domingo, 31 de julho de 2011

Anton Tchekhov: Trajetória Dedicada à Medicina e à Literatura

Fico satisfeito quando me dou conta de que tenho duas profissões, não uma. A medicina é a minha esposa legal, a literatura a minha amante. Quando canso de uma passo a noite com a outra. Pode não ser uma situação habitual, mas evita a monotonia; ademais, nenhuma delas sai perdendo com minha infidelidade. Se não tivesse minha atividade médica, dificilmente poderia consagrar à literatura minha liberdade de espírito e meus pensamentos perdidos.
O célebre trecho acima é do famoso escritor Anton Tchekhov, que exerceu com primor a medicina e a literatura, consagrando-se como um dos grandes nomes que conciliou as duas culturas: a cultura humanística e a cultura científica.

Anton Pavlovitch Tchekhov nasceu em Taganrog em 17 de janeiro de 1860. Foi o terceiro dos seis filhos do merceeiro Pável Tchekhov.

As origens da família são humildes, fato que contribuiu um tanto para sua infância difícil. O pai, autoritário mas bem intencionado, obrigava-o a trabalhar com ele na venda, e quando, falido, teve de mudar-se pra Moscou com a família, deixou o jovem Tchekhov sozinho em Tangarog para terminar o ensino médio. Sem renda, Anton logo tratou de dar aulas particulares para suster a si mesmo, mantendo-se assim por cerca de dois anos. chamavam-o ironicamente de "Cech" (cujo significado é servo). Em 1979, terminado o ginásio, Tchekhov seguiu pra Moscou, onde encontrou a família na maior pobreza, tendo chegado em certa época a dormir no chão.

Alexander Mirgorodskiy. Estátua de Tchekhov (1960). Localizada em Taganrog (Rússia).

Tchekhov matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Moscou. Graças ao seu talento literário, durante essa fase sustentou a si e a família trabalhando como colaborador em publicações periódicas em vários jornais e revistas das metrópoles russas. Formou-se em 1884 e exerceu medicina como médico responsável de uma clínica rural, da província. Foi ali que o autor conheceu as mais curiosas personalidades e a exuberante natureza pátria que ele descreveria com pinceladas magistrais em muitas de suas obras.

Não menos brilhante que sua atividade literária fora sua carreira médica. Mikhail Tchekhov, um membro da família em Melikhovo (pequena cidade onde Anton exerceu por anos a profissão), descreveu o alcance que assumiu os compromissos hipocráticos de seu irmão:
Os doentes que moravam ao redor começaram a afluir a Tchekhov. Eles viam de longe, a pé ou trazidos em carretas, outras vezes ele ia ao encontro de pacientes à distância. Desde o início do dia as mulheres camponesas e as crianças estavam em pé diante de sua porta, à sua espera, muitas vezes somente para oferecer-lhe algum agrado como prova de gratidão.
Também Tchekhov sofria com uma doença, talvez por isso não economizou em carinho e generosidade com seus pacientes. Em dezembro de 1884 teve ele um quadro de hemoptise. O diagnóstico? Tuberculose, que se agravou a partir de 1889. Em junho desse mesmo ano morreu o seu irmão Nikolaj, também vítima da doença, possivelmente infectado pelo irmão. A morte do caçula influenciou Uma História Desagradável, conto que discorre sobre um homem que enfrenta o fim de uma vida percebendo que sua existência foi sem propósito. Há relatos de que Anton sentiu indescritíveis remorsos, principalmente por não ter estado presente nos últimos dias de vida do irmão. Nikolaj também fora um exímio artista, gostava de pintar, e estampou num quadro a face adoecida do irmão:

Retrato de Anton Tchekhov por seu irmão Nikolaj Tchekhov.

Assim como ocorreu a muitos escritores, a tuberculose exerceu forte influência na atividade literária de Tchekhov, em muitos de seus textos há personagens vítimas da doença. Doutores também não faltam em suas obras, a exemplo, em Um Relato do Jardineiro-Chefe, o autor descreve num personagem médico algumas das qualidades essencialmente humanas que empregavam a si:
Ele mesmo tísico, tossia, mas quando o chamavam pra ver um doente, ele esquecia o próprio mal e, arquejando, subia montanhas, por mais altas que fossem. Ele não ligava pra o frio ou calor, desprezava fome e sede. Não aceitava dinheiro e, coisa estranha, quando perdia um paciente para a morte, ele seguia o caixão junto com os parentes e chorava. E logo ele se tornou tão indispensável para a cidade, que os moradores espantavam-se ao pensar como é eu antes conseguiam passar sem esse homem. Sua gratidão não conhecia limites. Adultos e crianças, bons e maus, honestos e malandros, em suma, todos o respeitavam e reconheciam seu valor.
Bem visto e bem quisto em toda a cidadezinha em que exerceu a profissão, conta-se que Tchekhov não aceitava pagamento pelas consultas, sua renda provinha de suas publicações literárias; dizia ele que a profissão médica já possuía por si só um inestimável valor, pois a convivência direta com o sofrimento dos doentes fornecia o substrato para seus textos, e por isso, apesar de não cobrar aos pacientes, era a medicina indiretamente responsável por seu sustento.

