2.Wikipédia: Virgen del cuello largo

sábado, 7 de julho de 2012

Doença de Hutchinson-Gilford no filme “Blade Runner”

André Manzan, estudante do terceiro ano de medicina, Universidade Católica de Brasília.

Blade Runner (1982) se passa no ano de 2019, uma época (bastante fictícia para nossa atual tendência) em que a humanidade já explora e coloniza outros planetas. Para isso, foram criados os Replicantes, seres praticamente idênticos aos humanos, porém mais fortes e ágeis, sendo os replicantes do lote denominado Nexus 6 dotados de inteligência comparável aos engenheiros genéticos que os criaram.

Fig. 1: 
J. F. Sebastian, personagem portador de DHG, aos 25 anos de idade.
Geneticamente produzidos para trabalho extraterrestre em regime escravista, os replicantes organizaram uma revolta sangrenta em uma das colônias, e a partir disso tornou-se ilegal a presença de replicantes na Terra, sendo punidos com morte os que transgredissem a esse decreto. Para isso foram criadas unidades especiais de polícia, os “Blade Runners”, para caçar e executar qualquer replicante que aterrissasse na Terra. Como os replicantes são tecnicamente humanos (já nascidos fisiologicamente desenvolvidos), não há como diferenciá-los salvo sua falta de desenvolvimento emotivo, que com os passar de anos também conseguiriam adquirir, não fosse um mecanismo genético criado para que tivessem um tempo de vida de apenas quatro anos. Esse mecanismo foi criado a partir de genes de um dos engenheiros genéticos, o qual era portardor da síndrome (ou progéria) de Hutchinson-Gilford, e assim todos os replicantes também eram portadores dessa síndrome.

Fig. 2
A doença de Hutchinson-Gilford (DHG), ou simplesmente progéria (Gr: pro, antes + geras, idade avançada) é uma doença autossômica dominante, caracterizada por uma aparência de envelhecimento precoce que tem uma incidência de 1 em 8.000.000 de crianças nascidas. Apesar de dominante, a doença é esporádica e não há descendência, pois há uma completa falta de maturação sexual. A patologia tem origem em uma mutação no gene codificante da laminina A/C (LMNA), uma proteína associada à lâmina interna do envelope nuclear, afetando o metabolismo de células com alta taxa de replicação. O prognóstico é bastante sombrio, tendo os portadores uma vida média de 13 anos, mas podendo variar de 5 a 20 anos, e raramente alguns casos chegaram a 27 anos. A morte geralmente é causada por cardiopatias ou encefalopatias vasculares e aterosclerose severa é um traço comum nessas crianças. Manifestações como micrognatia, macrocefalia, olhos proeminentes, veias do couro cabeludo aparentes, baixa estatura, baixo peso para a idade, tórax piriforme, membros finos com articulações proeminentes e pouco flexíveis, coxa valga, clavículas curtas e distróficas, panículo adiposo escasso, alopecia generalizada, dentição retardada e anormal, marcha hesitante e de base ampla, estão sempre presentes. São normais na lactância mas já no nascimento pode apresentar sinais como esclerodermia, nariz fino e esculpido “em bico”, e cianose na porção mediana da face. A cognição não é afetada, as funções glandulares não apresentam anormalidades, e sinais senis como catarata, presbiopia, presbicusia, osteoartrite, arco senil e alterações da personalidade não estão presentes.

Fig. 3
Embora seja interessante o uso de personagens relacionados com a realidade, nem sempre se usam as características fenotípicas fiéis, já que assim perderia o romantismo da história. O nosso personagem Sebastian tem a aparência normal de uma pessoa senil, bem distante da aparência de uma pessoa portadora da progéria de Hutchinson. Sebastian, caso tivesse realmente a mutação no gene LMNA, patogênica da DHG, ele seria um representante raro com apenas a manifestação do envelhecimento precoce. Entretanto, o filme continua tendo seu valor, ainda mais pelo seu conteúdo técnico-científico. Em uma época em que todas as histórias de mutações eram explicadas a partir da energia ionizante do decaimento nuclear, o filme trata a genética em detalhamento técnico que não era conhecido ainda fora do ambiente científico.

