sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A Doença Oculta de Machado de Assis

Pouco se sabe sobre a história pessoal, familiar e médica de Machado de Assis (1839-1908), reconhecido na literatura universal como um dos mais importantes escritores.



Diversos relatos o desenham como portador de epilepsia:
Lopes (1981) sugeriu a ocorrência, muito comum pelo menos na última fase da vida, de crises psicomotoras, provavelmente decorrentes de foco temporal e da ínsula, enquanto Guerreiro (1992) assinalou que o escritor sofria alterações da consciência, automatismos e confusão pós-crítica. Ambos concluindo que as crises eram provenientes do lobo temporal direito.

Desconhece-se quando e como se iniciou a doença que o iria acompanhar pela vida afora. Renard Perez, biógrafo que defende o início das crises ainda na infância, baseia-se no próprio Machado, que se referia às "coisas esquisitas", que lhe sobrevieram quando criança. Sabemos através de outros relatos biográficos do recrudescimento de sua doença, após seu casamento com Carolina a 1869, bem como de sua exacerbação, na fase final de sua vida.

Carlos de Laet presenciou uma das crises públicas vividas por Machado e assim descreveu-a:

Quando de nós se acercou o Machado e dirigiu-me palavras em que não percebi nexo. Encarei-o surpreso e achei-lhe demudada a fisionomia. Sabendo que de tempos em tempos o salteavam incômodos nervosos, despedi-me do outro cavalheiro, dei o braço ao amigo enfermo, fi-lo tomar um cordial na mais próxima farmácia e só o deixei no bonde das Laranjeiras, quando o vi de todo restabelecido, a proibir-me, que o acompanhasse até casa. 

Depois de 1890, Machado confidencia a amigos suas dificuldades. Em cartas, guardadas na Academia Brasileira de Letras ele se queixa a Magalhães de Azeredo da "enfermidade", "do mal que me acompanha". Sempre com pudor numa das missivas adverte: "Mas enfim são coisas confiadas a um amigo sério e calado".

A partir do começo do século, são mais numerosos os informes sobre os sofrimentos de Machado. João Luso recordou a amizade indissolúvel do autor de Dom Casmurro a Mário de Alencar, que o acompanhava, pois receava “cair na rua, morrer de repente, ao desamparo, ou entre gente mais curiosa do que comovida".

Após a morte de sua esposa, Carolina, em outubro de 1904, torna-se mais dependente da amizade de Alencar. Este recorda: "A preocupação de saúde era freqüente: ou havia os efeitos de um acesso do mal terrível ou a iminência dele". À época, Mário de Alencar registra: “A preocupação com a saúde era frequente: ou havia os efeitos de um acesso do mal terrível ou a iminência dele. Falava-me como a seu próprio médico, confiando-me tudo, consultando-me sobre minúcias da moléstia e o que havia de dizer ao seu facultativo.”

O sofrimento de Machado é, então, pungente. Lamenta- se em carta a Alencar (1908):
O mal não é tão grande como parece; é agudo, porque os nervos são doentes delicados, e ao menor toque retraem-se e gemem. Eu sou desses enfermos, como sabe, e como sabe também, doente sem médico.
Nesta frase se condensam muitas verdades e a súmula da experiência machadiana sobre a própria epilepsia. "O mal não é tão grande como parece; porque é agudo." O ataque é rápido, seus efeitos desaparecem em pouco tempo; as repetições, no entanto, amedrontam, porém a volta sempre verificada à consciência e à rotina da vida, reasseguram, até certo ponto, o epiléptico. E, em seguida, um deslocamento, “porque os nervos são doentes delicados”: não é ele, Machado, o delicado, mas sim os nervos; não é ele o doente, são os nervos; os nervos retraem-se e gemem, Machado convulso e estertorante cobre-se atrás da imagem da retração e dos gemidos dos nervos, esses sim fracos, delicados; ele, porém, forte e duro ante a adversidade.

Registros informam-nos ainda que o leque dos sintomas se abria de modo a comportar: "algumas dores", acessos de cólera, "sonolência," "ausência," e "boca amargosa". E ausências mais ou menos rápidas "com a memória de tudo".

