terça-feira, 28 de setembro de 2010

O Código de Hamurabi

Hamurabi, rei da babilônia que viveu no século XVIII a.C., foi o primeiro a instituir um código civil e criminal concernente à prática médica.

Coluna de basalto negro contendo o Código de Hamurabi. Museu do Louvre (Paris). Acima: detalhe da coluna mostra Hamurabi (à esquerda) adorando o deus Sol Shamashi.

Estima-se que o código tenha sido elaborado por volta de 1.700 a.C. Atualmente exposto no Louvre (Paris), dele fazem parte os seguintes artigos:

1.Se o médico trata de um Senhor, abre-lhe um abscesso e lhe salva um olho, receberá dez moedas de prata. Se o paciente é um escravo, seu dono pagará por ele duas moedas de prata.

2.Se o médico abre um abscesso com uma faca de bronze e provoca a morte do paciente, ou lhe faz perder um olho, suas mãos devem ser cortadas. No caso de se tratar, porem, de um escravo, o médico comprará outro e o dará em seu lugar.

3.Se um médico cura um osso doente ou um órgão doente, receberá cinco moedas de prata. Em se tratando de um escravo liberto, este pagará três moedas de prata. Se for um escravo, então o dono pagará ao médico duas moedas de prata.

4.Será nulo o contrato de venda de escravos que estiverem atacados de epilepsia ou lepra.

5.Os leprosos serão banidos do convívio social. Nunca mais conhecerão os caminhos de sua residência.

6.Se o aborto é provocado e a mulher morre, o culpado também será morto.

7.Se um homem casado viola uma jovem, o pai da jovem fará com sua mulher a pena do talião e ela ficará à sua disposição.

8.Será punida com a ablação dos seios a nutriz que deixar morrer seu filho, alimentando um outro.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Depressão na Obra de Pablo Picasso

“... toda mulher tem dois braços, dois olhos, dois seios, que são sempre assimétricos. O pintor pode e deve ressaltar as diferenças e não as semelhanças”. Pablo Picasso

A obra de Picasso foi profundamente influenciada por seus diversos relacionamentos amorosos. Em janeiro de 1936, o poeta Paul Eluard apresentou-lhe a fotógrafa e artista Dora Maar. Picasso retratou-a como mulher sofisticada, intelectual e dominadora (Retrato de Dora Maar,1937):


Retrato de Dora Maar (1937), Óleo sobre tela, 61 x 81 cm, Museu Picasso (Paris)

Com o passar do tempo, Dora revelou-se temperamental e depressiva, tornando-se a musa da aflição e do sofrimento de Picasso, sendo retratada com grandes distorções (Mulher Chorando,1937):


Mulher Chorando (1937); Óleo sobre tela, 60 x 40 cm; Tate Gallery (Londres)

Em 1944, a frágil Dora Maar sofreu depressão psicótica após separar-se de Picasso. A crise determinou o seu internamento num hospital psiquiátrico, embarcando posteriormente numa análise prolongada nas mãos de um jovem e, na altura, promissor psicanalista, chamado Jacques Lacan.

Dora viveu durante décadas acompanhada apenas por recordações do inesquecível amante. Conta-se que ela foi a única mulher que esteve intelectualmente à altura de Picasso.

REFERÊNCIAS:
1.BEZERRA, A. J. C. ; ARAÚJO, Jordano Pereira . Anatomia na obra de Pablo Picasso. Ética Revista, Brasília, v. 3, n. 2, p. 16-18, 2005.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Regeneração Hepática na Mitologia Grega

Desde a antigüidade, já se conhecia o fenômeno da regeneração hepática através da Mitologia Grega. Prometeu, irmão de Atlas, se desentendeu com Zeus por revelar o segredo do fogo dos deuses do Olimpo. Por conta disso, teve a perna acorrentada no alto de um penhasco e foi condenado a alimentar diariamente uma águia com parte de seu fígado. Entretanto, durante a noite o órgão sofria o processo de regeneração e assim era fonte renovável de alimento ao pássaro.

Prometheus Bounds; Pieter Pauwel Rubens (1577-1640); óleo sobre tela, 243 x 210 cm; Museum of Art, Philadelphia.


