quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Oftalmopatia de Graves em "O Juízo Final" de Michelangelo Buonarroti

O Juízo Final é um afresco pintado na parede do altar da Capela Sistina, onde Michelangelo Buonarroti (1537-1541) representa o julgamento final sob inspiração da narrativa bíblica.

Juízo Final. Michelangelo Buonarroti(1537-1541). 1370 cm × 1200 cm. Capela Sistina, Vaticano.
O afresco retrata as almas dos mortos subindo para enfrentar a ira de Deus. Cristo, parte central da obra, encontra-se ao lado de Maria sobre uma nuvem e age como Juiz dos eleitos que sobem ao céu à sua direita, enquanto os condenados, sob sua esquerda, aguardam Caronte e Minos.

Uma figura feminina, localizada à direita de Cristo, com um turbante na cabeça, tem uma aparência que sugere a presença de exoftalmia:


A maioria das características clássicas da oftalmopatia associada à tireoide podem ser nela reconhecidas: hiperemia conjuntival e palpebral, quemose, edema periorbital e marcante proptose. Após a última restauração do Juízo Final na década de noventa, tornou-se visível também a presença de uma pequena hemorragia no canto inferior do olho direito.

Close de uma mulher (possivelmente Santa Monica) com sinais de oftalmopatia associada à hipertireoidismo.
A oftalmopatia associada à tireoide (OAT) é uma doença auto-imune, mais freqüente no sexo feminino, que afeta os músculos extra-oculares e o tecido conjuntivo orbital, caracterizando-se por um infiltrado inflamatório difuso da órbita, bilateral e assimétrico, condicionando exoftalmia, hiperemia e edema palpebral. Surge associada em 90 % dos casos a Doença de Graves com hipertiroidismo.

É possível que a abençoada mulher com proptose ocular seja Santa Mônica, mãe de Santo Agostinho, que por muitas vezes fora retratada nas artes com um turbante na cabeça e com as características faciais e o tom de pele sugerindo origem norte-africana.

Sabe-se que a exoftalmia é uma condição conhecida desde os antigos gregos. Aristóteles e Xenofonte a descreveu ainda no século V a.C. Há relatos de que no século X escritores bizantinos já estavam cientes de uma combinação de bócio e exoftalmia. A partir da análise desta obra é provável supor que também Michelangelo estava retratando uma mulher com exoftalmia 300 anos antes da primeira descrição da  tireoide associada à oftalmopatia em 1835 por Robert Graves.

REFERÊNCIAS:
1.BUENO, MA. "Oftalmopatia na doença de Graves: revisão da literaturae correção de deformidade iatrogênica". Rev. Bras. Cir. Plást. 2008; 23(3): 220-5.
2.METELLO, J; GONZALEZ,M."OFTALMOPATIA ASSOCIADA À TIROIDE".Acta Méd Port 2004; 17: 329-334.
3.Pozzilli P (2003) Blessed with exophthalmos in Michelangelo’s Last judgement. Q J Med 96(9): 688–90.


domingo, 16 de outubro de 2011

Distrofia Miotônica em "Adoração dos Reis Magos" (1564), de Pieter Bruegel

Em Adoração dos Reis Magos (1564), de Pieter Bruegel (1525-1569) , o modelo utilizado para representação de Melchior (rei mago que presenteia Jesus com o incenso), apresenta paralisia facial bilateral.
Entrando na casa, viram o menino Jesus, com Maria sua mãe. Prostando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra.(Mt 2, 11).
  Adoração dos Reis Magos (1564). Pieter Bruegel. Galeria Nacional, Londres (Inglaterra).
É notável a atrofia muscular facial, além de outros recursos típicos condizentes com o diagnóstico de distrofia miotônica: rosto comprido, ptose parcial bilateral e calvice frontal prematura.

Close evidenciando a face característica de distrofia miotônica.
A distrofia miotônica (DM), também conhecida como doença de Steinert, tem prevalência estimada em 1 para 8.000 indivíduos. É uma doença com comprometimento multissistêmico, transmitida por herança autossômica dominante e caracterizada pela diminuição progressiva da massa muscular, principalmente na face e em membros superiores.O mecanismo molecular da doença envolve a expansão do trinucleotídeo CTG localizada no cromossomo 19q13.3.

Alternativamente, a sutil assimetria observada na face do rei poderia ser resultado de uma paralisia do nervo facial, configurando um quadro de paralisia de Bell.