Machado de Assis ele não aludia sua enfermidade e nem lhe escrevia o nome, como em sua correspondência com o amigo Mário de Alencar: "O muito trabalhar destes últimos dias tem-me trazido alguns fenômenos nervosos..." Para muitos, a censura da palavra "epilepsia" lhe fez excluí-la das edições ulteriores de Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas que deixaria escapar na edição primeira ao descrever o padecimento da personagem Virgília diante da morte do amante: “Não digo que se carpisse; não digo que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica.”, que fora noutra edição substituída por: “Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa.”

Encontramos conexões da saúde de Machado com sua obra. O conto "Verba Testamentária" de Papéis Avulsos descreve uma crise epiléptica ([...] tinha ocasiões de cambalear; outras de escorrer-lhe pelo canto da boca um fio quase imperceptível de espuma.), enquanto que em Quincas Borba um dos personagens percebe que andava à toa, vertiginoso (Deu por si na Praça da Constituição.) Memórias Póstumas de Brás Cubas conta em uma de suas linhas um problema nervoso em que o narrador vai andando conforme a perna lhe leva ([...] nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às pernas que a fizeram), enquanto que no poema Suave Mari Magno há explicitamente o uso da palavra "convulsão": Arfava, espumava e ria,/ De um riso espúrio e bufão,/ Ventre e pernas sacudia,/ Na convulsão.

Alguns biógrafos acreditam que um complexo de inferioridade acrescido de um grande introvertimento contribuíram para sua personalidade epileptóide. Entretanto, até onde se percebe, Machado não mostrou qualquer perturbação de personalidade normalmente atribuídos a alguns pacientes epilépticos, tais como: hipossexualidade, hiperreligiosidade, viscosidade, prolixidade e hipergrafia. O maior influente em sua personalidade parece ter sido relacionado ao estigma da sociedade em relação à epilepsia. Machado, na medida do possível, sempre procurou esconder seu mal da curiosidade alheia. A circunstância de viver, sob a ameaça de vir a revelar, numa crise em público, o seu mal secreto, marca o comportamento do jovem Machado: discreto, diligente, atencioso.

Guerreiro (1991) sugere que Machado apresentava epilepsia localizada sintomática com crises parciais complexas secundariamente generalizadas, de etiologia desconhecida. As crises iniciaram na infância, tiveram remissão na adolescência e recidivaram na terceira década, tornando-se mais frequentes nos últimos anos. A presença de aura, a alteração da consciência, confusão pos-ictal, a freqüência, a distribuição aleatória durante a sua vida sugerem a origem do lobo temporal das crises.

A grandiosa existência de Machado de Assis, coloridamente estampada nos livros, relembra-nos que a epilepsia não exclui uma grande inteligência ou mesmo a criatividade. Lembremos também das talentosas contribuições de Gustave Flaubert, a quem Machado rendia admiração, talvez porque reconhecesse no francês, além da "mesma solidão", "até o mesmo mal, como sabe. O outro". (Carta a Mário ,de Alencar, de 29 de agosto de 1908) .

REFERÊNCIAS:
1. Alencar, Mario de. Apud Montello J: Gigantes da Literatura Universal, Machado de Assis. Editorial Verbo, 1972. 
2. GUERREIRO, C. “MACHADO DE ASSIS'S EPILEPSY”. Estudo apresentado no 19th International Epilepsy Congress. Rio de Janeiro, 14 a 19-outubro-1991. 
 3. LOPES, J. L. “MACHADO DE ASSIS E A EPILEPSIA” (Lido em sessão da Academia Cearense de Letras no dia 18 de novembro de 1975)

***NOTA DE RESSUSCITAÇÃO***

Prezados companheiros do Arte Médica, Em agradecimento a persistência e paciência dos que aqui ficaram, mesmo com a minha ausência nos últimos meses, venho prestar alguns esclarecimentos: Sou autora e administradora deste blog desde 2010. Iniciei as publicações quando ainda cursava o quarto ano de medicina, misturando agradavelmente o que aprendia em sala de aula com o que encontrava em obras literárias. Nos últimos anos reduzi consideravelmente o número de postagens do blog, coincidindo com o período em que cursei residência médica em Psiquiatria e engajei-me intensamente estudos humanísticos focados no sofrimento humano. Por ser a única autora, acabei distanciando dos demais temas médicos. Felizmente, concluo a residência médica este mês e, com alegria, retornarei a dedicar-me ao “Arte Médica” e também a um novo esquema que, em breve, divulgarei aqui. Agradeço imensamente aos comentários, as visitas e a paciência de quem ficou. Dividir com vocês o que colho através das artes é um dos grandes prazeres que tenho. Grande abraço!! :)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Efeito Mozart: Movimentos de um Gênio

Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), nasceu em 27 de janeiro de 1756 em Salzburgo, na Áustria, e cresceu numa família influente e intelectual.