REFERÊNCIAS: 
1. KLIEGMAN, R. M.; et. al. Nelson Texbook of Pediatrics, 18 ed. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007.
2. COOPER, G. M.; HAUSMAN, R. E. The Cell: A Molecular Approach, 4 ed. Sunderland: Sinauer, 2007.
3. Imagens:
3.1 http://bladerunner.wikia.com/wiki/J.F._Sebastian
3.2 http://blog.medfriendly.com/2012/02/progeria-children-with-elderly-body.html
3.3 http://wtf.thebizzare.com/bizarre/top-10-weird-anomalies-in-medicine/

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Anatomia do coração no teto da capela sistina, por Michelangelo

Sibilas são um grupo de personagens da mitologia greco-romana, descritas como sendo mulheres que possuem poderes proféticos sob inspiração de Apolo.

A Sibila de Cumas é considerada como a mais importante das dez sibilas conhecidas. Tinha o dom da profecia, e fazia suas previsões em versos. É conhecida como a "sibila de Cumas" por ter passado a maior parte de sua vida nesta cidade, situada na costa da Campânia (Itália).

Apolo, deus que inspirava as profecias da sibila, prometeu-lhe realizar o que desejasse. A Sibila então colocou um punhado de areia em sua mão e pediu-lhe para viver tantos anos quantos fossem as particulas de terra que ali tinha. Mas esqueceu-se de rogar, também, pela eterna juventude, assim foi que com os anos tornou-se tão consumida pela idade que teve de ser encerrada no templo de Apolo em Cumas. Conta a lenda que viveu nove vidas humanas com duração de 110 anos cada.

Michelangelo retratou a Sibila de Cumas como uma profetisa robusta e musculosa, apesar do rosto envelhecido.

Embutido neste afresco, situado no teto da Capela Sistina, nota-se uma fiel representação anatômica da vista anterior do saco pericárdico e dos grandes vasos sanguíneos:

A Sibila de Cumas. Capela Sistina (Itália).
Pistas: O manto sobre a perna direta da sibila tem o formato da representação leiga de um coração. Os dois querubins à esquerda. O querubim de trás repousa a mão sobre o precórdio do querubim que está à frente.



Achados anatômicos: A bolsa pendurada pela alça que emerge logo abaixo do livro adornada com uma franja vermelha, que deixa aparente a extremidade de um rolo de papel, corresponde à vista anterior do saco pericárdico e dos grandes vasos. A veia cava corresponde à alça da bolsa (a), e a emergência da aorta corresponde à ponta do rolo de papel (b). A franja vermelha corresponde à borda do diafragma (c) inserida ao pericárdio.

A coxa e a perna direita da sibila de Cumas chamam a atenção tanto pelo volume como pela cor vermelha iluminada. Também nesta cena Michelangelo retratou, sob outra perspectiva, o coração com o saco pericárdico aberto:


Observa-se acima o coração envolto pelo pericárdio e as duas coronárias – direita (d) e esquerda (e) – percorrendo os seus trajetos estão representados no manto sobre a coxa direita da sibila.

REFERÊNCIAS:
BARRETO, Gilson "A Arte Secreta de Michelangelo - Uma Lição de Anatomia na Capela Sistina. São Paulo: Arx, 2004

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Semiologia em "Popeye"

O personagem Popeye (cujo o nome, pop eye, significa olho arregalado), filho da criatividade do escritor Elzie Crisler Segar, nasceu em 1929. Baseado em Frank Fiegel, baixinho invocado amigo de Segar, o personagem é um carismático marinheiro, cuja principal função é proteger sua amada, Olivia Palito, das garras de seu inimigo Brutus. Ao ingerir espinafre, Popeye adquire uma força descomunal, ficando preparado para vencer quaisquer desafios.

Durante o ano de 1933, o estado do Texas, considerado o maior produtor mundial de espinafre, viu-se diante de uma supersafra dessa folhagem e sem mercado para escoar a colheita excedente. Os empresários do agronegócio convenceram Segar a fazer Popeye adquirir uma força extraordinária ingerindo espinafre. As vendas aumentaram 30%.

Popeye, ao ingerir o vegetal, apresentava uma súbita hipertrofia na região anterior do braço, como se nele houvesse uma bola, o que deu origem ao termo médico Sinal de Popeye:

(Gravura de M. Waldman). Sinal de Popeye após a ingestão de espinafre.
Denomina-se Sinal de Popeye, músculo de Popeye, deformidade de Popeye ou bíceps de Popeye o aspecto morfológico advindo da rotura do tendão da cabeça longa do bíceps do braço. Fixado no tubérculo supraglenoidal da escápula, o referido tendão localiza-se parcialmente no sulco intertubercular do úmero, o que propicia a ocorrência de tendinite e degeneração tecidual. Em mais de 70% das roturas totais do tendão originado da cabeça longa do bíceps braquial, o paciente apresenta um “caroço” na superfície anterior do braço.

