quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O parto de Maria segundo Saramago

O texto abaixo é de autoria do Dr. Geraldo Roger Normando Jr. que, leitor deste blog, teve a consideração de avisar-me que havia um trecho em O evangelho segundo Jesus Cristo, onde o genial escritor português José Saramago descreve o nascimento de Cristo. Propus para o Dr. Roger Normando que sua análise literária fizesse parte do “A Arte da Medicina”. Ele generosamente aceitou publicá-lo aqui. Dotado de uma qualidade admirável, considero uma honra apresentar-lhes tão surpreendente e enriquecedor texto.

Geraldo Roger Normando Jr., Professor do Departamento de Cirurgia da Universidade Federal do Pará

O escritor José Saramago nasceu numa aldeiazinha portuguesa (Azinhaga, Golegã, 1922). Foi laureado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou o Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efetivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa, em razão da sua densa produção. Foi exaustivamente perseguido pela igreja católica até se mudar de Lisboa. Motivo: O evangelho segundo Jesus Cristo.

Viviam José e Maria num lugarejo chamado Nazaré, terra de pouco e de poucos, na região de Galileia, em uma casa igual a quase todas, como um cubo torto feito de tijolos e barro, pobre entre pobres.
O grifo acima é apenas uma biopsia da obra - não a mais famosa, decerto a mais farpante. Saramago descreve todos os passos de Jesus calcado num aspecto humanístico contundente, contornado por uma narrativa visceral, como se percebe, bastante distante dos evangelhos. Alguns críticos outorgam como irônico. No bojo, é um diálogo distante dos clichês clericais, pois escancara a fragilidade e vulnerabilidade de Jesus, a começar pelo nascimento, quando, sequer, cita a data natalina. Certamente a chave para harmonizar este romance com o mundo cristão fizeram Igreja, católicos e Governantes de seu País protestarem de forma voraz. Saramago se viu obrigado a partir do continente e passou a residir nas Ilhas Canárias, onde permaneceu até a sua morte (Lanzarote, 18 de Junho de 2010).

Sobre o conteúdo do romance e relacinando-o ao título do texto, o autor relata o final do período gestacional de Maria com muita resignação, percebida pelas andanças na moleira de um burro, no sentido Nazaré-Jerusalém-Belém, na companhia do carpinteiro José. O trabalho de parto se inicia em Jerusalém, pelos sinais de contração uterina contido silenciosamente no trejeito de Maria lidar com aos espasmos uterinos:

Quando já estavam a porta da cidade, Maria não pode reter um grito de dor, mas este lancinante, como se uma lança tivesse traspassado(...). E amanhã irei a Belém (diz José), ao recenseamento, e direi que estás de parto, vais lá depois se preciso, que não sei como são as leis dos romanos, e Maria respondeu, Já não sinto dores, e assim era, aquela lançada que a fizera gritar tornara-se um picar de espinho.
Com as dores de Maria abrandadas, José, agora aliviado, consegue chegar a Belém e começa a procurar um aconchego onde Maria pudesse dar a luz:

Apoquentava a perspectiva de ter de procurar um lugar no labirinto das ruas de Jerusalém em circunstancia de tanta aflição a mulher em doloroso trabalho de parto, e ele, como qualquer outro homem, apavorado a responsabilidade, mas sem o querer confessar. Chegando a Belém, pensava, que em tamanho e importância não diferirá muito de Nazaré, as coisas serão certamente mais fáceis, sabido como e que nas povoações pequenas, onde todos se conhecem, a solidariedade costuma a ser uma palavra menos vã. Se Maria já não se queixa, ou é que lhe passaram as dores, ou é que consegue aguentá-las, num caso como no outro, tanto faz, ala para Belém.

No rumo de Belém, eles vão acompanhados de uma parteira (escrava), que muito se preocupa com riscos de contaminação puerperal, num tempo ulterior aos miasmas de Semelweiss (1846) e às descobertas de Lister (1860) - em plena contra-mão da evolução histórica da infectologia. No final do parágrafo, Saramago deixa escorrer, aos mais afeitos a sua biografia, a própria origem campestre, e engendra no pensamento de quem o lê, a sensação de que o mesmo acontecera naquela aldeiazinha de Portugal.

A escrava Zelomi, que esse é o seu nome, vai à frente guiando os passos, e leva um pote com brasas para o lume, uma caiçola de barro para aquecer a água, sal para esfregar o recém-nascido, não vá apanhar alguma infecção. E como de panos vem Maria servida e a faca com que se há-de cortar o cordão umbilical trá-la José no seu alforge, se Zelomi não preferir cortá-lo com os dentes, já a criança pode nascer, afinal um estábulo serve tão bem como uma casa, e só quem nunca teve a felicidade de dormir numa manjedoura ignora que nada há no mundo que se pareça mais que um berço.