Prometeu Acorrentado (1762); Sebastien Nicolas-Sébastien Adam (1705-1778); escultura em mármore (Louvre).

Prometeu, Atlas e a Águia do Cáucaso (530 a.C). Escola Grega. Figura em negro. Museu do Vaticano (Vaticano).

Por conta desse fato mitológico, existe uma técnica cirúrgica de hepatectomia parcial chamada “Técnica de Prometeu”, na qual porções do fígado são retiradas em pequenos fragmentos.

REFERÊNCIAS:
1. Machado, A; Rocha, R. “Hepatectomia parcial: estudo da resposta proliferativa”; Rev. biociênc.,Taubaté, v.8, n.2, p.27-35, jul.-dez.2002.
2. O Livro de Ouro da Mitologia – Thomas Bulfinch
3. BEZERRA, Armando "Admirável mundo médico: a arte na história da medicina" - Brasília, 2002

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Por que a primeira vertebra chama-se atlas? / Atlas Segurando a Abóbada Celeste

A primeira vértebra chama-se atlas em alusão ao deus da mitologia grega Atlas, que, por conta de um desentendimento com Zeus (deus dos deuses), recebeu o castigo de ter que carregar, para o resto da vida, o mundo sobre seus ombros. Como a primeira vértebra cervical suporta o peso da cabeça, é chamada de atlas para lembrar o sacrifício imposto ao deus grego.

Atlas Segurando a Abóbada Celeste ou Atlas de Farnese (150 d.C.) Escola Romana. Museo Nazionale Archeologico (Nápoles).

A escultura acima representa Atlas segurando a abóbada celeste. A obra possui 2,1m de altura e o globo cerca de 65 cm de diâmetro. A estátua foi esculpida por volta de 150 d.C. e ficou conhecida pelo nome do cardeal italiano Alessandro Farnese, que a comprou, na segunda metade do século XVI. Ela é uma reprodução romana de uma original grega.

domingo, 12 de setembro de 2010

Dr. Gachet - O médico de Van Gogh

"Encontrei em Gachet um verdadeiro amigo." Van Gogh

Paul Ferdinand Gachet, médico que tornou-se um dos mais íntimos amigos de Van Gogh, era um clínico geral famoso por tratar "humanamente" os insanos. Apaixonado por arte, também gostava de pintar, admirava e incentivava o trabalho do amigo. Foi o único médico que aceitou com prazer os quadros de Van Gogh como forma de pagamento. Inclinado aos estudos da mente humana, sua tese de graduação em Medicina teve como tema a "melancolia", mas talvez, todos os seus incansáveis esforços para amenizar o sofrimento emocional de seus pacientes, surgiram a partir da própria dor. Em carta a Theo, Van Gogh escreveu:

O Dr. Gachet diz que sou excêntrico, mas quando olho-o vejo que luta contra um problema nervoso que certamente está a sofrer tão seriamente quanto eu. É a sua profissão de médico que o mantém, aparentemente, em equilíbrio. (Auvers-sur-Oise, 20 May 1890)

No “Retrato do Dr. Gachet” Van Gogh o retratou com um rosto perturbado, numa expressão de profundo desespero. Além da tristeza do médico, também foi pintado no quadro uma haste de Digitalis purpúrea (planta a partir da qual a droga que Van Gogh utilizou é extraída):




Cem anos após a morte de Van Gogh, o "Retrato do Dr. Gachet" foi leiloado por RS$ 82,5 milhões. Um recorde até então.

Para a posteridade, o Dr. Gachet nos deixou uma gravura que fez de Vicent no leito de morte, como última homenagem ao amigo. O pintor não está de barba, como nos auto-retratos; foi banhado e cuidadosamente barbeado antes de seu corpo ser enterrado em Auvers-sur-Oise.

Van Gogh no Leito de Morte (1890).Dr. Gachet. Carvão sobre papel . Museu d'Orsay (Paris)



LEIA MAIS:
Vicent van Gogh - Os Dois Pólos do Artista

Os Efeitos da Vacina Antivariólica / James Gillray

O criador da primeira vacina, contra a varíola, foi Edward Jenner. Naquela época, as pessoas tinham pavor de vacina porque corria o boato de que alguns vacinados haviam se transformado por inteiro em gado leiteiro, em outros apareceram chifres e, nos casos menos dramáticos, um rabo havia crescido.

