segunda-feira, 29 de novembro de 2010
"O Nascimento da Clínica" - Michel Foucault
Trata-se, no entanto, de um destes períodos que delineiam um inapagável limiar cronológico: o momento em que o mal, o contra- natural, a morte, todo o fundo negro da doença em suma, vem à luz.[...] O que era fundamentalmente invisível subitamente se oferece ao brilho do olhar, num movimento de revelação tão simples, tão imediato que parece ser a conseqüência natural de uma experiência mais altamente desenvolvida. É como se, pela primeira vez em milhares de anos, os médicos, livres por fim de teorias e quimeras, concordassem em se aproximar do objeto de sua experiência com a pureza de um olhar sem preconceitos. (O Nascimento da Clínica - Michael Foucault)
A obra trata do domínio da medicina e do modo como se estruturou em alguns anos o conhecimento singular do indivíduo doente. Foucault escreveu “um livro sobre o espaço, sobre a linguagem, sobre a morte, sobre o ato de ver, sobre o olhar”. O Nascimento da Clínica analisa um período crucial da história da medicina: o fim do século XVIII e o início do XIX. O período histórico mencionado é caracterizado por grandes mudanças, em particular a Revolução Francesa. Ocorreu então uma reorganização da maneira de olhar o doente e, em decorrência do discurso médico: “uma nova aliança foi forjada entre palavras e coisas, permitindo ver e dizer”.
Até então, os médicos perguntavam ao doente o que estava errado com ele; agora, passam a perguntar onde dói. O diagnóstico é feito com base em um sistema classificatório de doenças; como a botânica, a medicina agora vai distribuir as entidades nosológicas em grupos. A doença tem sua sede em um órgão, em tem seu lugar em uma classe. A intervenção médica passa a ter normas. Antes, quando o doente recuperava seu vigor, sua disposição, estava curado. Agora, padrões de normalidade, numericamente expressos, definirão o objetivo do tratamento.
O hospital que, antes do século XVIII era basicamente uma instituição de caridade a cargo de religiosos, agora torna-se um instrumento de medicalização coletiva e leiga. Médicos famosos, que antes não apareciam nos hospitais, agora montam ali seus serviços. Começam a surgir os sistemas de intervenção médica, com registro de dados e sistemas estatísticos.
A medicina atua nas necessidades mais concretas do ser humano. Quando a saúde substitui a salvação da alma, conclui Foucault, o poder dos doutores cresce exponencialmente.
REFERÊNCIAS:
1.Wikipédia - Michal Foucault 2.FOUCAULT, Michel (1963). O nascimento da clínica. 2. ed. Rio de Janeiro.
3.SCLIAR, Moacyr, "A Paixão Transformada", Companhia das letras, São Paulo, 1996
domingo, 21 de novembro de 2010
A Conversão de São Paulo do Ponto de Vista Médico
6. Ora, aconteceu que, indo eu já de caminho, e chegando perto de Damasco, quase ao meio-dia, de repente me rodeou uma grande luz do céu.
7.E caí por terra, e ouvi uma voz que me dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues?
8.E eu respondi: Quem és, Senhor? E disse-me: Eu sou Jesus Nazareno, a quem tu persegues. (ATOS. 22. 6-8)
[...]
11.E, como eu não via, por causa do brilho daquela luz, fui levado pela mão dos que estavam comigo, e cheguei a Damasco. (ATOS. 22: 11)
Em A Conversão de São Paulo , de Michelangelo (1475–1564), Paulo é retratado no chão, ofuscado pela visão de uma luz divina:
Michelangelo Buonarroti (1475–1564). A Conversão de São Paulo, 1542. Capela Paulina (Vaticano).
Em Atos, o apóstolo relata que uma luz brilhante o cegou e que, em seguida, caiu no chão. Sua visão foi recuperada somente após três dias. A experiência de Paulo foi atribuída a uma crise epiléptica do lobo temporal com aura emocional que talvez tenha evoluído para generalização secundária, que foi assustadora e dramática, seguida de cegueira cortical pós-ictal (Landsborough, 1987).
Em algumas de suas cartas, Paulo dizia possuir uma enfermidade que quem padecia costumava ser desprezado. Lembremos que, à época, a epilepsia era chamada de "morbus insputatus": doença cuspida; pois, lamentavelmente, o preconceito gerou um costume que perdurou durante séculos: cuspir nos epilépticos.