"Mozart tocando em Verona", 1770, por Saverio dalla Rosa
Reconhecida como uma criança prodígio com um ouvido musical infalível, Mozart possuía memória musical impecável e habilidade para leitura desde os três anos de idade. Aos quatro anos, poderia dizer se um instrumento estava fora de sintonia. Tornou-se um excelente compositor aos cinco anos, concluindo sua primeira sinfonia ao completar oito anos. Deixo-nos um legado de mais de 600 peças musicais.

Casa onde Mozart nasceu. Salzburgo, Áustria.
Conversar sobre um dos maiores gênios musicais de todos os tempos oferece-nos uma oportunidade não só para refletir se algum distúrbio neuropsiquiátrico seria subjacente ao seu comportamento excêntrico, mas também para examiná-lo como um homem de poder criativo excepcional, responsável por contribuições imensuráveis para o universo cultural e para a musicoterapia.

Através de relatos extraídos das correspondências do próprio artista, bem como depoimento de amigos e familiares, pesquisadores e biográficos de Mozart registraram seu comportamento peculiar, apontando-o como portador de Síndrome de Tourette (ST) e comorbidades psiquiátricas.

Outrora considerada uma curiosidade rara psiquiátrica, ST – caracterizada pela presença de tiques múltiplos, motores ou vocais, – é agora reconhecida como um distúrbio neuropsiquiátrico relativamente complexo, que afeta cerca de 2% da população geral. Os tiques ocorrem em ondas, com frequência e intensidade variáveis, pioram com o estresse, são independentes dos problemas emocionais e frequentemente associados a sintomas obsessivo-compulsivos e distúrbio de atenção e hiperatividade.

Linguagem de Mozart

Regeur e, mais tarde, Davies e Keynes, estavam entre os primeiros pesquisadores que falaram sobre a presença de ST e Transtorno ciclotímico em Mozart.

Simkin, um endocrinologista, pianista, musicólogo e historiador, investigou a vida e arte de Mozart a partir de um ponto de vista médico e discutiu extensivamente a presença de ST em Mozart. Com base na investigação meticulosa de Simkin, evidência de escatografia existe em 39 de 371 cartas (10,5 %) escritas por Mozart. Nove destas cartas foram escritas a sua irmã, Marianne. Em suas cartas, Mozart fez uso excessivo de palavras obscenas, centradas principalmente na defecação e vulgaridades anais, sugerindo a presença de coprofilia.

Também em sua obra, coprografia é encontrada na letra de sete de suas composições. Exemplo de propensão para a linguagem chula é a composição de Mozart intitulada Leck mir den Arsch fein rein ("Lamba-me o traseiro bonito e limpo"), composta quando ele tinha 26 anos de idade.

No início do século XX, o escritor austríaco Stefan Zweig, colecionador de manuscritos musicais, propôs que os materiais escatográficos de Mozart fossem interpretados sob a ótica psiquiátrica. Zweig enviou cópias das cartas a Sigmund Freud com a seguinte sugestão:

Essas nove cartas lançam uma luz psicologicamente surpreendente em sua natureza erótica, que, ainda mais [em Mozart], que em outros homens importantes, tem elementos de infantilidade e coprofilia. Este poderia ser um estudo muito interessante para um de seus alunos. 

Freud aparentemente recusou a proposta de Zweig.

Como Schroeder observa, psicobiógrafos posteriores tomaram as cartas como provas das tendências psicopatológicas de Mozart:

Nunca foi Mozart menos reconhecidamente um grande homem em sua conversa e ações, do que quando ele estava ocupado com um trabalho importante. Nesse momento, ele não só apresentava discurso estranho, mas ocasionalmente fazia brincadeiras de uma natureza que não correspondia a alguém como ele;[ .... ] Ou ele intencionalmente escondia sua tensão interna atrás de uma frivolidade superficial, por razões que não poderiam ser sondadas , ou tinha prazer em colocar em nítido contraste as ideias divinas de sua música com as explosões repentinas de chavões vulgares.
Comportamento motor

Onze de vinte e cinco pessoas que conviveram com Mozart e contribuíram para suas memórias mencionaram presença de movimentos perpétuos e maneirismos. O músico exibia caretas faciais, movimentos involuntários repetitivos das mãos e dos pés e saltos. Tais características têm sido consideradas como tiques motores e usadas para apoiar o diagnóstico de ST.