O famoso britânico James Gillray ilustrou os “efeitos adversos da vacina” numa interessante gravura satírica:


A varíola bovina, ou Os efeitos maravilhosos da nova vacina (1802) James Gillray. Gravura. Biblioteca Nacional de Medicina (Bethesda)


Pormenor evidenciando humanos transformando-se em gados.

LEIA MAIS:

A Descoberta da Vacina


REFERÊNCIAS:
BEZERRA, Armando "Admirável mundo médico: a arte na história da medicina" - Brasília, 2002

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O Suicídio na Literatura

O suicídio é um fenômeno complexo que tem atraído a atenção de escritores, teólogos, médicos, sociólogos e artistas através dos séculos; Não apenas um problema filosófico, o tema ocupa hoje um importante lugar nas questões de saúde pública. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), quase 1 milhão de pessoas morrem por suicídio por ano, a freqüência ocupa a terceira posição entre as causas mais comuns de falecimento da população da faixa etária de 15 a 35 anos, sendo uma das 10 maiores causas de morte em todos os países.

10 de Setembro é o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio, uma iniciativa da Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio juntamente com a OMS. O dia foi criado com o objetivo de promover o compromisso mundial com medidas para prevenir a principal causa evitável de mortes prematuras.

O escritor alemão Hermann Hesse, descreveu sua visão do “homem suicida” na obra clássica O Lobo da Estepe (1927). O livro conta a história de vida do complexo Harry Haller, personagem que padece de esquizofrenia. À época em que o livro foi escrito, a preocupação com a prevenção do suicídio era escassa na sociedade, em parte porque a compreensão da saúde mental estava apenas começando a engatinhar. Ao fim do texto, Hesse deixa claro o quão necessário é alertar a todos sobre a importância de estudar o homem, não apenas “o mecanismo dos fenômenos vitais”, mas, principalmente, seu estado mental:

É próprio do suicida sentir seu eu, certo ou errado, como um germe da Natureza, particularmente perigoso, problemático e daninho, que se encontrava sempre extraordinariamente exposto ao perigo, como se estivesse sobre o pico agudíssimo de um penedo onde um pequeno toque exterior ou a mais leve vacilação interna seriam suficientes para arrojá-lo no abismo. Esta classe de homens se caracteriza na trajetória de seu destino porque para eles o suicídio é a forma de morte mais verossímil, pelo menos segundo sua própria opinião. A existência dessa opinião, que quase sempre é perceptível já na primeira mocidade e acompanha esses homens durante toda sua vida, não representa, talvez, uma particular e débil força vital, mas, ao contrário, encontram-se entre os suicidas naturezas extraordinariamente tenazes, ambiciosas e até ousadas. Mas assim como há naturezas que caem em febre diante da mais ligeira indisposição, assim propendem essas naturezas a que chamamos "suicidas" e que sempre são muito delicadas e sensíveis à menor comoção, a entregar-se intensamente à idéia do suicídio.

Se tivéssemos uma ciência que possuísse coragem e autoridade suficientes para ocupar-se do homem em vez de fazê-lo simplesmente no mecanismo dos fenômenos vitais, se tivéssemos uma verdadeira Antropologia, uma verdadeira Psicologia, tais fatos seriam conhecidos de todos.

O filósofo francês Albert Camus, em seu célebre ensaio O Mito de Sísifo (1942) aborda a problemática do suicídio como saída que o ser humano inventa para a situação absurda que se encontra. Preocupado com o tema, Camus escreveu:

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder a questão fundamental da filosofia.


A criação do Dia Mundial de Prevenção do Suicídio representa um enorme avanço na área de saúde mental.