Nas cartas, Paulo também afirma que, por vezes, sentiu-se arrebatado para o Paraíso. Tal sensação é atribuída à aura extática, outrora descrita pelo escritor russo Fíodor Dostoiévski, epiléptico que afirmou que durante os segundos antecedentes a crise, sentia-se “no céu”:
Que importa que seja doença? Quem mal faz que seja uma intensidade anormal, se esse fragmento de segundo, recordado e analisado depois, na hora da saúde, assume o valor da síntese da harmonia e beleza, visto proporcionar uma sensação desconhecida e não advinda antes? Um estado de ápice, de reconciliação, de inteireza e de êxtase devocional, fazendo a criatura ascender à mais alta escala da vivência? ... Sim, por este momento se daria toda a vida! (O Idiota – Dostoiévski).
Curiosidade: Antigamente, na Irlanda, a epilepsia era chamada de "doença de São Paulo".
REFERÊNCIAS:1. Landsborrough D. St. Paul and temporal lobe epilepsy. J Neurol Neurosurg Psychiatry 1987.
2.DOSTOIÉVSKI, Fíodor "O Idiota" Editora José Olympio, 1951 - Rio de Janeiro.
3.Bíblia Sagrada - Tradução de João Ferreira de Almeida.
terça-feira, 16 de novembro de 2010
O que "Sherlock Holmes" tem a ver com a medicina?
Conan Doyle conheceu o Dr. Joseph Bell em 1877, quando era estudante de medicina da Universidade de Edimburgo. Doyle tinha sido fortemente influenciado pelo médico, à época seu professor. Conta-se que Bell, ao ver um estranho, era capaz de deduzir muito de sua vida e de seus hábitos. O cirurgião era um expert no uso do raciocínio dedutivo para diagnosticar a doença. Conan Doyle ficou tão impressionado que usou esses mesmos princípios ao criar seu famoso personagem.
O médico inspirou não somente a criação da personalidade de Holmes, mas também o porte físico do detetive. Em um texto publicado no periódico The National Weekly em 1923, Doyle descreve seu admirado professor:
Era magro, vigoroso, com rosto agudo, nariz aquilino, olhos cinzentos penetrantes, ombros retos e um jeito sacudido de andar. A voz era esganiçada. Era um cirurgião muito capaz, mas seu ponto forte era a diagnose, não só de doenças, mas de ocupações e caráteres. Conan Doyle, 1923.
Gravura. Signey Paget (1860-1908). "Sherlock Holmes (à direita) e o Dr. Watson",1893. Strand Magazine.
Médico e artista, Doyle caprichou nos mínimos detalhes de sua obra. Nem mesmo o nome do personagem foi escolhido em vão. A escolha do sobrenome “Holmes” foi uma homenagem ao seu colega, o doutor Oliver Wendell Holmes, notável médico americano e um dos melhores escritores do século XIX. Holmes dizia ser o diagnóstico médico um trabalho digno de um detetive, visto depender de muitos detalhes. O primeiro nome do personagem é baseado em Alfred Sherlock, um violinista proeminente do seu tempo. Compõe-se assim Sherlock Holmes. Dentre as inúmeras qualidades do personagem, destacam-se a de detetive e violinista.
REFERÊNCIAS:
1.The Sherlock Holmes Society of London. "The wide world of Sherlock Holmes". No. 307: 25 October 2010.
2.Sherlock Holmes and Dr. Joseph Bell
domingo, 14 de novembro de 2010
Dr. Frederick Banting: O Artista que Descobriu a Insulina.
“Quanto mais penso na cidade mais quero morar no campo, e quanto mais penso em ser pesquisador, mais quero ser um artista.” Frederick Banting.Frederick Grant Banting, foi simplesmente a figura central na descoberta de uma das drogas mais importantes da terapêutica médica atual: a insulina. O médico é também autor de centenas de magníficas pinturas canadenses.
O Diabetes mellitus é uma doença conhecida desde os antigos egípcios. Estudos datados de cerca de 1500 a.C. descrevem um mal capaz de fazer as vítimas eliminarem a urina um tanto adocicada, característica que lideraria muito tempo depois a identificação do diabetes. Dando um salto na história da doença, encontramos autópsias realizadas a partir de 1850 mostrando que o pâncreas de pessoas mortas por diabetes não funcionavam satisfatoriamente.
A droga que revolucionou o tratamento dos diabéticos foi descoberta e estudada por quatro cientistas, sendo o principal deles Frederick Banting. A insulina é um hormônio produzido no pâncreas, isolado entre os anos de 1921 e 1922 na Universidade de Toronto.