Rotura do tendão da cabeça longa do bíceps do braço e consequente "Sinal de Popeye".
A saliência ocorre devido à retração do ventre do músculo bíceps. Outras manifestações são estalidos audíveis e dor súbita no ombro.

Curiosidades: 

Ano passado, pesquisadores ingleses receberam um homem de 42 anos que havia sofrido um acidente de bicicleta. Um caminhão bateu em sua traseira e seu glúteo direito sofreu uma separação e adquiriu um contorno anormal durante a contração. Os médicos resolveram chamar o caso de glúteo do Popeye, em alusão ao formato do bíceps do personagem do desenho animado. De acordo com o médico responsável pelo caso, Thomas Wood, eles pensaram no desenho porque o glúteo do paciente parecia o braço do Popeye quando ele comia espinafre: seu bíceps ficava perpetuamente flexionado, com aparência de forte, como se o músculo tivesse se separado do osso.

Olívia ganhou de presente, no ano de 1936, um estranho bichinho de estimação chamado Eugene. Dotado de poderes mágicos, amarelado e monossilábico, pronunciava de vez em quando as palavras “jeep jeep”. Em 1940, durante a II Guerra Mundial, a Willys-Overland Motors investe tudo na propaganda de seu estranho veículo 4 x 4, projetado para rodar em qualquer terreno, ou seja “general purpose” (GP). Os americanos apelidam carinhosamente o gp (pronuncia-se em inglês gipi) de jeep, em alusão ao jeep proferido pelo animalzinho de estimação de Oliva.

O pão com salsisha e molho de tomara foi chamado pela primeira vez de “hot-dog” em uma das historias de Popeye.

É de Olívia a frase “A esperança é a última que morre”, pois há 83 anos espera-se casar com Popeye e com ele viver feliz para sempre.

REFERÊNCIAS: 
1.BEZERRA AJC, ARAUJO JP - Medicando com arte. Cons. Reg. Med. Distrito Federal, 2006 
 2.Wikipédia: Popeye

sábado, 26 de maio de 2012

Câncer de mama em obra de Rembrandt

Exposta no Louvre, O Banho de Betsabé é uma famosa obra do pintor barroco Rembrandt van Rijn (1606-1669):

O Banho de Betsabé (1654). Rembrandt van Rijn. Óleo sobre tela, 142cm x 142cm. Museu do Louvre (Paris).
A pintura retrata a cena bíblica em que o Rei Davi observa Betsabé nua, e a envia uma carta exigindo sua presença no palácio. A figura feminina expressa tristeza e resignação ao invés de prazer.

De acordo com um cirurgião italiano, Rembrandt registrou na mama esquerda de sua esposa e modelo Hendrickje Stoffels, sinais de câncer de mama, como retração na pele, assimetria mamária, alteração da cor e linfadenomegalia axilar.

Detalhe evidenciando deformidades na mama esquerda.
Devido as alterações sugestivas de neoplasia tanto na mama quanto na axila da modelo representada por Rembrandt, o quadro ilustra a capa do livro Women, Cancer and History, de autoria de James S Olson.

Outros possíveis diagnósticos sugeridos são tuberculose da glândula mamária e mastite puerperal ou da lactação.

Após a conclusão de O Banho de Betsabé Hendrickje viveu durante nove anos, envidencia-se em outras pinturas uma deterioração física de sua saúde ao longo deste período. A esposa de Rembrandt faleceu em 1663. Alguns registros históricos afirmam que ela morreu vítima de tuberculose, outros creem ser mais plausível considerar como causa mortis a disseminação de uma neoplasia mamária.

REFERÊNCIAS: 
1.Bourne RG. Did Rembrandt’s Bathsheba really have breast cancer?. Aust N Z J Surg. 2000;70:231–23. 
2.Masuda, H. Nemoto, N. “Rembrandt’s Bathsheba, possible lactation mastitis following unsuccessful pregnancy.”Medical Hypotheses. Volume 66, Issue 6 , Pages 1240-1242 , 2006.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Adrenoleucodistrofia no filme "Óleo de Lorenzo"

Dirigido por George Miller, Óleo de Lorenzo (1992) é um enternecedor filme baseado em fatos reais que conta a história de Lorenzo Adone, um garoto que aos cinco anos de idade recebe o diagnóstico de adrenoleucodistrofia (ADL), doença que o levaria à morte em menos de três anos.