Karoline Pichler (1769-1843), membro da intelligentsia em Viena, que tinha filiação musical com Mozart e Haydn, descreveu um comportamento “inadequado” de Mozart durante uma improvisação de As Bodas de Fígaro:
"... de repente, pareceu cansado de tudo isso, levantou-se subitamente, e, no clima louco que tantas vezes se aproximou dele, começou a pular sobre mesas e cadeiras, miar feito um gato, e dar cambalhotas como um menino rebelde"
Comorbidades

Sabe-se que um dos distúrbios comportamentais que mais comumente coexistem com a ST é o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), presente em até 50% dos portadores.

Mozart expôs características que sugerem fortemente que ele nutria pensamentos obsessivos e rituais compulsivos. Por exemplo, foi obsessivamente meticuloso sobre o modo de higiene de sua esposa:
Rogo-vos a tomar o banho apenas a cada dois dias, e só por uma hora.
Além disso, costumava praticar brincadeiras inadequadas e trocadilhos, entregando-se a um comportamento infantil, sem apreciação das consequências. Isto poderia ser interpretado como análogo ao déficit de controle de impulso ou transtorno de conduta, também comumente encontrados em portadores de ST.

Nannerl, irmã de Mozart, escreveu o seguinte sobre o seu irmão:
Apresentava mudanças de humor repentinas da tristeza para a euforia; se num instante era dominado por uma ideia sublime, no outro entregava-se a gracejos e ao ridículo.  
Este mesmo ser que, como um artista, alcançou o mais alto estágio de desenvolvimento até mesmo em seus primeiros anos, permaneceu até o fim de sua vida completamente infantil em todos os outros aspectos da existência. Nunca aprendeu a exercer as formas mais elementares de autocontrole.  
Wolfgang Hildesheimer, um historiador do século XX, comentou que Mozart:
Foi tão estranho para o mundo da razão como para a esfera das relações humanas. Ele foi guiado unicamente pelo objetivo do momento. 
Tais relatos sinalizam a presença de labilidade emocional e impulsividade.

Para investigadores, alguns elementos de comportamento de Mozart podem indicar a presença de déficit de atenção e hiperatividade. Por exemplo, enquanto compunha, simultaneamente envolvia-se em outras atividades, como caminhar, pular ou jogar billiard.

 “Fora da música, ele foi uma nulidade.” (Pichler) 

 Há como cindir o gênio do frívolo?

Contrastando com essas afirmações, permaneceu inabalada a confiança de Mozart em suas próprias capacidades musicais, exultando com elas, e não há traço em parte alguma de sua correspondência, nem nas memórias de seus contemporâneos, que acusem qualquer dúvida ou insegurança de sua parte neste aspecto.

Paradoxalmente aos relatos sobre o estado de saúde mental de Mozart, sua música, como a Sonata para dois pianos, em Ré Maior, K.448, é descrita como tendo um "Efeito Mozart", que inclui melhoria no QI e desempenho espacial-temporal e em partes do cerebelo dentro de alguns minutos nos ouvintes.



Pesquisas sugerem que a música de Mozart tem um efeito terapêutico em pacientes epilépticos, possivelmente por aumentar o fluxo de sangue para as áreas temporais, giro pré-frontal dorsolateral, occipital e cerebelo.

Há grande destaque, também, para as propriedades medicativas das composições: Concertos para violino nºs 3, em Sol Maior K.216 e nº 4, em Ré Maior K.218.

Embora haja inúmeros artigos atribuindo a personalidade e comportamento peculiar de Mozart como parte de um espectro de transtornos neuropsiquiátricos, a evidência para qualquer um desses distúrbios é inexistente.

A existência singular de Mozart mostra que sua extraordinária criatividade foi beneficamente carregada por sua distintiva cognição e função neurológica.

Sua música parece ter absorvido a totalidade magnânima que Mozart carregara em si, eternizando a grandiosidade de um gênio.