Muitos cientistas especularam que algumas células especializadas do pâncreas, chamadas ilhotas de Langerhans, fabricavam um componente químico capaz de regular o nível de açúcar do sangue. A doença, por conseguinte, surgiria sempre que houvesse uma falha na produção desse elemento.
Frederick Banting, então cirurgião ortopédico em Ontário, Canadá, recebeu a incumbência de estudar a função das ilhotas pancreáticas. Também recebeu alguns cães para experimento. Logo descobriu que o extrato pancreático produzido nos experimentos reduzia a hiperglicemia e a glicosúria dos cães submetidos a pancreatectomia.
Após as indispensáveis fases de estudo, purificação e experimentação, no dia 11 de janeiro de 1922, a substância derivada do extrato, chamada hoje de insulina, foi testada com sucesso em Leonard Thompson, um garoto diabético de quatorze anos, internado em estado grave no Hospital Geral de Toronto. A partir dali, mesmo não representando um método curativo, a descoberta salvou e prolongou um número simplesmente incontável de vidas.
Milhões de crianças em todo o mundo vivem mais e melhor após a milagrosa experiência de Banting. O impacto positivo que a descoberta da insulina exerceu sobre a humanidade é comparado apenas aos resultados oriundos da descoberta da penicilina.
E sua arte?
Um dos sonhos de Frederick Banting era aposentar-se aos cinqüenta anos, partir para as geladas montanhas de sua terra natal e viver o resto da vida a pintar. Desde menino o médico demonstrava habilidade para o desenho. Na escola dizia sentir grande satisfação ao cursar matérias ligadas às artes. Pouco antes de se consagrar como um dos maiores benfeitores da história da humanidade, buscando aliviar a inevitável tensão gerada pela prática médica, Banting decidiu pintar.
Exceto alguns trabalhos sobre outros países europeus, a grande maioria de suas pinturas traziam o Canadá como tema. Os críticos da época elevaram-o ao status de um dos melhores pintores canadenses. Dois anos após sua morte, em fevereiro de 1943, duzentos de seus desenhos e pinturas foram expostos no Hart House Art Gallery, em Toronto.
Sir Frederick Grant Banting (1891-1941).A Aldeia no Inverno. Óleo sobre Painel 22x26.2cm. Canadá.
Frederick Grant Banting (1891-1941). Cobalt, Ontário.1932. Óleo sobre painel, 8x10cm. Canadá.
“O que levou um grande pesquisador a tornar-se um pintor?” perguntaram os editores de uma revista publicada pela Associação Canadense de Diabéticos. Eles mesmos deram a resposta: “Provavelmente porque se preocupava com o Canadá, com as pessoas, com a Terra. Ele foi acima de tudo um humanista – profundamente envolvido com a vida e suas facetas.”
REFERÊNCIAS:
1.Sir Frederick Grant Banting. Gallery Walter Klinkhoff
2."Frederick Grant, Artist" Canadian Diabetes Association.
3.Souza, Álvaro N. – Grandes médicos e grandes artistas – nomes que deram vida, a medicina e as artes. – Salvador, BA, 2006.
4. The Canadian Diabetic Association Newsletter. "Banting - The Artist." First quarter, vol 1; 1967.
sábado, 13 de novembro de 2010
A Era Pré-Anestésica e a Descoberta do "Gás Hilariante"
George Bernard Shaw (1856-1950). Gravura satírica do séc. XIX mostrando paciente submetido à amputação do membro inferior.
Apesar do sentimento de que a dor era inevitável, alguns agentes diferentes eram usados para aliviá-la. Até o século XVII, era a partir da mandrágora que extraiam a substância mais utilizada para amenizar a dor. A planta era fervida em vinho, coada e usada no caso de pessoas que fossem ser cortadas ou cauterizadas.
Uma esponja contendo morfina e escopolamina foi o modo dominante de oferecer alívio da dor no período que compreende o século IX ao XIII. Em meados do século XVII, Marco Aurélio Severino sugeriu que colocando neve em linhas paralelas cruzando o plano incisional conseguia-se tornar o local cirúrgico insensível em poucos minutos, descreveu assim a “anestesia por refrigeração”. No século XIX, a Europa utilizava grande quantidade de álcool, à época único recurso disponível, para diminuir as dores dos pacientes. Apesar de surgirem variadas técnicas, nenhuma conseguia proporcionar um alívio satisfatório da dor, que até então, era o principal empecilho na tarefa do médico.
