Voltaire é o pseudônimo adotado por François-Maric Arouet (1694-1778).
O homem dos quarenta escudos é uma obra que discute diversos assuntos polêmicos do século XVI, constituindo uma crítica sistêmica irônica e incisiva, não poupando médicos, autoridades e nem religiosos.
Confira abaixo o capítulo denominado “Sífilis”, tema palpitante na época.
CAPÍTULO XI: SÍFILIS
O homem dos quarenta escudos morava num pequeno cantão, onde fazia uns cento e cinqüenta anos que não acampavam soldados. Os costumes, naquele desconhecido rincão, eram mais puros do que o ar que o banha. Não se sabia que alhures pudesse o amor ser infeccionado de um veneno destrutivo, que as gerações fossem atacadas no seu germe, e que a natureza, contradizendo-se a si mesma, pudesse tornar a carícia horrível e o prazer medonho; entregavam-se ao amor com a segurança da inocência. Chegaram tropas, e tudo mudou.
Dois tenentes, o esmoler do regimento, um cabo e um recruta proveniente do seminário bastaram para envenenar doze aldeias em menos de três meses. Duas primas do homem dos quarenta escudos viram-se cobertas de pústulas; caíram-lhes os lindos cabelos; a sua voz tornou-se rouca; as pálpebras de seus olhos fixos e apagados tomaram uma cor lívida, e não mais se fecharam para permitir repouso aos membros deslocados, que uma cárie secreta começava a roer como aos do árabe Job, embora Job jamais tivesse tido semelhante doença.
O cirurgião-mor do regimento, homem de grande experiência, foi obrigado a pedir auxilio à Corte, para curar todas as raparigas da região. O ministro da guerra, sempre inclinado a aliviar o belo sexo, enviou uma leva de recrutas, que estragaram com uma das mãos o que endireitaram com a outra.
O homem dos quarenta escudos lia então a história filosófica de Cândido, traduzida do alemão e de autoria do doutor Ralph, que prova evidentemente que tudo está bem, e que era absolutamente impossível, no melhor dos mundos possíveis que a sífilis, a peste, os cálculos, as areias, as escrófulas, a câmara de Valência e a Inquisição não entrassem na composição do universo, desse universo unicamente feito para o homem, rei dos animais, e imagem de Deus, ao qual bem se vê que se assemelha como duas gotas d'água.
Lia, na história verdadeira de Cândido, que o famoso doutor Pangloss perdera no tratamento um olho e uma orelha.
— Ai! e as minhas primas, as minhas pobres primas, ficarão também tortas e desorelhadas?
— Não – disse-lhe o major, confortadoramente. – Os alemães têm mão pesada; mas, quanto a nós, curamos as raparigas prontamente, seguramente e agradavelmente.
E, com efeito, as duas lindas primas livraram-se do mal ficando com .a cabeça inchada como um balão durante seis semanas, perdendo metade dos dentes, botando uma língua de meio palmo, e morrendo do peito ao cabo de seis meses.
Durante a operação, o primo e o cirurgião-mor assim discorreram:
O Homem dos Quarenta Escudos: – Será possível, senhor, que a natureza tenha unido tão espantosos tormentos a um prazer tão necessário, tanta vergonha a tanta glória, e que haja mais riscos em fazer um filho do que em matar um homem? Será ao menos verdade, para consolação nossa, que esse mal vai diminuindo um pouco pelo mundo e cada dia se torna menos perigoso?
O Cirurgião-mor: – Pelo contrário, alastra-se cada vez mais por toda a Europa cristã; está disseminado até a Sibéria; vi morrer disso quinhentas pessoas, inclusive um grande general e um excelente ministro. São poucos os fracos do peito que resistem à doença e ao remédio. As duas irmãs, la petite et la grosse, coligaram-se ainda mais que os monges para destruir o gênero humano.O Homem dos Quarenta Escudos: – Mais uma razão para abolir os monges, a fim de que, recolocados entre os homens, eles reparem um pouco o mal que fazem as duas irmãs. E diga-me uma coisa: os animais. também têm vérole?
O Cirurgião: – Ni la petite, ni la grosse, nem os monges são conhecidos entre eles.
O Homem dos Quarenta Escudos: – Convenhamos então que são mais felizes e mais prudentes do que nós no melhor dos mundos.
O Cirurgião: – Disso eu nunca duvidei; tem menos doenças do que nós; seu instinto é muito mais seguro do que a nossa razão: jamais se atormentam com o passado nem com o futuro.
O Homem dos Quarenta Escudos: – O senhor que já foi cirurgião do embaixador francês na Turquia: há muita sífilis em Constantinopla?
O Cirurgião: – Os franceses trouxeram-no para o bairro de Pera, onde residem. Conheci ali um capuchinho que estava devorado por ela como Pangloss; mas o flagelo não alcançou a cidade propriamente dita, onde os franceses quase nunca dormem. Não há quase mulheres públicas naquela enorme cidade. Cada homem rico tem mulheres, escravas circassianas, sempre guardadas, sempre vigiadas, e cuja beleza não pode ser perigosa. Os turcos chamam à sífilis o mal cristão, o que redobra o profundo desprezo que dedicam à nossa teologia. Mas, em compensação. têm a peste, doença do Egito, de que fazem pouco caso e que nunca se dão ao trabalho de prevenir.
O Homem dos Quarenta Escudos: – Em que tempo julga ter começado esse flagelo na Europa?