REFERÊNCIAS:
1.Gunnel D, Frankel S. Prevention of suicide: aspirations and evidences. British
Medical Journal, 1999, 308: 1227-1233.
2.Prevenção do suicídio: um manual para médicos clínicos gerais,OMS; Genebra, 2000.
3.HESSE, Hermann. “O Lobo da Estepe”, Rio de Janeiro: Record, 1998.
4.CAMUS, Albert. O mito de sísifo: ensaio sobre o absurdo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989

A Descoberta da Vacina / Pintura de Ernest Board

"Por que só pensar? Por que não experimentar?" Edward Jenner

Edward Jenner (1749 – 1823) foi uma das figuras mais admiráveis da história da medicina. Certa vez, uma jovem camponesa foi ao seu consultório e os dois começaram a discutir sobre a varíola. Ela disse “não corro o risco de contrair a varíola humana, pois já tive a varíola das vacas.” A frase impressionou Jenner, que pôde verificar sua veracidade ao observar as famílias dos fazendeiros. Em 14 de maio de 1796, Jenner, convicto que havia descoberto a vacina, extraiu o conteúdo de uma pústula da mão de Sarah Nelmes, uma jovem leiteira afetada pela varíola das vacas, e com o mesmo estilete contaminado escarificou o braço de James Phipps, um garoto de oito anos de idade.

Não houve efeitos colaterais e a experiência foi um sucesso, pois o menino não contraiu varíola. Estava descoberta a vacina.

No quadro abaixo, pintado por Ernest Board em 1915, aparece Edward Jenner vacinando James Phipps com material colhido da mão de Sarah:

Edward Jenner Vacinando James Phipps (1915); Ernest Board.

Em homenagem à “vaca”, surgiu o termo “vacina”.

LEIA MAIS:

Os Efeitos da Vacina Antivariólica / James Gillray


REFERÊNCIAS:
MARGOTTA, Roberto "História Ilustrada da Medicina" Ed. Manole - São Paulo, 1998.
BEZERRA, Armando "Admirável mundo médico: a arte na história da medicina" - Brasília, 2002.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Exoftalmia na Arte / Pere Borrell del Caso

Um exemplo de exoftalmia pode ser visto em um charmoso óleo sobre tela do pintor espanhol Pere Borrell del Caso (1835 - 1910):


Fugindo da Crítica (1874), óleo sobre tela, Pere Borrell del Caso.

A pintura mostra um menino fugindo das críticas através do próprio quadro. A exoftalmia, juntamente com a elevação excessiva da pálpebra superior, é um sinal que pode indicar hipertireoidismo.

REFERÊNCIAS:
Roberto Cano de la Cuerda, Susana Collado-Vázquez ;“Deficiencia, discapacidad, neurología y arte”; Rev Neurol 2010; 51 (2): 108-116

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A origem da expressão "tendão de Aquiles"

O tendão é assim chamado em honra de Aquiles, famoso personagem da Ilíada - poema épico grego - de Homero.

Aquiles, quando criança, foi batizado em um lago sagrado chamado Stix. Sua mãe o segurou pelos tornozelos e ele, de cabeça para baixo, foi imerso no lago. Ao retirá-lo da água, todo o seu corpo estava bento, exceto os tornozelos, que haviam permanecido enxutos. Aquiles desconhecia o fato de que seus tornozelos não estavam bentos e, portanto, eram vulneráveis. Durante um combate na guerra de tróia, uma flecha adversária o atingiu no tendão calcâneo (tendão de fixação distal dos músculos gastrocnêmio e sóleo no osso calcâneo), pondo-o fora de combate.

Essa pintura em vaso grego representa uma cena da Ilíada de Homero. Nela, vê-se o guerreiro grego Aquiles fazendo um curativo no braço de seu amigo Patroclo:


Aquiles tratando Patroclo. Vaso grego com figura em vermelho (500 a.C). Staatliche Museum (Berlim)

Em 1693, um anatomista francês chamado Phillipe Verheyen foi acometido de gangrena diabética na perna direita. Antes de se submeter à cirurgia de amputação do membro inferior doente, Verreyen pediu ao seu amigo ortopedista que, após a cirurgia, guardasse o membro amputado porque desejava, passado o período de convalescença, dissecar seu tendão calcâneo. Verreyen lembrou-se então do episódio ocorrido com Aquiles e passou, a partir daquele momento, nas suas aulas em público, a usar o nome tendão de Aquiles.

Aquiles Morrendo; estátua localizada nos jardins do Achilleion, em Corfu.

Atualmente com a abolição do uso dos termos eponímicos em Anatomia, o tendão de Aquiles voltou a ser chamado de tendão calcâneo.