No ano de 1772, o químico inglês Joseph Priestley descobriu o Óxido Nitroso. 28 anos mais tarde, o Sir Humphry Davy, observando os efeitos analgésicos do gás, sugeriu que o uso da substância poderia ser vantajoso durante a cirurgia. Foi Davy quem também descreveu as propriedades estimulantes do Óxido Nitroso, apelidando-o de gás hilariante (ou gás do riso).
Prescrição para Mulheres Chatas (1830). T.Mclean. Gravura. Biblioteca Nacional de Medicina (Bethesda).
Espetáculos eram organizados nas tardes de domingo para atrair pessoas que queriam divertir-se sob os efeitos do Óxido Nitroso. Abaixo, um cartaz da época evidenciando os efeitos do gás da alegria:
Em um desses momentos descontraídos, um jovem senhor que participava do espetáculo, saltitando sob os efeitos do gás do riso, feriu sua perna ao colidir com uma cadeira. Ao recuperar-se do efeito da substância, comentou que nada havia sentido, nem a queda nem os ferimentos que não paravam de sangrar.
Um dentista de Connecticut(EUA), chamado Horace Wells, presenciava a brincadeira dominical e percebeu que o gás poderia servir para tirar a dor durante uma extração de dente. Wells pediu pra que extraíssem seu próprio dente após ser submetido aos efeitos do Óxido Nitroso. A experiência foi um sucesso, Wells não sentiu dor.
Em janeiro de 1845, passada a positiva experiência com o gás, Wells resolveu demonstrar publicamente o que seria uma extração sem dor. A demonstração ocorreu na Havard Medical School, em Boston, mas o paciente, um estudante de medicina muito obeso, não ficou completamente adormecido e urrou de dor quando seu dente foi puxado.
A tentativa foi julgada um fracasso. Muito desapontado, Wells desestabilizou-se e, em sofrimento profundo, cometeu suicídio no ano de 1848. "Não poderia ser chamado de vilão", dizia no bilhete que deixou. Doze dias depois chegou uma carta dizendo que a Sociedade Médica de Paris reconhecia-o como descobridor da anestesia .
É inegável ser Horace Wells um importante pioneiro da anestesia, pois foi o primeiro a reconhecer as propriedades do Óxido Nitroso (única droga anestésica do século XIX que ainda está em uso).
REFERÊNCIAS:
1. COLLINS, Vicent. História da Anestesiologia. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1979
2. MARGOTTA, Roberto. História ilustrada da medicina. 1º ed. São Paulo: Editora Manole.
3. MORGAN, G.MAGED,S. Anestesiologia Clínica - 3ª EDIÇÃO. Editora Revinter.
quinta-feira, 11 de novembro de 2010
Anatomia Grega: Por Que a Palavra "Hímen" Denomina a Membrana Situada no Vestíbulo Vaginal?
Himeneu Travestido Assistindo à Dança de Honra a Príapo, 1635. Óleo sobre tela, 167 × 376 cm. Museu de Arte de São Paulo.
Hymen, em Grego, quer dizer, originalmente, "membrana". Em 1550, Andreas Vesalius, médico belga fundador da moderna anatomia, usou o termo especificamente para a membrana situada no intróito vaginal.
George Rennie (1802-1860). Escultura em Mármore. Cupido empunhando a tocha de Himeneu, 1831. Londres, V&AM.
Os gregos acreditavam que Hymen precisava comparecer a todos os casamentos, pois caso contrário, o resultado do matrimônio seria desastroso. Pelo fato do deus presidir as celebrações de núpcias, foi sugerido que havia uma conexão entre esta divindade, o casamento e o hímen vaginal.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
Dioramas Anatômicos do Dr. Frederik Ruysch
Ruysch possuía o seu próprio museu de curiosidades sobre temas alegóricos da morte e da transitoriedade da vida e, dentre as exposições, havia uma série de dioramas montados a partir de partes corporais e estrelados por melodramáticos esqueletos fetais.
Ruysch,Frederik. Thesaurus Anatomicus. 1701
Criativo, Ruysch construiu as paisagens geológicas utilizando cálculos biliares e fez das veias e artérias "árvores"; e mais, tecidos ramificados de pulmões e vasos menores serviram para construir a grama de muitos dos seus arranjos.
Na maioria dos dioramas, observa-se crânios a lamentar a efemeridade da humanidade através do choro em elegantes "lenços" feitos de mesentério ou meninges cerebrais; acompanham também suas preparações diversas citações e exortações morais, enfatizando a brevidade da vida e da vaidade das riquezas terrenas.
