sábado, 15 de setembro de 2012

Importância da Cultura na Formação Médica

"A Leitura". Pierre Renoir
Nos tempos em que não existia um manual explicando como “usar” e “consertar” o corpo humano, a chave de todo o conhecimento médico habitava nas práticas instintivas e empíricas. As ciências humanas participavam ativamente do desenvolvimento da medicina. O bom curador havia de ser não um técnico habilitado para manejar a estrutura corporal, mas um sacerdote, um mago, um profeta, um artista e um filósofo.

Estes médicos, ao duvidarem da conduta a ser tomada, buscavam inspiração nas artes, catalisando seus neurônios com a beleza embriagadora destas. Sabiam eles que os seres humanos assemelham-se a uma obra artística que, tal como pinturas abstratas, precisam de um olhar apurado para serem analisados e compreendidos. Como a partir das “catálises processadas pelo refinamento” advieram grandiosas descobertas, rendeu-nos muitos epônimos derivados da mitologia e literatura para designar doenças e medicamentos.

O médico era também um companheiro, o amigo da família, era quem visitava os doentes e rezava junto a eles e se, por acaso, morriam, sua presença era certa e esperada no sepultamento. Porque o médico era, há um tempo, mais que um cientista, um confidente, um xamã e um amigo.

Sem embasamento teórico, para optar por uma conduta adequada, o médico antigo tinha de conhecer intimamente quem necessitava dos seus cuidados: os hábitos, a história e as crenças de seus pacientes, desenvolvendo portanto a consciência de que somente acessando o cerne do outro construiria um conhecimento concreto a respeito de sua ciência e atuação.

Não é de se estranhar que personagem como Nostradamus tenha se destacado como médico. Exímio astrônomo e alquimista, dotado de grande erudição que impulsionava a imaginação, cultivava a intuição através das ideias e alimentava com sabedoria seu senso observacional para com a humanidade, brotando-lhe até mesmo um raciocínio bastante acurado a respeito do futuro.

Assim era o médico de antigamente, por possuir um espírito inquiridor, ele era, de fato, um completo cientista, interessado nas mais diversas áreas de conhecimento. Os doutores que marcaram a história possuíam, antes de quaisquer outras qualidades, a virtude da curiosidade e sensibilidade para compreender e penetrar a “alma humana”.

A partir de meados do século XIX, uma revolução no terreno da patologia fora desencadeada por importantes descobertas em campos como o da microbiologia, análises laboratoriais e outros métodos clínicos, gerando profundas transformações na medicina como um todo, incrementando consideravelmente a formulação dos diagnósticos. O surgimento da antibioticoterapia proporcionou aos médicos uma eficácia na cura e um domínio sobre os males sem precedentes na história.

Acontecia um verdadeiro “milagre” e, tudo dava a entender que no início do século XX a medicina atingiria o seu apogeu, o seu estágio de ciência exata. À medida que o prestígio das descobertas cientificas crescia, o das ciências humanas dissolvia-se no meio médico. As artes, apesar de ainda importantes, para o novo médico pouco podiam acrescentar, já que novas descobertas e métodos efetivamente científicos abriam novas dimensões.

Os enormes progressos rapidamente alcançados através das ciências biológicas e químicas, associados aos avanços tecnológicos, foram, cada vez mais, redirecionando a formação e a atuação do profissional médico e, infelizmente, modificando também sua escala de valores.

O segredo do conhecimento não mais se esconde nos documentos históricos nem nas instituições artísticas ou filosóficas, aliás, não há mais segredos: as informações se exibem totalmente desnudas nos manuais herdados de pesquisadores atentos que fizeram uma análise sistemática do comportamento físico-químico dos órgãos, tecidos e células.

Maravilha! Com tantas informações ao nosso dispor, não precisamos mais intuir sobre o que seria melhor para qual e tal paciente, não há necessidade de perder tempo colhendo tantas informações, nem num minucioso exame físico, pois diante de atuais exames complexos, esse caloroso contato afigura-nos tão insignificante!

Eis então a moderna função de grande parte das escolas médicas: orientar o aluno sobre como aplicar as informações contidas nos “manuais” especializados na “máquina” humana.

Focados apenas nos compêndios de Medicina, certamente se tornarás um especialista, um profundo conhecedor de exames precisos e especializados, porém, haverá um grande risco de te tornares nada mais que um excelente técnico, ignorante dos aspectos humanos presentes no paciente que assiste.

É deveras essencial nutrirmo-nos com o conhecimento médico adquirido até os dias atuais, tais informações são extremamente úteis para ajudarmos nossos pacientes, mas, por favor, caros doutores, não deixeis de alimentar também o seu espírito.

Nossa imaginação, assim como o corpo, precisa de nutrientes estimuladores e prazerosos. Satisfaça o seu intelecto, dê-lhe de sobremesa, após almoçar capítulos do Guyton, “A Morte de Ivan Ilitch” (garanto-lhe que Tostói jamais lhe dará indigestão).