Consistentemente, o que sabemos é que, a despeito de seu criticado comportamento, seu trabalho criativo alcançou, tal como aspirou, um efeito divino: sua música é capaz de ir aos recônditos do ser, aplaca dores, humaniza, promove a cura, acalenta, harmoniza e potencializa as funções intelectuais dos ouvintes.

REFERÊNCIAS: 

1. Ashoori, A. Jankovic, J. ” Mozart's movements and behaviour: a case of Tourette's syndrome?” J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2007. 
2. Bodner M, Muftuler L T, Nalcioglu O. et al FMRI study relevant to the Mozart effect: brain areas involved in spatial–temporal reasoning. Neurology 2001 
3. Hounie, A. Petribú, K. “Síndrome de Tourette - revisão bibliográfica e relato de casos”. Rev Bras Psiquiatr, 1999. 
4. Simkin B. Mozart's scatological disorder. BMJ 1992. 5. Wolfgang Amadeus Mozart. Wikipédia

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Cardiopatia Congênita em Autorretratos de Dick Ket

O pintor holandês Dick Ket (1902-1940), produziu apaixonadamente cerca de 140 obras, incluindo 40 autorretratos.

Portador de um defeito cardíaco congênito (possivelmente tetralogia de Fallot com dextrocardia), era impedido de sair na tentativa de restringir esforços e viveu isoladamente a maior parte de sua vida, atuando numa obra singular.

Apreciador da arte moderna, concentrou-se em produzir naturezas mortas e autorretratos. Conhecia o trabalho de colegas apenas por reproduções.

Sua saúde deteriorou nas últimas décadas, levando-o a morte prematura em 1940, aos 37 anos.

Em seus autorretratos, notam-se sinais da evolução progressiva da cardiopatia, tais como cianose, pletora e baqueteamento digital:

Dick Ket. Autorretrato. 1932.

Dick Ket. Autorretrato. 1932
Dick Ket. Autorretrato. 1939.

Numa pintura realizada no início da carreira, apesar da ausência de sinais que sugerem deterioração física, evidencia-se turgencia jugular, sinal da síndrome em fase inicial:

Dick Ket. Autorretrato. 1930.

REFERÊNCIAS:

1. Emery AEH. Medicine, genetics and art. Proc R Coll Physicians Edinb 1991;21:33-42. 
2. Emery AEH, Emery M. Medicine and art: diagnosis and medical treatment. Proc R Coll Physicians Edinb 1992;22:519-42. 
3. Emery AEH, Emery M. Medicine and art. In: Walton JN, Lock S. eds. New Oxford medical companion. Oxford: Oxford University Press (in press).

domingo, 18 de maio de 2014

Cardiopatia Reumática em Conto de Guimarães Rosa

Uma apetitosa aula de insuficiência cardíaca congestiva conseguinte a cardiopatia adquirida da febre reumática é encontrada no conto O Duelo (Sagarana), de Guimarães Rosa.



A cardiopatia reumática crônica (CRC) é uma complicação da faringoamigdalite causada pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A e decorre de resposta imune tardia a esta infecção em populações geneticamente predispostas. A febre reumática afeta especialmente crianças e adultos jovens. O acometimento cardíaco é caracterizado pela pancardite, entretanto são as lesões valvares as responsáveis pela síndrome e prognóstico.
[...] porque o Cassiano Gomes não dera baixa da polícia à toa, e sim excluído pela junta médica; e, apesar do seu garboso aspecto, não lhe prestava para muito o coração.

Não é à toa, porém, que um cavaleiro, excluído das armas por causa de más válvulas e maus orifícios cardíacos, se extenua em raids tão penosos, na trilha da guerra sem perdão.


O personagem roseano Cassiano Gomes, dispensado do exército devido às "más válvulas e maus orifícios cardíacos", teria o coração acometido pela cardiopatia reumática, evoluindo mais tarde para um quadro de insuficiência cardíaca congestiva:
Pois foi lá que Cassiano Gomes teve o seu desarranjo, com a insuficiência mitral em franca descompensação. Desceram-no do cavalo e deram-lhe hospitalidade.


A lesão mitral descrita por Rosa corrobora com o diagnóstico de febre reumática, sendo esta valva a mais frequentemente acometida na doença.

