Quanto a considerar-me totalmente são, não devemos fazê-lo. As pessoas da região que são doentes como eu, falam a verdade: podemos viver muito ou pouco, mas sempre haverá momentos em que perderemos a cabeça. Peço-lhe portanto que não diga que eu não tenho nada. Se aprecias meu trabalho, tudo bem, mas continuo sempre louco. Vicent van Gogh a Theo, Arles (1888)
Vicent van Gogh nasceu em 30 de março de 1853, em Zundert, na aldeia holandesa de Brabant, sendo o mais velho entre os cinco filhos de um pastor protestante.
Vicent foi um menino sonhador, tímido, sensível e ligado a família. O laço afetivo que o unia ao irmão mais jovem,
Theodore, a quem chamava carinhosamente de Theo, duraria enquanto vivesse. Entretanto, a bela história de amor entre dois irmãos não teve um final feliz. Em 27 de julho de 1890, Vincent caminhou até o campo de trigo onde costumava pintar, no entanto, dessa vez, não levou pincéis nem tintas, mas uma pistola. Num momento de desespero, atirou contra o próprio peito. Ferido, conseguiu arrastar-se até o café Ravoux, onde vivia, em Auvers (lugarejo próximo a Paris). Alguém trouxe o seu médico que, após examiná-lo, concluiu que a bala não podia ser extraída. Na manhã seguinte, quando Theo foi informado do que aconteceu, correu pra junto do irmão, e encontrou-o cachimbando placidamente na cama. Os dois passaram o dia juntos, falando holandês e reencontrando a harmonia dos velhos tempos. Ao fim do dia, Theo recusou-se a partir e passou a noite ao lado do irmão, na mesma cama, ouvindo-o murmurar “A tristeza não tem fim”. Vicent morreu por volta de 1h30 da madrugada do dia 29 julho de 1890, aos 37 anos de idade.
Que motivo o faria tirar a própria vida? Que doença atormentava um dos mais conhecidos pintores pós-impressionistas?
A DOENÇA DE VAN GOGH
Quanto a mim, estou me sentindo melhor. Minha digestão melhorou tremendamente desde o mês passado. Alguns dias ainda sofro involuntários ataques de excitação nervosa ou de tristeza total, mas isso vai passar, e quando passar, fico mais tranquilo. Vou esperar meus nervos ficarem estáveis... Vicent a Theo (1888)
Dono de uma personalidade difícil e temperamental, ao longo de sua vida, Van Gogh deu provas de instabilidade mental. Em 1888, deixando o irmão em Paris, fixou-se em Arles, onde produziu cerca de duzentos quadros e cem desenhos. No período em que iniciou sua série de Girassóis, o pintor
Gauguin veio juntar-se a ele. Por ironia, foi a chegada de seu amigo mais caro, e a quem considerava um mestre, que provocou sua primeira crise nervosa.
Os dois artistas viviam juntos. No intenso contato cotidiano, Van Gogh começou a perceber como eram diferentes os princípios e modos de cada um deles ver a pintura. Quando Gauguin pintou um retrato dele, Van Gogh recusou-se a aceitá-lo. Não queria reconhecer-se num quadro em que Gauguin o representava como um homem pintando girassóis com certo ar de loucura. Numa violenta discussão, desestabilizado, Van Gogh se deixa atormentar por crises de humor, e, no auge do desespero, tenta ferir Gauguin com uma navalha. À noite, arrependido, com a mesma navalha Van Gogh decepou a própria orelha.