Compreender como os fatores sociais, psicológicos e culturais afetam a saúde física e ser sensível a estes fatores fazem uma diferença importante nos resultados da saúde. Somos a vinculação do que sentimos, pensamos e produzimos. Nossas atitudes são guiadas pelo que lemos, acreditamos, duvidamos e admiramos. Também as crenças culturais influenciam consideravelmente comportamentos relacionados à saúde. Nossas ideias e realizações são, portanto, manifestações da experiência pessoal, influenciando incisivamente no resultado da nossa atividade médica.

domingo, 9 de setembro de 2012

"O Doente Imaginário", de Molière

A peça O Doente Imaginário, de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière (1622-1673), foi destinada inicialmente à diversão do rei. Famosa sátira da medicina, nela o autor nos apresenta uma medicina livresca, incapaz de progredir.


Protagonizando, o hipocondríaco Argan, entupido de remédios e clisteres prescritos por médicos interessados apenas no retorno financeiro que tinham com o emprego de seus serviços; estes doutores possuem nomes sugestivos, Sr. Purgon (purgante) e Sr. Diafoirus (diaforéticos).
BÉRALDE: [...] Não vejo pessoa que esteja menos doente do que vós, e que eu não pediria melhor constituição do que a vossa. Uma grande prova de que andais bem, e que tendes um corpo perfeitamente bem regulado, é que com todos os remédios que já tomastes, ainda não conseguistes estragar a vossa saúde. Vê que não estais morto co todos os medicamentos que lhe fizeram tomar. (ATO III, CENA III).
Molière impinge na obra a ideia de que a paixão por médicos e medicamentos é apenas uma forma desesperada de terror da morte. Que o autor fosse o “original” do Doente é amplamente especulado. A obra é alimentada por sua própria experiência como paciente. Molière tinha uma visão arguta e havia adquirido uma certa cultura médica, pois um doente inteligente e provido de espírito crítico, desiludido com os insucessos dos tratamentos, se tornaria necessariamente um autodidata em medicina.

Comédia singularmente amarga, apesar dos risos que traz em vários momentos, a peça fotografa uma fase penosa da vida do irônico autor, que escolheu traduzir de forma engraçada o que sentiu quando, atrozmente doente (vítima de tuberculose pulmonar), viu-se abandonado pelos médicos que o assistiram; assim, O Doente Imaginário é um protesto da inteligência e do corpo contra a implacável destruição imposta pela doença, contra a impotência humana, contra a exploração de alguns da miserável condição humana.
ARGAN – Mas afinal, meu irmão, há pessoas tão sábias e tão inteligentes quanto vós e vemos que no mal estar todos apelam para os médicos.
BERALDE – É um traço da fraqueza humana e não da verdade de sua arte. 
ARGAN – Mas é preciso que os médicos achem o seu ofício verdadeiro, já que o utilizam para si mesmos.
BERALDE – É que há alguns entre eles que também estão na crença popular, da qual aproveitam , e outros que dela aproveitam sem acreditar. O vosso senhor Purgon, por exemplo, não vê fineza; é um homem de todo médico, da cabeça aos pés; um homem que acredita em suas regras mais do que todas as demonstrações da matemática, e que acharia um crime querer verificá-las; que não vê nada de oculto na medicina, nada de duvidoso, nada de difícil, e que, com uma impetuosidade de prevenção, uma rigidez de confiança, uma brutalidade e senso comum, fornece a torto e a direito purgantes e sangrias e não imagina nada além. [...] É a nossa inquietude, a nossa impaciência, que tudo estraga, e quase todos os homens morrem de seus remédios, e não de sua doença. (ATO III, CENA III)
Publicando a obra, Molière emite um grupo de alarme: a medicina está se enterrando no palavratório. E o autor vai mais longe, chega mesmo à negação da própria medicina. E esta negação se origina da sua experiência com médicos antiéticos que lhe extorquiam dinheiro prometendo saúde numa época em que o diagnóstico de tuberculose equivalia a uma sentença de morte.

Nos últimos dias de vida, vendo que a tuberculose apenas progredia e tirava-lhe o fôlego, Molière concluiu que não se curam os doentes do corpo, mas tão só os maníacos; suporta-se; conforma-se; ou melhor, ri-se deles.

O último ato da vida do autor foi numa noite de inverno. Menosprezando os conselhos dos médicos que lhe diziam para ficar em repouso e não ir ao teatro, Molière foi representar o obidiente hipocondríaco Argan em sua sua famosa peça "O Doente Imaginário" em 17 de fevereiro de 1673. Recitando os versos, ele apresentou hemoptise no palco. Em seguida, enquanto a plateia delirava em aplausos, foi tomado por uma convulsão e levado pra casa, onde morreu às 22h da mesma noite.

O grande escritor e artista cômico que sonhou ser um ator de tragédias, representou alegria para os outros e fez de sua própria vida a tragédia que tanto queria representar. Não é surpreendente que o mestre da dissimulação e duplo sentido tenha encerrado a trajetória num momento em que encenava um falso doente.

REFERÊNCIAS:
MOLIÈRE. "O Doente Imaginário". Ed. Martin Claret, 2a edição. 2009.