Cassiano, perseguindo por vigança Turíbio Todo durante longas cavalgadas, manifesta o edema em membros inferiores e a dispneia aos esforços característica da insuficiência cardíaca congestiva:
Cassiano sentiu que, agora, ao menor esforço, nele montava a canseira. E, do meio dia para a tarde, não podia mais ficar calçado, porque os tornozelos começavam a inchar.
Foi ao boticário e pediu franqueza. – Franqueza mesmo, mesmo, seu Cassiano? O senhor... Bem, se isso incha de tarde e não incha nos olhos, mas só nas pernas, é mau sinal... - Pra morrer logo? - Assim sem ser ligeiro... Lá pra o São-João do ano que vem...Mas já indo empiorando um pouco, aí por volta do Natal.

Mas não pode dar mais de três passos: cambaleou e teve de sentar-se à porta do cafua; e foi ali sentado que passou a passar todo o tempo, dia pós dia, com o peito encostado nos joelhos e, por via dos hábitos, com a winchester transversalmente no colo e a parabellum ao alcance da mão.


A posição “tronco elevado” assumida pelo personagem, evitando a horizontalização do corpo, aliviaria a dispneia pela melhora da capacidade respiratória. O edema, devido a gravidade, fica mais pronunciado nos pés, acometendo menos a face.
E ele foi para um Jirau, com a barriga de hidrópico e a respiração difícil de um cachorro veadeiro que volta da caça. [...] Em volta dos lábios laivos azulados, e a doença lhe esgarçava o coração.


A cianose (“lábios lavios azulados”, a dispneia em repouso (“respiração difícil de um cachorro veadeiro”) bem como a ascite ("barriga de um hidrópico") faz parte do quadro terminal da insuficiência cardíaca.

A poética descrição clínica da doença exala a essência médica no escritor Guimarães Rosa que, mesmo após abandonar o exercício da medicina, conserva a sensibilidade diagnóstica tão viva quanto suas personagens.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Demência: Autorretratos de William Utermohlen

William (Bill) Utermohlen nasceu em 1933 numa família de imigrantes alemães no sul da Filadélfia.

Integrou a Academia de Belas Artes da Pensilvânia no periodo entre 1951-1957.
Viveu a maior parte da carreira artística em Londres, onde residia com sua esposa, Patricia, uma historiadora de arte.

Conversação. 1990. Óleo sobre tela.
Ironicamente, o acervo de Bill retrata preferencialmente comunicações interpessoais – anos mais tarde prejudicada no artista devido ao declínio das habilidades comunicativas provocado pela doença de Alzheimer – , sendo poderosamente sensoriais, com cores intensas e arranjos espaciais envolventes, amplificado as interações dos membros da composição.

Ao receber o diagnostico de doença de Alzheimer, em 1995, seu estilo mudou dramaticamente. Pinceladas mais espessas refletem um sentimento urgente e expressionista.

Bill inicia uma série de trabalhos expressando não mais a conexões entre seres, mas uma variedade de estados espontâneos de espírito, incluindo tristeza, raiva e resignação.

A obra de Bill oferece uma narrativa visual única da experiência subjetiva de um paciente que sofre de demência. O artista pinta as mudanças graduais que vivencia – alterações que não consegue mais transmitir em palavras.

Se por um lado o declínio cognitivo engessa seus gestos e linguagem limitando o contato externo material, por outro, a liberdade do espírito criativo interno amplia a proximidade humana através das emoções expressas em seus autorretratos:

Blue Skies. 1995.
Em Blue Skies (1995) o artista testemunha o anúncio de sua doença e seu declínio iminente . O diagnóstico desta morte psíquica, que ocorre antes da morte real, produz um medo profundo. O tempo parou. O exterior é vazio. Um buraco oblíquo encontra-se acima pronto para sugá-lo. Para não ser devorado pela escuridão, ele paira sobre a mesa como um náufrago em sua jangada, como um pintor amarrado em sua tela.

Broken Figure. 1996. 

O diagnóstico é claro. Os médicos agora estão testando a memória de Bill. Eles perguntaram-lhe se ele ainda sabe o dia, o mês, o ano, e o lugar em que está. Questionam se ele ainda pode memorizar uma lista de palavras, completar uma subtração simples, nomear objetos comuns, ou realizar a cópia de simples formas geométricas. A humilhação de não conseguir responder a estas perguntas simples quebra sua auto-confiança. Em breve, ele sente que não será capaz de responder quaisquer perguntas. Toda a esperança de uma cura ou mesmo uma estabilização da sua condição está perdida. Confrontado por seu próprio declínio, a queda em sua auto-estima é vertiginosa. O retrato mostra um “eu” fragmentado.