A ADL é uma doença rara (1:25.000), ligada ao cromossomo X, causada pela deficiência da proteína transportadora de Acil-coenzima A, que é encontrada na membrana dos peroxissomos e está relacionada ao transporte de ácidos graxos para o interior dessa estrutura celular; por conseguinte, há acúmulo de ácidos graxos de cadeia longa principalmente na adrenal e no sistema nervoso central.

A adrenoleucodistrofia deve ser lembrada quando um paciente jovem do sexo masculino apresenta sinais de hipocortisolismo e distúrbios neurológicos, como espasticidade de membros inferiores e/ou distúrbios das funções vesical e sexual.

Augusto e Michaela Odone, pais de Lorenzo, frustrados com a falta de tratamento, resolveram se aprofundar no assunto, e após inúmeras pesquisas, desenvolvem um óleo terapêutico – o óleo de Lorenzo (mistura dos derivados dos ácidos oleico e erúcico), que atua interrompendo a síntese dos ácidos graxos, estagnando a evolução de algumas doenças desmielinizantes, como a ALD.

Augusto, Michaela e Lorenzo Odone.
Por sua importante contribuição à medicina, o pai de Lorenzo recebeu o título de Doutor honorário. Lorenzo Odone faleceu em 30 de maio de 2008, aos 30 anos de idade, por broncoaspiração. Antes do óleo que leva seu nome, a expectativa de vida para esses pacientes era de, no máximo, dez anos.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Síndrome de Cushing e o personagem Barney, d’Os Simpsons.

A síndrome de Cushing é a resultante fenotípica da exposição crônica a concentrações elevadas de cortisol, hormônio liberado pela glândula adrenal em resposta à liberação de ACTH na hipófise anterior.

A causa mais comum de síndrome de cushing é a iatrogênica, pela administração de glicocorticoides nas mais diversas situações clínicas. As causas endógenas de hipercortisolismo são divididas em dois grandes grupos: ACTH-dependente, representada pela doença de Cushing e ACTH-independente, cujo protótipo é o adenoma adrenal.

Analisando o personagem Barney Gumble, alcoólatra da série animada Os Simpsons, nota-se claramente características fenotípicas da síndrome de Cushing:



Apesar de ser um hormônio catabólico, o cortisol leva ao acúmulo de gordura abdominal. O motivo é a expressão muito maior, tanto do receptor para glicocorticoide como da enzima formadora de cortisol, no omento do que no restante do subcutâneo. O resultado é a obesidade tronco-facial e, graças ao desenvolvimento de atrofia e fraqueza muscular pelo catabolismo proteico, associa-se ao quadro extremidades finas e consumidas.

Outros achados característicos são: deposição anormal de gordura na fossa supraclavicular e temporal, hirsutismo, fraqueza muscular proximal, estrias violáceas largas (>1 cm), aparecimento de irritabilidade, redução da cognição e da memória de curto prazo e osteoporose.

O tipo físico de Barney foi inspirado em vários biriteiros americanos:
Estendendo a analogia e levando em consideração o alcoolismo do personagem, ouso dizer que Barney representa um clássico portador da síndrome de pseudo-cushing (que compartilha muitas das características clínicas e bioquímicas da síndrome de Cushing), tendo como uma possível etiologia a alteração da atividade do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal pelo consumo exagerado de álcool ou pela interrupção abrupta do mesmo.

REFERÊNCIAS: 
1.Romanholi, D. “Estados de pseudo-Cushing”. Arq Bras Endocrinol Metab vol.51 no.8 São Paulo Nov. 2007.

domingo, 20 de maio de 2012

Jeca Tatu na Medicina Brasileira

Observando o modo de vida dos caboclos de sua propriedade, o consagrado escritor Monteiro Lobato (1882-1948), transporta para a literatura as suas inquietações, insatisfações e dissabores com relação a preguiça e vagabundagem do homem do campo.