Observador arguto da vida e de tudo que é humano, Tchekhov foi um homem de muitas vivências. Tanto a infância difícil e a adolescência penosa, como a tuberculose e as impressões adquiridas no tempo em que observou a vida dos condenados ao trabalho forçado na ilha Sakhalina, causou profunda impressão em sua consciência e imprimiu a marca da verdade nos textos mais importantes do escritor, tornando-o insuperável. Seus curtos contos, expostos com uma economia de palavras diretamente proporcional à riqueza e profundidade do seu conteúdo humano (emocional, psicológico e social), respiram realidade, seus intensos personagens revelam-se ao leitor sem um só efeito supérfluo.

Em julho de 1904 a tuberculose recrudesceu implacavelmente, levando do mundo o genial russo, aos 44 anos de idade, em plena floração da criatividade e do talento. O artista foi sepultado no Cemitério Novodevichy, ao lado do túmulo do pai.

A grandeza de Tchekhov revela-se no conteúdo de sua vasta obra, que exala a empatia que ele possuía com tudo o que é humano. Sua compaixão e compreensão – pelos injustiçados e desvalidos, os humilhados e ofendidos, as crianças, os condenados, os animais, os doentes e os infelizes de quaisquer classes sociais –, impregnam as linhas que enriquecem a literatura mundial. A julgar pelas palavras deliciosamente belas e desprovidas de pieguice, ouso dizer que poucos homens são capazes de atingir tamanha maturidade angelical.


REFERÊNCIAS:
Tchekhov, Anton. "Um homem extraordinário e outras histórias". Porto Alegre; L&PM, 2007.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

"Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley

Completada há quase um século pelo escritor britânico Aldous Huxley (1894-1963), Admirável Mundo Novo é uma impressionante obra ficcional que questiona o direcionamento que a civilização moderna está dando a si mesma, caminhando em direção à total desvalorização dos aspectos humanos. Visto como profético, o livro escrito antes da estrutura do DNA ser descrita, discute, dentre diversos assuntos relevantes, se o cientificamente possível é eticamente viável.


Nós os preservamos de doenças, mantemos artificialmente as secreções internas ao nível de equilíbrio da juventude. Não deixamos cair a taxa de magnésio e o cálcio abaixo do que era aos trinta anos. Fazemos transfusões de sangue jovem. Mantemos o metabolismo estimulado permanentemente. (Huxley, 1932).
As pessoas, controladas desde o nascimento por um sistema que alia controle genético a condicionamento mental, são completamente destituídas de valores humanos, não sendo mais que meros produtos de uma linha genética de montagem em que são clonadas e tratadas como peças de reposição para a manutenção de um sistema global asséptico e totalmente artificializado.

A sociedade que emerge das páginas do romance de Huxley valoriza o negligencialismo dos sentimentos, a mediocridade, o artificialismo e a banalização dos relacionamentos. Tal condição social inumana é alcançada em função de pseudos avanços e conquistas científicas. Huxley aborda assim, uma questão que sempre esteve atrelada aos avanços da ciência: o medo de sua utilização desvirtuada.

Em busca de uma aparente harmonia social, na sociedade criada por Huxley, não há espaço para questionamentos ou dúvidas, nem para os conflitos, pois até a tristeza e a ansiedade são controladas quimicamente pelo “soma”, – uma droga capaz de estabilizar os exasperados sentimentos humanos. Considerando que décadas depois surgiram os antidepressivos e ansiolíticos, também neste tópico reconhece-se a obra como profética.

Com suas mães e seus amantes; com suas proibições, para os quais não estavam condicionados; com suas tentações e seus remorsos solitários; com todas as suas doenças e intermináveis dores que os isolavam; com suas incertezas e sua pobreza - eram forçados a sentir as coisas intensamente. E, sentindo-as intensamente (intensamente e, além disso, em solidão, no isolamento irremediavelmente individual), como poderiam ter estabilidade? (Huxley, 1932).
Dentre uma população ridicularizada, dominada por falsos valores, Huxley inclui John, conhecido como O Selvagem, um personagem que representa o resgate dos valores humanos que se perderam. Esse personagem tem como modelo do humano, nada menos do que os sentimentos descritos nas obras de William Shakespeare – admirável escolha de Huxley, aliás, visto que o dramaturgo inglês foi o primeiro a oferecer um espelho no qual a humanidade pudesse se reconhecer. Assim, anos antes de Shakespeare ser referido como o “inventor do humano”, Huxley já o elegia como redentor dos valores humanitários da civilização.