REFERÊNCIAS:
BEZERRA, Armando "Admirável mundo médico: a arte na história da medicina" - Brasília, 2002
BEZERRA, A.J.C; DIDIO, L.J.A; PIVA JUNIOR,L. Terminos anatomicos en la iliada de Homero; Rev. Chil. Anat., 9(1): 73-77, 1991.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

"A Morte de Ivan Ilitch" de Liev Tolstói

"Ivan Ilitch via que estava morrendo e sentia-se constantemente desesperado. No fundo da alma sabia bem que estava morrendo; mas não só não conseguia habituar-se a essa idéia, como não a compreendia mesmo - era incapaz de compreendê-la." Liev Tolstói

Em A Morte de Ivan Ilitch, considerada por alguns críticos literários a novela mais perfeita já escrita, Liev Tolstói (1828-1910) traça a trajetória de um paciente terminal confrontado com sua doença. O protagonista, Ivan Ilitch, membro de uma corte de apelação provincial, leva uma confortável vida burguesa. A doença – câncer –mudará tudo, transformará sua vida numa jornada de sofrimento e degradação. Com sua genialidade, o escritor russo nos leva a ocupar “o lugar do doente”, fazendo-nos refletir sobre o quanto a desatenção do médico pode ser desfavorável à evolução geral do paciente:

Ivan Illich foi. Tudo se passou como previa e como se passa sempre. Uma longa espera, expressões solenes e doutorais que conhecia muito bem, pois no tribunal era a mesma coisa, auscultação, apalpações, as perguntas habituais, exigindo certas respostas previamente determinadas e evidentemente inúteis, um ar importante que significava: vocês não precisam fazer mais do que obedecer-nos e nós arranjaremos tudo; sabemos muito bem, sem possíveis dúvidas, como se arranjam essas coisas, sempre da mesma forma, qualquer que seja o paciente. Tudo se passava, sem tirar nem pôr, como no tribunal. Do mesmo modo que ele representava uma farsa diante dos acusados, ali o famoso clínico a representava diante dele. O médico dizia: isto e aquilo indicam que o senhor tem isto e aquilo; mas no caso em que o exame não o confirme, seremos levados a supor que seu mal é este ou aquele. E se chegarmos a essa suposição... nesse caso... etc., etc. [...]Ivan Ilitch concluiu do resumo do médico que a coisa ia mal; para o médico, para toda gente mesmo, talvez aquilo não tivesse importância, mas para ele, pessoalmente, a coisa ia muito mal. E essa conclusão abalou de maneira dolorosa Ivan Ilitch, despertando nele um profundo sentimento de piedade de si mesmo e de ódio ao médico, tão indiferente em face de um fato daquela importância. [...] Ivan Ilitch saiu lentamente, retomou com tristeza o seu trenó e mandou tocar para casa. Durante todo o trajeto não cessou de meditar sobre as palavras do médico, esforçando-se por traduzir todos aqueles termos científicos, complicados e obscuros numa linguagem simples, a ver se encontrava nela a resposta à sua pergunta: o meu caso será perigoso, muito perigoso ou não será nada? E pareceu-lhe que as palavras do médico significavam que o seu caso era muito mau. As ruas revestiram-se de uma estranha tristeza aos olhos de Ivan Ilitch: os fiacres estavam tristes, as casas, os passantes, as lojas, tudo estava triste. E a dor que ele sentia, aquela dor surda, obstinada, que não o abandonava um instante, parecia adquirir, graças às frases ambíguas do médico, um significado novo, muito mais sério.

Os médicos, como mostra o texto acima, não se mostram dispostos a ajudá-lo; pelo contrário, o tom de “indiferença” e as palavras utilizadas pelo doutor exacerbam a sensibilidade do doente, fazendo-o se deparar com a morte de uma forma extremamente dolorosa. Seu criado, Guerássim, apieda-se dele; e é com esse homem simples que Ivan Ilitch aprenderá, afinal, o significado da fé e do amor.

A Morte de Ivan Ilitch é um dos clássicos utilizados na disciplina “Humanidades Médicas”, já instituída em diversas universidades do país.

REFERÊNCIAS:
TOLSTÓI, L A morte de Ivan Ilitch. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1998.