Ruysch,Frederik. Thesaurus Anatomicus. 1701
Suas preparações anatômicas atraíram notáveis personalidades para o seu museu, incluindo o czar Pedro - O Grande, da Rússia, que estava tão fascinado com o trabalho artístico de Ruysch, que em 1717 comprou toda a coleção do médico. Vários dos itens ainda estão na posse do Museu da Academia de Ciências de São Petersburgo.
LEIA MAIS:
A Lição de Anatomia do Dr. Ruysch
REFERÊNCIAS:
RUYSCH, Frederik. Thesaurus Anatomicus Primus, 1701. Amsterdam.
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
Capela Sistina: Estruturas Neuroanatômicas Ocultas em "A Separação da Luz e das Trevas" / Michelangelo Buonarroti
A SEPARAÇÃO DA LUZ E DAS TREVAS (A cena representa a número I na ordenação feita pelos livros de arte. Nela, com os braços levantados, o Criador afasta as trevas à sua direita a luz à esquerda).
É inquestionável que Michelangelo Buonarroti (1475-1564), por possuir um fascínio intenso pela anatomia humana, realizou inúmeras dissecações de cadáveres.
Em um artigo publicado em 1990, Meshberger argumentou convincentemente que no afresco A Criação de Adão, localizado no teto da capela sistina, Michelangelo ilustrou um cérebro humano.
Apresentamos agora uma outra estrutura neuroanatômica oculta nos afrescos pintados por Michelangelo. Dessa vez, é em A Separação da Luz das Trevas, onde encontramos, embutida no pescoço do Criador, especificamente uma visão ventral do tronco encefálico:
Observar a perfeição com que Michelangelo ocultou as estruturas anatômicas em A Criação de Adão e A Separação da Luz e das Trevas, leva-nos a concluir que o artista possuía um profundo conhecimento da anatomia do cérebro.
LEIA MAIS:
O Anatomista Michelangelo em "A Criação de Adão".
REFERÊNCIAS:
Suk, Ian BSc, BMC; Tamargo, Rafael J. MD, FACS. “Concealed Neuroanatomy in Michelangelo's Separation of Light From Darkness in the Sistine Chapel”. Neurosurgery: May 2010 - Volume 66 - Issue 5 - p 851–861.
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
A Loucura em "Hamlet" - Ofélia, Personagem Suicida de William Shakespeare
Em A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, a personagem Ofélia morre afogada, em um provável suicídio. A bela e honrada moça que, amando Hamlet, ve-se privada de seu amor, passa a dar mostras de sua loucura após a morte de seu pai, Polônio, que fora assassinado por Hamlet.
Enquanto Ofélia enlouquece, Hamlet apenas finge perder o juízo para conseguir vingar a morte do falecido Rei Hamlet, seu pai; e sua melancolia forjada atinge tal grau que o leva a divagar sobre o suicídio.
Ofélia mata-se, mas é através de seu protagonista - que de tão racional simula perfeitamente o desespero da loucura - que Shakespeare desenvolve a dialética da angústia de uma "alma suicida":
HAMLET: Se ao menos o Eterno não houvesse condenado o suicídio! Ó Deus! Ó Deus! Como se me afiguram fastidiosas, fúteis e vãs as coisas deste mundo! (Hamlet - ATO I CENA I)
HAMLET: Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer.., dormir... dormir... Talvez sonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando alfim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa idéia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por temer algo após a morte - terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém voltou - que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos, sem buscarmos refúgio noutros males ignorados? De todos faz covardes a consciência. (Hamlet - ATO III CENA I)
Paradoxalmente, enquanto todos vêem em Hamlet um louco, a loucura de Ofélia passa-se quase desapercebida, pois Shakespeare deixa transparecer a idéia de que uma moça honrada, mesmo enlouquecendo, o deve fazer de modo comportado. A insânia da boa moça tem coreografia mansa e cantante, seu suicídio é passivo, suave e deslizante.
Ofelia (1852). John Everett Millais. Galeria Tates.
A
RAINHA: Seus vestidos se abriram, sustentando-a por algum tempo, qual a uma sereia, enquanto ela cantava antigos trechos, sem revelar consciência da desgraça, como criatura ali nascida e feita para aquele elemento. Muito tempo, porém, não demorou, sem que os vestidos se tornassem pesados de tanta água e que de seus cantares arrancassem a infeliz para a morte lamacenta.
LAERTES: Afogou-se, dissestes?