O Cirurgião: – Pelo ano de 1494, quando Cristóvão Colombo regressou da sua primeira viagem às nações inocentes que não conheciam nem a avareza nem a guerra. Aquelas nações simples e justas estavam contaminadas desse mal desde tempos imemoriais, como a lepra reinava entre os árabes e os judeus, e a peste entre os egípcios. O primeiro fruto que colheram os espanhóis, dessa conquista do novo mundo, foi a sífilis; expandiu-se mais rapidamente que a prata do México, que só circulou na Europa muito tempo depois. A razão era que, em todas as cidades, havia então belas casas públicas, chamadas bordéis, cujo estabelecimento era autorizado pelos soberanos para preservar a honra das damas. Os espanhóis trouxeram o veneno para essas casas privilegiadas de onde os príncipes e bispos requisitavam as raparigas que lhes eram necessárias. Havia em Constança setecentas e dezoito dessas mulheres, para o serviço do Concílio que tão devotadamente mandou queimar João Huss e Jerônimo de Praga.
Só por isso se pode julgar com que rapidez o mal percorreu todos os países. O primeiro senhor que veio a morrer desse mal foi o ilustríssimo e reverendíssimo bispo e vice-rei da Hungria, em 1499, e que Bartolomeu Montanagua, grande médico de Praga, não pode salvar. Assegura Gualtieri que o arcebispo de Mogúncia, Bertold de Henneberg, attaqué de la grosse vérole, rendit son âme à Dieu en 1504. Sabe-se que disso morreu o nosso rei Francisco I, Henrique III o adquiriu em Veneza, mas o jacobino Jacques Clément preveniu os efeitos do mal.
O parlamento de Paris, sempre zeloso do bem público, foi o primeiro que baixou um édito contra a sífilis, isso em 1497. Proibiu a todos os contaminados que permanecessem em Paris, sous peine de la hart. Mas, como não. era fácil convencer juridicamente os burgueses e burguesas de que estavam em delito, não teve esse édito maior efeito do que aqueles que foram depois baixados contra a emética; e, apesar do parlamento, continuava aumentando o número de culpados. É verdade que, se os tivessem exorcismado em vez de enforcá-los, não mais os haveria hoje sobre a face da terra; mas infelizmente nunca se pensou em tal coisa.
O Homem dos Quarenta Escudos: – É então verdade o que li no Cândido, que, entre nós, quando entram em campo dois exércitos de trinta mil homens cada um, pode-se apostar que há vinte mil contaminados de cada banda?
O Cirurgião: – Nada mais verdadeiro. O mesmo acontece com o pessoal da Sorbona. Que quer que façam jovens bacharéis a quem a natureza fala mais alto e mais firme do que a teologia? Posso-lhe jurar que, guardadas as proporções, meus confrades e eu temos tratado mais jovens sacerdotes do que jovens oficiais.
O Homem dos Quarenta Escudos: – Não haveria algum meio de extirpar esse mal que assola a Europa? Já se tratou de enfraquecer o veneno de uma vêrole; nada se poderá tentar contra a outra?
O Cirurgião: – Só haverá um meio: é que todos os príncipes da Europa se coligassem como nos tempos de Godofredo de Bulhão. Certamente uma cruzada contra a sífilis seria muito mais razoável do que aquelas que outrora tão infelizmente se fizeram contra Saladino, Melecsala e os albigenses. Melhor seria nos combinarmos para expulsar o inimigo comum do gênero humano do que andarmos continuamente a espiar o momento azado para devastar a terra e cobrir os campos de cadáveres, com o fim de arrebatar ao vizinho duas ou três cidades e algumas aldeias. Falo contra os meus próprios interesses, pois a guerra e a sífilis me fazem viver; mas cumpre ser homem antes de ser cirurgião-mor.
Era assim que o homem dos quarenta escudos ia formando, como se diz, o espírito e o coração. Não só herdou das duas primas, que morreram em seis meses, mas ainda lhe coube a sucessão de um parente afastado, que fora sub-arrendatário dos hospitais do exército, e que engordara bastante pondo em dieta os soldados feridos. Esse homem jamais quisera casar-se; possuía um belo serralho. Não reconheceu nenhum de seus parentes, viveu na crapulagem, e morreu de indigestão em Paris. Era, como se vê, um homem muito útil ao Estado.
O nosso novo filósofo viu-se obrigado a ir a Paris receber a herança do parente. Primeiro os rendeiros do domínio lha disputaram. Teve a felicidade de ganhar o processo e a generosidade de dar aos pobres do cantão, que não haviam conseguido o seu quinhão de quarenta escudos de renda, uma parte dos despojos do ricaço. Depois do que, pôs-se a satisfazer a sua grande ambição de formar uma biblioteca.
Lia todas as manhãs, fazia excertos, e à noite consultava os sábios para saber: em que língua falara a serpente à nossa boa mãe; se a alma está localizada no corpo caloso ou na glândula pineal; se S. Pedro permanecera vinte e cinco anos em Roma; que diferença específica existe entre um trono e uma dominação; e por que motivo os negros têm nariz chato. Propôs-me, aliás, jamais governar o Estado e nunca escrever brochuras contra as peças novas. Chamavam-no o senhor André, que era o seu nome de batismo. Aqueles que o conheceram fazem justiça à sua modéstia e às suas qualidades, tanto adquiridas como naturais. Construiu uma casa confortável no seu antigo domínio de quatro jeiras. Seu filho alcançará em breve a idade escolar, mas ele quer mandá-lo para o colégio de Harcourt e não para o de Mazarino, devido ao professor Coger, que faz libelos, e porque um professor de colégio não os deve fazer.
Madame André deu-lhe uma filha bastante bonita, que ele pretende casar com um conselheiro, desde que esse magistrado não tenha a doença que o cirurgião-mor tenciona extirpar da Europa cristã.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Voltaire - O Homem dos Quarenta Escudos
Nenhum comentário:
Postar um comentário