Assim, para representar fielmente o caboclo do Vale da Paraíba, – “homem amarelo, franzinho, inerte, que provoca a morte dos animais, queimadas, e possui baixa produção”, Monteiro semeia, na obra “Urupês”, o personagem Jeca Tatu, onde, desfazendo-se da imagem do caboclo romântico, constrói o anti-herói, o caboclo preguiçoso, piolho da terra, que vive de cócoras, sem aptidões.

Participando ativamente dos debates em torno da campanha pelo saneamento nas áreas rurais, Lobato se depara com os problemas causados pelas péssimas condições de higiene e fraqueza do homem do campo. Assim o escritor, percebendo que sua criaturinha possuía mais problemas que a preguiça, curvou-se a realidade, e para desculpar-se do erro cometido, verificou que “os caipiras eram barrigudos e preguiçosos por motivo de doenças”. O homem do campo era vítima da falta de higiene e saneamento básico, tendo as suas entranhas corroídas por um parasito adquirido.

Consciente das angústias e fatos que acometem os “Jecas da vida”, Monteiro resolve dar uma nova direção para a história, criando o Jeca Tatuzindo, que segundo ele: “padecia dos mesmos males, no entanto,após entrar em contato com a ciência médica, curava-se das moléstias que o levavam a ser indolente; tornava-se trabalhador, enriquecia e transformava-se em exemplo para os vizinhos.” A nova história a ser contada faz parte de uma campanha objetivando esclarecer a população brasileira sobre a ancilostomíase.

O parasito, Ancylostoma duodenale, é agora o causador do “caboclo amarelo e franzinho”, e deve ser combatido para livrar o sertanejo do “mal” de seu corpo. Assim, Monteiro Lobato libera o personagem Jeca Tatu para a participar da campanha nacional contra o amarelão. Lobato, a fim de esclarecer sua nova posição, afirmou no jornal O Estado de São Paulo que “O Jeca não é assim, está assim., .(...) a saúde pública brasileira vai mal e a apatia do caipira é decorrente de suas enfermidades, destacando-se a anciosmose, a leishmaniose, a tuberculose e a subnutrição., em particular, o incômodo causado pelo verme Ancylostoma duodenale.”



O “amarelão” é conhecido desde tempos imemoriais, e caracteriza-se no homem por parasitismo intenso e considerável anemia; Avicena, o mais famoso médico persa, que viveu no século X da nossa Era, foi o primeiro a encontrar os vermes nos intestinos dos pacientes, e responsabilizá-los pela anemia espoliativa, de evolução lenta e progressiva, acompanhadas de perturbações gastrointestinais, depressão mental e física, por serem os mesmos hematófagos (sugadores de sangue).

Estimuladas pelo calor da pele de seus futuros hospedeiros, as larvas atravessam a superfície da mesma, por entre as fissuras ou poros, valendo-se das bordas desses poros como suporte auxiliar de seu caminho posterior, e penetram através das fissuras horizontais, folículos ou aberturas das glândulas sudoríparas, conforme a natureza da pele exposta. No caminho de sua penetração na epiderme, a cápsula, se ainda não inteiramente expulsa, é deixada; o maior número delas e encontrado nos capilares linfáticos do derma, e pequeno número penetram diretamente nos capilares sanguíneos; algumas ficam vagando, muitas vezes, nas camadas superficiais da pele, penetrando no tecido gorduroso e não raro no muscular. As lavas que caem nos linfáticos, são levadas primeiro aos gânglios linfáticos, onde muitas vezes são destruídas, atacadas pelas próprias células linfáticas de defesa, que se fixam firmemente á cutícula das lavas e as matam; Muitas delas, não sendo vítimas dessas células de defesa natural do organismo paralisado, atravessam os gânglios, e caindo no ducto torácico e na corrente circulatória, sendo conduzidas pelos vasos sanguíneos, vão ter ao coração direito, de onde são levadas pela artéria pulmonar até o próprio pulmão; neste órgão, caem nos alvéolos pulmonares, possivelmente atraídas pela presença do oxigênio. Uma vez nos alvéolos, tendo caminhado a curta distância até os brônquios, o epitélio ciliado empurra as larvas pelo caminho restante até a boca do animal hospedeiro. Esse último caminho é apenas mecânico, estimulando a secreção de muco que embebe as larvas, provocando tosse. Tal tosse, chamada tosse chistosa, característica do parasitismo por vermes que efetuam o chamado Ciclo de Looss, acabado de ser descrito, é sintoma que serve para caracterização clinica do parasitismo. A tosse que ocorre por irritação da mucosa das vias aéreas, provocada pela própria larva embebida em muco, serve como meio de ser a mesma deglutida, caindo então no estômago, e daí, para os intestinos, para completarem assim todo o caminho para se estabelecerem definitivamente neste último órgão, agora então como parasitas plenamente desenvolvidos, aptos a sugarem sangue de suas vítimas, e causando todos os malefícios decorrentes.

