sábado, 1 de outubro de 2011

A romântica tuberculose de Fantine / "Os Miseráveis", de Victor Hugo

Em meados do século XVIII, um em cada quatro indivíduos era diagnosticado com tuberculose. A epidemia atingiu seu apogeu no século XIX, época em que subsistia a visão de que a tuberculose era a doença romântica do século. A moléstia, desconhecida e sem tratamento, “consumia pelo peito”, tirando a vida de homens que estavam no auge da entusiástica juventude.

Por acometer famosos músicos e poetas, acreditava-se que a doença atingia somente seres sensíveis, frágeis e “movidos pela paixão”.

Para os românticos, a tuberculose trazia certa dose de beleza e charme: a vítima tornava-se pálida, mais magra, os olhos encovados e brilhantes exalavam paixão, e os gestos graciosos e frágeis refletiam a fraqueza e sensibilidade do ser humano.

Neste cenário inspirativo, nasceram inúmeras personagens literárias portadoras da doença; uma delas, Fantine, faz parte de uma importante obra francesa da época. Os Miseráveis é um romance social publicado em 1862, de autoria do escritor francês Victor Hugo, que narra o destino lastimável de cinco principais personagens: Jean Valjean, Fantine, Cosette, Marius e Javert. A história se passa na França do século dezenove, no período delimitado pela Batalha de Waterloo (1815) e os motins de junho de 1962.

A trágica saga de Fantine compõe o primeiro livro do romance. Nascida em Montreuil-sur-Mer, a bela jovem apaixona-se por Félix Tholomyes, estudante parisiense que a abandona após engravidá-la. Fantine fica desamparada, com sua filha Cosette, em Paris. Sem dinheiro, vê-se obrigada a deixar a criança sob os cuidados dos Thenardiers, donos de uma estalagem em Montfermeil, e volta pra sua cidade natal a fim de conseguir trabalho. Fantine é empregada numa fábrica e envia mensalmente seu salário para as despesas da menina. Os Thernardiers passam a enviar com freqüência cartas fraudulentas objetivando extorquir mais dinheiro de Fantine.

Descoberta mãe solteira por uma funcionária da fábrica, Fantine é demitida. Para conseguir manter as exigências financeiras da família que cuida da filha, vende seus cabelos a um cabeleireiro e os dentes a um dentista. Mais tarde, torna-se prostituta para pagar um tratamento medicamentoso para Cosette, supostamente doente. A menina, bastante saudável na realidade, é explorada como escrava na pousada em que vive.

Os sintomas da tuberculose surgem logo após a demissão de Fantine.
Saía-lhe a respiração do peito com esse sussurrar trágico privativo das moléstias daquela espécie, que parte o coração à pobre mãe que tem um filho condenado àquele gênero de morte, quando de noite o vela à cabeceira do leito. Todavia, aquela respiração penosa mal perturbava a expressão de serenidade inefável que se divisava em seu rosto, transfigurando-a no seu dormir. Fantine tinha as faces vermelhas, e o que era palidez convertera-se em brancura. As loiras e compridas pestanas, única beleza que lhe ficara da sua virgindade e juventude, palpitavam-lhe, ainda que fechadas e abaixadas, e o corpo tremia-lhe, agitado por não sei que sacudir de asas prestes a entreabrirem-se e a arrebatá-la, cujos estremecimentos se sentiam, mas não se viam. Ao vê-la daquele modo, ninguém suporia que estava ali uma doente sem esperança de salvação. Mais parecia uma pessoa que está para voar do que pra morrer.
No ínicio, a doença lhe provoca apenas uma tosse seca, mas mais tarde progride, manifestando-se com febre, sudorese, hemoptise e cianose, culminando na morte da personagem.

Cabe aqui comentar que a descrição detalhada para diagnóstico clínico da tuberculose foi feita pela primeira vez apenas em 1819, pelo grande clínico francês René Laennec (inventor do estetoscópio), que mais tarde morreria pela própria doença. Por suas contribuições pneumológicas, Laennec, – um dos nomes mais importantes da história da medicina – , atraiu a admiração de Victor Hugo, que estampou seu nome de forma elogiosa nas páginas de Os Miseráveis:
Acabamos de dizer que Fantine não se restabelecia, ao contrário, parecia agravar-se o seu estado de semana a semana. [...] Começavam então a seguir as belíssimas indicações de Laennec no estudo e tratamento das doenças do peito.
Em 1882 o cientista alemão Robert Koch isolou o bacilo que causa a doença, o Mycobacterium tuberculosis, mas somente em 1943 Selman A. Waksman descobriria a estreptomicina, o primeiro antibiótico usado contra a tuberculose.

A luta de Fantine para cuidar da filha é diretamente proporcional à gravidade de sua doença. Victor Hugo associa simbolicamente a tuberculose à maternidade.
O excesso do trabalho veio a fatigar Fantine, de modo que a tossezinha seca que tinha aumentou.
O esforço físico necessário para manter Cosette é paralelo a fraqueza decorrente da doença, de modo que por ambos Fantine “perde o fôlego”, caindo em completa desgraça.
Quanto mais fundo ela descia, quanto mais sombrio se tornava tudo em roda dela, mais aquele doce anjinho lhe irradiava de luz o fundo da alma. A tosse, porém, não a largava, e as costas às vezes ficavam banhadas em suor.
Hugo enfatiza sutilmente o valor da maternidade, embutindo a idéia de que Fantine abre mão de sua própria vida para salvar a da filha.





REFERÊNCIAS:
HUGO, Victor, Os miseráveis (Volume I: Fantine).Lisboa: Editorial Minerva, 1962.

Um comentário:

  1. Muy bien traído este texto sobre la gran "plaga blanca" del siglo XIX, Renata. ¡Lástima que aún no hayamos consuguido vencer a la tuberculosis! Espero que se haga realidad la idea de haberla erradicado antes del 2050 (aunque no creo que esté para verlo).
    Un beso.

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