A RAINHA: Afogou-se. (Hamlet - ATO IV CENA IV)
Em Hamlet, mais que em qualquer outra obra, Shakespeare revela seu profundo conhecimento do ser humano. A descrição da morte de Ofélia é uma das passagens mais poéticas da literatura mundial. A personagem, tão desesperada se encontra que não se dá conta da própria desgraça, de modo que canta até seu último fôlego, refletindo assim o que diz Hamlet sobre o suicídio: “Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se.”
A morte cantante de Ofélia traduz o alívio de uma alma conturbada.
LEIA MAIS:Suicídio na Literatura
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
Ciclopia: Monstruosidade Representada na Literatura Mitológica, Escultura e Música Clássica
Transmitida por uma herança recessiva, a malformação parece resultar de uma severa supressão de estruturas cerebrais da linha média – holoprosencefalia – que se desenvolvem a partir da parte cefálica da placa neural. Essa grave anomalia ocular está associada com outros defeitos craniocerebrais incompatíveis com a vida.
Monstro não comparável aos humanos
[...]De carne humana estás, Ciclope, farto.
Odisséia (séc. VIII a.C) - IX canto. Homero.
Os ciclopes foram cantados por Homero no IX livro da famosa Odisséia. Segundo a mitologia grega, o raio que fulminou Esculápio (deus da medicina) gerou os seres com um só olho. Como mostra o trecho acima, nas palavras do autor grego tais seres monstruosos são incomparáveis aos humanos.
Escultura em mármore encontrada na caverna de Tibério. Museo Archeologico Grotta di Tiberio (Sperlonga).
A escultura acima mostra o momento em que Ulisses (Odisseu, em grego) consegue vingar-se do Ciclope pela morte de seus companheiros. Conta Homero que no regresso de Tróia ao reino de Ítaca, Ulisses chegou ao país dos gigantes ciclopes, que moravam em cavernas. Nesse local desembarcou com seus companheiros e, encontrando uma grande caverna, lá entrou. Pouco depois, chegou o dono da caverna, Polifemo (o mais famoso dos ciclopes), que voltando então o grande olho, viu os estrangeiros e perguntou-lhes, com maus modos, quem eram e de onde haviam vindo. Respondeu-lhe Ulisses com muita humildade que eram gregos e terminou implorando hospitalidade, mas Polifemo estendeu o braço, agarrou dois dos gregos, que atirou contra a parede da caverna, esmagando-lhes a cabeça, depois tratou de devorá-los. Na manhã seguinte o ciclope apanhou mais dois gregos e devorou-os da mesma maneira que a seus companheiros. Ulisses tratou então de como se vingaria da morte dos amigos e conseguiria fugir com os companheiros sobreviventes. Teve a idéia de dar vinho ao gigante, que tanto bebeu que não tardou a adormecer. Então, Ulisses com seus quatro companheiros escolhidos, colocou no fogo a extremidade do espeto que haviam feito, até que essa se transformou num carvão em brasa e, depois, colocando a haste bem exatamente sobre o único olho do gigante, enterram-na profundamente e a girara.
No olho o tição. Cálido sangue espirra;
O vapor da pupila afogueada
As pálpebras queimava e a sobrancelha.
Odisséia (séc. VIII a.C) - IX canto. Homero.
Os gritos dolorosos do monstro ecoaram pela caverna e, deixando Polifemo entregue à sua dor, Ulisses e seus companheiros fugiram seguindo o caminho à Ítaca.
Na Música Clássica:Aci, Galatea e Polifemo é uma é uma dramática serenata que inclui três personagens míticas (inclusive Polifemo). A bela mini ópera foi criada pelo célebre compositor alemão George Frideric Handel em 1708. Polifemo amava Galatéia, mas esta nutria uma paixão por Ácis, sentimento que lhe era recíproco. Num dado momento, dominado pelo ciúme, o ciclope perseguiu Ácis e, arrancando um rochedo da encosta da montanha, atirou nele, que imediatamente foi esmagado e transformado no rio que conserva seu nome. O papel do ciclope Polifemo, cujas ações têm conseqüências letais para Ácis, é particularmente notável para a singular agilidade necessária à música de Handel.
REFERÊNCIAS:
1. Bulfinch, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia: (a idade da fábula). Ediouro, Rio de Janeiro, 2002.
2. Moore, Keith, L. Embriologia Clínica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
3. Decano, Winton & Knapp, J. Merrill (1987), Óperas de Handel, 1704-1726, Imprensa de Clarendon.
4.HOMERO. Odisséia. Trad. Odorico Mendes