Yokogawa (1926), através de experiências, descobriu que a maioria das lavas se desenvolve diretamente, sem migrações através da pele,e que poucas penetram nas paredes do canal alimentar. O tratamento na época era feito pela utilização de um vermífugo por via oral. No Brasil, o parasito, Ancylostoma duodenale, recebeu vários nomes, tais quais: Opilação, Amarelão ou Anemia Tropical.

Também para alívio de sua consciência, em 1910 Monteiro Lobato deixa a imagem de seu personagem caipira assumir o papel de garoto propaganda do laboratório paulista fundado por Cândido Fontoura. Supostamente, o antianêmico (ferro para o sangue e fósforo para os nervos e músculos) veio mudar a situação do Jeca, que tornou-se robusto após combater a vermifucação.


Sem perda de tempo, o escritor idealiza e coloca em pratica o novo personagem, o Jeca Tatuzinho, que após tomar o biotônico, teve suas forças refeitas. Assim surgiu o Almanaque do Jeca Tatu, idealizado por Monteiro e editado e distribuído pelo Laboratório Fontoura.

O almanaque explicava com simples palavras ao povo brasileiro, através de Jeca, como o parasito se apropriava de seus corpos através da pele, qual era o ciclo e como os ovos eliminados pelas fezes permaneciam no solo e que para seu bem o caboclo não deveria mais utilizar as bananeiras para as suas necessidades fisiológicas. Deveriam sim andar calçado com suas botinas, na época feitas de couro cru e fabricado de forma artesanal, para evitar a contaminação. Neste período, mais de noventa por cento da população andava descalça e não tinham noções básicas de higiene pessoal, com o almanaque, a população ficou ciente de que os ovos do parasito no solo produziriam as lavas que retornaria através da sola dos pés, e para completar o ciclo as lavas cairiam na circulação; desenvolveriam-se; fixavam-se nas paredes intestinais; aptos a sugarem sangue de suas vítimas e botarem novos ovos para ser expelidos pelas fezes.  
Eu ignorava que eras assim, meu caro Jeca, por motivo de doenças tremendas. Está provada que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharada cruel que te faz papudo, feio, molenga inerte. Tens culpa disso? Claro que não. Assim, é com piedade infinita que te encara hoje o ignorantão que outrora só via em ti manparra e ruindade. Perdoa-me, pois, pobre opilado, e crê no que te digo ao ouvido: és tu isso se tirar uma virgula, mas ainda és melhor coisa desta terra. Os outros, os que falam francês, dançam o tango, fumam havanas e, senhores de tudo, te mantêm nessa geena infernal para que possam a seu favor viver vida folgada á custa do teu trabalho ,esses, meu caro Jeca Tatu, esses têm na alma todas as verminoses que tu tens no corpo. Doente por doente, antes como tu, doente só do corpo....(Urupês, 4º edição. Monteiro Lobato)
Examinando a história do progresso rural, percebemos a incrível contribuição que representou o personagem Jeca Tatu para o desenvolvimento da medicina nacional, em tempos em que era escassa a preocupação com a saúde do povo brasileiro.

Mais que um escritor brasileiro, Lobato é o próprio guia da nacionalidade; com sua literatura, ele tencionou salvar o caboclo dos males da terra, e levando o conhecimento sobre a importância do saneamento e das condições de higiene, inegavelmente obteve resultados positivos.

REFERÊNCIAS: 
1.LOBATO, Monteiro. Urupês. In: Obras completas de Monteiro Lobato. São Paulo: Brasiliense, 1957.
2.PACHECO, RE. "Jeca Tatu: A medicina de Monteiro Lobato." Disponível em: http://encipecom.metodista.br/mediawiki/index.php/Jeca_Tatu:_a_medicina_de_Monteiro_Lobato 3.REY, L. “Um século de experiência no controle da ancilostomíase”. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 34(1):61-67, jan-fev, 2001.