Ele documentou o evento em seu célebre
Auto-Retrato com Orelha Enfaixada:
Orelha Enfaixada e Cachimbo (1889).Vincent van Gogh (1853-1890).Óleo sobre tela, 51 x 54 cm.Coleção Niarchos (Chicago)
No hospital Saint-Paul, aonde foi levado nesse episódio, ele foi atendido pelo
Dr. Rey, que lhe suturou a orelha. Depois da convalescença, Vicent pintou um retrato do médico:
Retrato do Dr. Félix Rey (1889).Vincent van Gogh (1853-1890).Óleo sobre tela, 64 x 53 cm. Museu Pushkin (Moscou)
Van Gogh registrou sua passagem pelo hospital pintando também o pátio interno e a enfermaria, onde os pacientes aparecem desesperançosos e cansados do fardo que a doença os proporciona:
Enfemaria do Hospital de Arles (1889).Vincent van Goght (1853-1890).Óleo sobre tela, 74 x 92 cm.Coleção Oska Renhart (Winterthur)
O Dr. Félix Rey diagnosticou epilepsia psico-motora agravada pelo uso de absinto, e após prescrever brometo de potássio e suspensão de alcool, aconselhou Van Gogh a internar-se no hospital
Saint Remy de Provence. Inicialmente o pintor não aceitou a idéia com prazer, porém, dias depois, percebendo que os moradores de Arles estavam amedrontados com seu jeito introspectivo e com suas fases de “excitação nervosa” e “tristeza total”, ele pediu a Theo que o levasse até Saint-Remy, asilo mental onde permaneceu por pouco mais de um ano. No seu registro de admissão, o
Dr. Peyron escreveu:
Como diretor do asilo de Saint-Rémy, certifico e assino que van Gogh (Vincent), 36 anos de idade, nascido na Holanda e domiciliado atualmente em Arles, tendo sido tratado no hospital daquela cidade, apresenta mania aguda e alucinações visuais e auditivas que o levaram à automutilação, cortando a orelha. Atualmente parece recuperado, mas ele refere não apresentar coragem e força para a vida independente e, voluntariamente, solicita a admissão nesta instituição. Como resultado da exposição acima, acredito que o Sr. van Gogh apresenta crises epilépticas infreqüentes sendo aconselhável que permaneça em observação prolongada neste estabelecimento (Dr. Peyron, 9 de maio de 1889)
Ainda no hospício, van Gogh fica sabendo que em Auvers-sur-Oise reside um conceituado médico chamado
Paul-Ferdinand Gachet, e solicita alta da clínica de Saint-Rémy. Com o consentimento de Theo, segue para Auvers-sur-Oise com o objetivo de se tratar com o Dr. Gachet, cujo diagnóstico proposto foi de intoxicação por terebintina. Gachet prescreve trabalho para Vicent, o médico via na pintura a melhor terapia para ele. Segundo críticos, seus melhores trabalhos são produzidos nessa época. A amizade com o doutor Gachet anima Vincent, que escreve a Theo afirmando que agora está feliz. Mas, pouco tempo depois entra em crise e acusa o médico de tentar matá-lo.
Centenas de médicos e psiquiatras tentaram definir as condições médicas e emocionais de Van Gogh ao longo dos anos, porém, especialistas estão longe de chegar a um acordo. Inúmeros transtornos foram diagnosticados postumamente nesta artista – epilepsia do lobo temporal, esquizofrenia, doença de Ménière - nenhum desses isentos de contradições. Entretanto, a maioria dos médicos concordam num ponto: as fases eufóricas e depressivas do artista são conseqüências do transtorno afetivo bipolar, especificamente, na forma mais grave, transtorno bipolar com sintomas psicóticos. A última frase proferida por ele "a tristeza não tem fim" carateriza bem o que provavelmente o impulsionou ao suicídio, a fase depressiva do transtorno bipolar.
A FAMÍLIA DE VAN GOGH
Havia uma frase em sua carta que me surpreendeu: 'Por vezes desejo estar longe de tudo e de todos, pois sou a causa dos males da minha família. Em mim só há miséria e sirvo apenas para levar tristeza para toda a gente.' Estas palavras me surpreenderam porque esse mesmo sentimento, da mesma forma, nem mais nem menos, também existe na minha consciência. (Vicent a Theo; Amsterdam, 30 May 1877)
Além de Van Gogh, três de seus irmãos apresentaram doença mental. O texto acima é um testemunho do que os historiadores afirmam: Théo sofreu depressão e ansiedade, anos após o forte abalo que a morte de Van Gogh provocou sobre ele, levou-o a falecer por "demência paralítica”. Sua irmã
Wilhelmina, por ser esquizofrênica, passou a maior parte de sua vida internada num hospício - onde morreu. De forma trágica, seu outro irmão,
Cornelius, cometeu suicídio aos 33 anos de idade.
Essas considerações reforçam a idéia de que havia um componente familiar genético na provável doença de van Gogh – o transtorno afetivo bipolar.