Chama-se atenção que a posição e as dores do parto de Maria eram iguais às de todas as outras mulheres:

Entrou a escrava, disse uma palavra animadora, Coragem, depois pôs-se de joelhos entre as pernas abertas de Maria, que assim têm de estar abertas as pernas das mulheres para o que entra e para o que sai, Zelomi [a escrava] já perdera o conto às crianças que vira nascer, e o padecimento desta pobre mulher é igual ao de todas as outras mulheres, Como foi determinado pelo senhor Deus quando Eva errou por desobidiência, Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos nascerão entre dores, e hoje, passados já tantos séculos, com tanta dor acumulada, Deus ainda não se dá por satisfeito e a agonia.
Já na cidade de Belém, eis o trabalho de parto, enfim, se concretizando:

Viemos de Nazaré de Galileia ao recenseamento, na hora que chegamos cresceram-lhe as dores, e agora está nascendo.

E dá-se, então o nascimento de Jesus Cristo:

O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo. Envolto em panos, repousa na manjedoura, não longe do burro, porém não há perigo de ser mordido, que ao animal prenderam-no curto. Zelomi saiu fora a enterrar as secundinas, ao tempo que José se vem aproximando. Ela espera que ele entre e deixa-se ficar, respirando a brisa fresca do anoitecer.
Posteriormente três pastores chegam ao estábulo. Maria, encostada e ainda adormecida, desperta e ouve cada um deles, ao lado da manjedoura, onde descansa o rebento (Caravaggio, 1609):

O primeiro pastor avançou e disse, Com estas minhas mãos mungi as minhas ovelhas e recolhi o leite delas. Maria, abrindo os olhos, sorriu. Adiantou-se o segundo pastor e disse, por sua vez, Com estas minhas mãos trabalhei o leite e fabriquei o queijo. Maria acenou com a cabeça e voltou a sorrir. Então, o terceiro pastor chegou-se para diante, num momento pareceu que enchia a cova com a sua grande estatura, e disse, mas não olhava nem o pai nem a mãe da criança nascida, Com estas minhas mãos amassei este pão que te trago, com o fogo que só dentro da terra há o cozi. E Maria soube quem ele era.



Nota-se a simplicidade franciscana que cobre todo ambiente. No celeiro feito de madeira, um burro e um boi (delineado atrás do burro) compõem a imagem do fundo. Há resíduos de palha pelo chão, enquanto em uma cesta da Santa Família se vê um pedaço de pão, as ferramentas de José e algumas peças de roupa.

José (vestindo vermelho, como Maria) introduz os pastores (à direita). Maria mantêm o menino em seu aconchego e, afora as duas auréolas, apenas o jovem semi desnudo, ajoelhado e com as mãos cruzadas, dão ao momento um significado especial, no meio da pobreza (Fonte:Web Gallery of art).

Imagem: A adoração dos pastores - Caravaggio - 1609


Referências:
1.Lopes, JM. Saramago - Biografia. Leya. 2010.
2.Saramago J. O Evangelho segundo Jesus Cristo. Companhia das letras, 1991

6 comentários:

  1. Lindo... A simplicidade nunca soou tão emocionante e sublime!

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  2. Pois é, e a igreja execrou Saramago por causa dessa obra. Por vezes penso que, aprendi mais com esta leitura e interpretação do que a vida inteira que levei frequentando missas.
    Geraldo Roger Normando

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  3. Se tivesse prestado mais atenção à Missa teria aprendido mais... Descrever um parto qualquer um e qualquer médico descreve, inclusive o cheiro, que Saramago nunca cheirou, de suor, sangue, líquido amniótico, urina e até fezes... Mas contemplar o nascimento de Deus encarnado, que tem uma familia, só com fé, humildade e oração. Como disse Saint Exupéry (muito melhor que Saramago): o essencial é invisível aos olhos do corpo.

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  4. A simplicidade e a realidade não são inibidores da fé, pois esta é construída também, e principalmente, com esses componentes.
    Muito bom o texto do Saramargo, que é um grande nome da cultura ibérica, e também, muito proveitosa as considerações do professor da instituição que faço parte, ainda como acadêmico, a UFPA. Mais uma ótima publicação de um excelente blog!

    Rafael Sizo

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