Genialmente, também o título da obra fora extraído das palavras de Shakespeare:

Oh! maravilha!
Que adoráveis criaturas temos aqui!
Como é bela a espécie humana
Ó ADMIRÁVEL MUNDO NOVO
que possui gente assim! (A Tempestade - Ato V).
Também enfatizando a busca pelos reais valores, a peça, - provavelmente a última escrita por Shakespeare, - tem como protagonista Próspero, um personagem exilado da sociedade, dotado de poderes exotéricos e caracterizado por seu amplo conhecimento acerca das coisas do mundo. Nas últimas páginas da obra, em sua viagem de volta ao lar, Próspero decide retornar a sua condição original, e lança ao mar um livro contendo toda sua magia e conhecimento. Assim, ele retorna ao seio da civilização da qual fora exilado, como ser humano puro, sem os poderes sobre-humanos que a ciência e a magia lhe conferiam, contribuindo assim para a restauração da ordem social vigente. Ambas as obras tem um ponto em comum: o resgate da natureza humana, outrora perdida pela busca científica indiscriminada.

Atualmente, a engenharia genética se destaca globalmente. Com o poder de suscitar diversas questões éticas, a leitura de Admirável Mundo Novo é quase que obrigatória e altamente recomendada numa época em que a barreira entre a moralidade e a busca pela verdade científica faz-se quase invisível.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A cura da catarata representada em obra de Rembrandt / "Tobias devolve a visão a seu pai" (1636)

Pintada em 1636, a famosa gravura exposta abaixo é obra do prodigioso neerlandês Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669):

Tobias Devolve a Visão a seu Pai (1636).Rembrandt van Rijn (1606-1669).Óleo sobre tela, 47 x 38,7 cm Staatsgalerie (Stuttgart).

Este “Rembrandt genuíno” representa o Tobias em idade avançada, sentado à esquerda, perto da janela; sua esposa segura suas mãos sobre os joelhos, enquanto seu filho, trajado num turbante verde, trata-o com um remédio que trouxe de sua viagem. Seu companheiro, o anjo Rafael, vestido de branco e com asas estendidas, observa atentamente a cena.

Conta a bíblia que Tobias, da tribo e da cidade de Neftali – situada na Galiléia superior –, desposou uma mulher de sua tribo, chamada Ana, da qual teve um filho, a quem denominou também Tobias. Certo dia, enquanto dormia, caiu-lhe esterco de pardal nos olhos:

Não tinha notado, porém, que havia uns pardais no muro, mesmo por cima de mim. Caiu excremento quente nos meus olhos, produzindo neles manchas brancas [...]Fiquei cego durante quatro anos. (Tobias 2:10)

O incidente que supostamente o cegou foi conseqüência de um castigo por haver ele sepultado os corpos de alguns judeus, prática ilegal na época. Tobias suportou a essa punição divina guardando os mandamentos do Senhor e não lamentando pela cegueira.

Tempos depois, o jovem Tobias recebeu a seguinte mensagem do anjo Rafael:

Esfrega o fel do peixe nos seus olhos. O remédio vai fazer com que as manchas brancas diminuam e desapareçam. Então teu pai vai recuperar a vista e poderá ver. (Tobias 2:18)

O filho aplicou o remédio nos olhos do pai, aguardou um certo momento e viu então desprender-se dos olhos de Tobias uma catarata semelhante a uma clara de ovo. O jovem Tobias limpou-lhe os olhos e prontamente seu pai retomou a visão.

É relatado no livro sagrado que a leucocoria – a mais clássica manifestação da opacificação do cristalino – fazia-se presente nos olhos de Tobias. Tal dado leva-nos a crer que a história bíblica figura um claro exemplo de catarata.

Curiosamente, nos tempos antigos era considerado o fel de vários peixes um remédio eficaz contra a cegueira, prova disso é que o naturalista romano Plínio o refere em sua "História Natural”. Oftalmologistas sugerem que a esfregação vigorosa dos olhos determinaria o deslocamento da lente de catarata. Neste caso, especialmente se Tobias foi míope, a visão teria sido restaurada súbita e perfeitamente.

Acima da obra de Rembrandt, há uma inscrição dizendo: “Nenhum esforço é desperdiçado”, ressaltando, junto à imagem, o sucesso da cura de Tobias utilizando a fé em associação ao fel de peixe.


REFERÊNCIAS:
1.Pierre Amalric: L'opération de la cataracte à travers l'oeuvre de Rembrandt.