Autorretrato - 1996
Este autorretrato fixa uma imagem de si mesmo. Bill compartilha a experiência de viver com a doença de Alzheimer testemunhando, através de seu trabalho, sua verdade pungente - ele espreita o exterior atrás das grades da prisão.

Duplo Autorretrato. 1996

Sabendo agora que a fonte de sua doença é sua cabeça, ele se concentra no contorno de seu crânio, delineando duas vezes na cabeça que surge à esquerda. Seu olhar transparece carga e resignação; à direita, sua expressão é brava e machucada.

Máscara. 1996.

A pintura acima reflete a transição de ser para não-ser. O autor registra o instante em qual o “eu” se afasta do si mesmo, se derrete, deixando apenas silêncio para trás.

Autorretrato. 1997


Neste auto-retrato, a serra vertical, como uma lâmina de guilhotina, simboliza a aproximação de uma morte prefigurada. A divisão entre o que ele sente, o que ele gostaria de fazer ou dizer, e o que ele é realmente capaz de fazer é maior a cada dia. É um encontro com o “eu” desconhecido. Suas possibilidades de expressão já não são suficientes para expressar a natureza extrema de sua experiência.

Autorretrato (verde). 1997 

Dois anos após o diagnóstico, os autorretratos são distintamente diferentes. As formas são turvas. Motivação, atenção, memória e reconhecimento visual estão agora desorganizados e tornam as tarefas desajeitadas. Emoções são precisamente expressas – nota-se o sentimento de tristeza, ansiedade, resignação e impotência.

Autorretrato. 1998; Autorretrato, 1955.

Sozinho no estúdio, Bill quer experimentar novamente os velhos movimentos da pintura. Desta vez, ele inspira-se num antigo autorretrato, quando ele tinha 22 anos de idade. O autorretrato de 1998 mostra a mudança na arquitetura de sua psique. Sua cabeça está totalmente enquadrada pelo retângulo de seu cavalete. As linhas vermelhas e amarelas estreitam a constrição de sua cabeça e servem para desligar este último retrato de si mesmo.

Autorretrato Apagado, 1999. Cabeça, 2000. 

Cinco anos após o dianóstico, o artista pinta os últimos autorretratos. Neles surge a tentativa de estruturação de uma cabeça desmontada. O artista tenta evocar uma imagem primordial de si mesmo, mas o que emerge é algo estranho e ameaçador.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Candido Portinari – Intoxicado pela Arte

Candido Torquiato Portinari, prestigiado artista plástico brasileiro, produziu quase cinco mil obras de pequenos esboços e pinturas de proporções padrão, como O Lavrador de Café, até gigantescos murais, como os painéis Guerra e Paz, presenteados à sede da ONU em Nova York em 1956.
Painéis: "Guerra e Paz". Candido Portinari (1903-1962). Nova Iorque.
Portinari foi diagnosticado com saturnismo devido a uma internação por hemorragia digestiva nove anos antes de sua morte.

Em 1953, Dr. Xavier, seu médico, proibiu-lhe o uso de pigmentos ricos em chumbo, como o amarelo de Nápoles e o branco de prata: Pintura é minha vida. Estou proibido de viver.. , disse Portinari em resposta à recomendação. Seu médico aconselhou-o então a escrever. Portinari passou a escrever versos, ilustrando-os com alguns desenhos e lamentando-se de que seria um ótimo poeta, caso fosse tão talentoso com a caneta, como era com os pincéis.

Recuperando-se da intoxicação, experimentou outras técnicas durante um período. Em seguida, contra as advertências médicas, retomou as pinturas com as tintas tóxicas durante seus últimos dois anos de vida, evoluindo com dores abdominais e hemorragias digestivas, além de prostração e caquexia.

Em 1962 o Palácio Real de Milão convida Portinari para uma exposição com 200 telas. Trabalhando freneticamente, o envenenamento de Portinari toma proporções fatais. Em fevereiro do mesmo ano, Cândido Portinari deixa-nos intoxicado pela arte que o consagrou.