Provavelmente, Bruegel – artista que nutria declarado desprezo pelo idealismo – encontrou a figura acima retratada enquanto buscava faces distintas entre os camponeses para posar pra suas obras.


REFERÊNCIAS:
1.Nishioka, SA; “Distrofia Miotônica e Cardiopatia: Comportamento dos Eventos Arrítmicos e dos Distúrbios da Condução”. Arquivos Brasileiros de Cardiologia - Volume 84, Nº 4, Abril 2005.
2.SALTER, V. “Medical conditions in works of art”. British Journal of Hospital Medicine, February 2008, Vol 69, No 2.
3.SMITH,M. “Neurology in the National Gallery”. J R Soc Med 1999;92:649-652.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A história bíblica de Sansão: um exemplo de síndrome de Guillain-Barré.

Sansão, de acordo com as escrituras sagradas, foi um homem nazireu, filho de Manoá, que liderou os israelitas contra os filisteus. Pertencia a tribo de Dã e foi o décimo terceiro juiz de Israel.

A Bíblia relata que Sansão foi juiz do povo de Israel durante vinte anos, aproximadamente de 1177 a.C. a 1157 a.C., sendo o sucessor de Abdon e o antecessor de Eli.

Tendo tomado o voto de nazireu ao nascimento, Sansão fora consagrado a Deus. Como parte desse voto, devia abster-se de pecar e cortar os cabelos. Assim cumprido, Sansão se distinguiria mais tarde como portador de uma força sobre-humana concedida pelo Espírito Santo.

A belíssima pintura de Peter Paul Rubens (1577-1640) mostra a traição de Sansão por Dalila, sua amante filistéia. Sansão apaixonou-se por ela, que o traiu entregando-o aos chefes de sua nação.

Sansão e Dalila (1609-1610). Peter Rubens. Óleo sobre madeira (185 cm x 205 cm). National Gallery (Londres).
Então, ela o fez dormir sobre os seus joelhos, e chamou a um homem, e rapou-lhe as sete tranças do cabelo de sua cabeça; e começou a afligi-lo, e retirou-se dele a sua força. (Juízes 16:19). 

Dalila fora subordinada pelos filisteus que desejavam capturar Sansão. Em troca de dinheiro, ela o seduziu a fim de extrair-lhe o segredo de sua força; ele então confessou que a força era advinda do Espírito Santo, e que persistia pelo fato dele nunca ter raspado os cabelos. Enquanto Sansão dormia em seu colo, Dalila mandou cortar seus cabelos. Submisso e fraco, ele foi aprisionado pelos guardas que o esperavam na porta, seus olhos foram arrancados e ele fora escravizado.

Detalhes pictóricos:
1.Rubens pintou atrás de Dalila uma estátua da Vênus (deusa do amor) e do seu filho, Cupido, representando a causa do destino trágico de Sansão.
2.O filisteu que corta o cabelo de Sansão tem as mãos cruzadas, simbolizando a mentira e o engano.
3.A velha em pé atrás de Dalila, fornecendo mais luz para a cena, não aparece na narrativa bíblica. Acredita-se que seja uma alcoviteira, mas o perfil adjacente ao de Dalila parece simbolizar o passado da velha e/ou o futuro de Dalila.
Mais tarde, tanto os cabelos quanto a força de Sansão foram restaurados. Durante um ritual pagão de sacrifício, os filisteus se reuniram para celebrar o deus Dagom. Como era costume, os prisioneiros desfilavam no templo para entreter a multidão escarnecedora. Provido novamente de sua força, Sansão preparou-se entre os dois pilares de sustentação central do templo e os empurrou, enterrando cerca de mil filisteus.

A lendária história de Sansão pode ser analisada sob a ótica neurológica; o autor que a escreveu no século XI a.C. provavelmente baseou-se em fatos reais. Como se explica que um homem anteriormente saudável desenvolva uma fraqueza muscular súbita, mas reversível?

A Síndrome de Guillain-Barré (SGB) explica tanto a fraqueza aguda e a perda de cabelos quanto a posterior recuperação do quadro.

A SGB é a maior causa de paralisia flácida generalizada no mundo, sendo uma doença de caráter autoimune que acomete primordialmente a mielina da porção proximal dos nervos periféricos de forma aguda/subaguda. Fraqueza progressiva é o sinal mais perceptível dos pacientes. Passada a fase da progressão, a doença entra num platô por vários dias ou semanas com subseqüente recuperação gradual da função motora. A maioria das pessoas acometidas se recuperam em três meses após iniciados os sintomas.