O MUNDO EM AMARELO
A cor expressa algo em si simplesmente porque existe, e deve-se aproveitar isso, pois o que é belo é também verdadeiro. Van Gogh
O uso do amarelo caracteriza muitas pinturas do holandês pós-impressionista e traduz o fascínio de Van Gogh por este pigmento vibrante. Ele simplesmente gosta da cor, ou sua preferência foi influenciada por alguma condição médica? Várias teorias surgiram para explicar como a qualidade de vida de Van Gogh pôde influenciar seu trabalho. A primeira delas, relativa à ingestão de absinto pelo artista, dizia que o consumo excessivo deste licor por van Gogh o induziu a ver todos os objetos com uma tonalidade amarela. No entanto, investigações conduzidas em 1991, mostraram que uma pessoa deve beber 182 litros de absinto para produzir este efeito visual, por isso podemos desconsiderar essa teoria. Uma segunda e mais provável explicação envolve o uso de digitálicos (droga derivada da
Digitalis purpúrea). Seu médico, Dr. Gachet, utilizava o medicamento para tratar a possível epilepsia do artista (prática comum naquela época). O uso excessivo desta droga pode causar xantopsia em pacientes submetidos a tratamento com altas e repetidas doses, estes se queixam de ver “manchas amarelas em tudo o que olham”. Se observarmos os quadros da série "Os Girassóis", veremos que a quantidade de girassóis vai aumentando e que o fundo fica mais amarelo à medida que o tempo passa, o que faz com que os estudiosos acreditem que o aumento do consumo de absinto e/ou o nível da intoxicação por digitálicos, foram os responsáveis pelo excesso do uso da cor no final da famosa série.
A TRISTEZA REPRESENTADA NA ARTE
Não preciso sair da rotina para exprimir tristeza e o extremo da solidão. Vicent a Theo (Arles, 1890)
Em janeiro de 1882, Vicent conheceu
Christine Sien, prostituta que tinha um bebê e estava grávida de outro. A vida desta mulher pareceu penosa a Van Gogh, que acolheu-a como companheira e modelo. Devido a convivência diária, Van Gogh apaixonou-se por ela, mas apesar dos esforços para manter um relacionamento, a ligação não durou. Depois do parto, Sien voltou a beber excessivamente e ele não teve mais como ajudá-la. Quando Vicent decidiu mudar-se para o campo, Christine não o acompanhou. No mais famoso retrato que pintou dela,
Tristeza, o rosto não aparece, mas o corpo nu, revela o drama de uma vida:
Tristeza, 11 de novembro de 1882.
Internado no hospital de Saint-Remy, Vicent pintou “Velho Homem em Tristeza” onde representou um dos seus infelizes companheiros:
Óleo – Velho homem em tristeza (no limiar da eternidade); Saint-Rémy; abril, 1890)
O RECONHECIMENTO
Enquanto vivo, Van Gogh vendeu apenas uma única tela “ A Vinha Encarnada” por cerca de 400 francos. Apesar da tristeza que sentia por causa do fracasso profissional, ele nunca abandonou a crença de que sua arte - onde depositou seus profundos sentimentos - chegaria às gerações futuras. Em carta escrita ao irmão, pouco antes de morrer, Van Gogh escrevera:
Diga-me, o que posso fazer se meus quadros não se vendem? [...] mas sabe no que muitas vezes penso? No que já lhe disse há algum tempo atrás... que mesmo que eu não tenha sucesso, ainda acredito que Deus fará com que aquilo no que tenho trabalhado seja levado adiante. Futuramente, talvez, o que fiz valerá mais do que o que pagamos pelas tintas que uso. Van Gogh a Theo, Arles (1890)
No texto acima, vê-se claramente os sentimentos que dominavam Van Gogh: desespero e esperança, a despeito do diagnóstico de sua doença, eram esses os dois pólos do artista. Quanto a sua vasta obra, Vicent não profetizou em vão: Exatamente cem anos após sua morte, o seu “Retrato do Dr. Gachet” foi leiloado por US$ 82,5 milhões, um recorde até então. Hoje, as telas do artista se enquadram entre as mais caras do mundo.
REFERÊNCIAS:
1.BLUMER, D; Van Gogh: geniality and disease J Bras Patol Med Lab • Volume 46 • Número 1 • fevereiro 2010 ISSN 1676-2444
2.WOLF, p; Creativity and chronic disease Vincent van Gogh; West J Med. 2001 November; 175(5): 348.
3.VAN GOGH, V. "Cartas a Theo" Paidós Estética. Barcelona.
4.BEZERRA, A.J.C.; As belas artes da medicina. Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal, Brasília, 2003.
5.BLUMER, D (2002): The Illness of Van Gogh. Am. J. Psychiatry; 159: 519-526.
6.JAMISOM, KR (1993): Touched with fire. Manic-Depressive Illness and the Artistic Temperament. New York.
7.JASPERS, K (2001): Genio artístico y locura. Strindberg y Van Gogh. El Acantilado. Barcelona.