Como uma desordem com componente auto-imune, a SGB também pode ocasionar a perda de cabelos. O corte de cabelos sob as ordens de Dalila seria apenas uma expressão simbólica do pecado de Sansão ao apaixonar-se por uma mulher “impura” e a ela entregar seus segredos. A transgressão da lei divina causaria a quebra do voto de narizeu (representada pela falta de cabelos) e, como punição, a não concessão de forças pelo Espírito Santo.


REFERÊNCIAS:
1.Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas. “Síndrome de Guillain-Barré”. Portaria SAS/MS no 497, de 23 de dezembro de 2009.
2. SALTER, V. “Medical conditions in works of art”. British Journal of Hospital Medicine, February 2008, Vol 69, No 2.
3. SMITH,M. “Neurology in the National Gallery”. J R Soc Med 1999;92:649-652.

domingo, 9 de outubro de 2011

Ceratose seborréica em pintura de Francisco Goya

A pintura em que Francisco Goya y Lucientes (1746 -1828) registra a família real espanhola no ano de 1800, mostra uma lesão elementar na região frontal direita da Infanta Maria Josefa (1744-1801), irmã de Carlos IV (1748-1819).



Família de Carlos IV, 1800-1, de Francisco Goya y Lucientes (1746-1828). Museu do Prado, Madri.
Maria Josefa é a quarta figura que aparece da esquerda para direita. Esta manifestação dermatológica pigmentada é sugestiva de ceratose seborréica, merecendo o diagnóstico diferencial com lentigo.


Destaque para lesão sugestiva de ceratose seborréica ou lentigo.
A lesão dermatológica representaria apenas um artefato de pintura. Entretanto, este elemento pictórico aparece também num esboço produzido anteriormente por Goya:

Infanta Dona Maria Josefa (1800-1).Francisco Goya y Lucientes, Museu do Prado, Madri.

REFERÊNCIAS:
1.Souza,E.M. Vallarelli, A.F; “dermatologia nas artes”. An Bras Dermatol. 2009;84(5):556-8

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Fisiologia do coito: análise do desenho de Leonardo da Vinci

O objetivo mais alto do artista consiste em exprimir na fisionomia e nos movimentos do corpo as paixões da alma. (Leonardo da Vinci).
Os desenhos anatômicos de Leonardo da Vinci (1452-1519) foram, ao longo dos séculos, imensamente admirados por artistas, médicos e historiadores. A maioria deles são datados no período entre 1487 e 1513. Somente a partir de 1503 Leonardo viveria sua fase mais ativa de pesquisa anatômica, adquirindo um conhecimento mais exato da anatômia humana através da dissecção de cadáveres. Este fato justifica as imperfeições anatômicas encontradas nos desenhos arquitetados durante a primeira metade deste período.

Referência específica é aqui feita para os desenhos que ilustram a anatomia masculina e feminina no ato do coito. Suas representações sobre o intercurso sexual são uma tentativa de esclarecer e ilustrar a fisiologia apresentada nos livros didáticos do seu tempo. De suas posses literárias mais consultadas, destacam-se os textos de Mondino di Luzzi e Avicena. Ao ler estes livros e outros, Leonardo acessou às ideias de Hipócrates, Aristóteles, Platão e Galeno.

Um breve olhar para o personagem masculino na gravura abaixo revela o incrível "encanamento" interno projetado por Leonardo para descrever a fisiologia aristotélica sobre a reprodução humana:

"O Coito" (1492)
A ilustração evidencia dois canais no pênis, um mais baixo, ligado ao trato urogenital através da uretra, e um canal superior, que passa para a medula espinhal por meio de três vasos.

Detalhe evidenciando os dois canais no pênis.
Segundo a antiga filosofia grega, a "essência" de um bebê seria fornecida por uma "semente universal" pertencente ao macho. Este ingrediente procriador derivaria de um “espírito animal” – material fisiológico fabricado a partir de sangue arterial na base do cérebro e transferido para todas os partes do corpo através dos nervos.

O sêmen desceria a partir do cérebro através de um canal que pode ser visto na coluna vertebral do homem. Isso explica a conexão desenhada por Leonardo entre a coluna e o pênis.

Aristóteles acreditava que os testículos não desempenhavam nenhum papel na procriação, e que apenas forneciam um líquido para lubrificar a vagina durante a relação sexual. Leonardo, que discordou deste conceito, desenhou um grande vaso sanguíneo transferindo a “semente” para o testículo, ilustrando assim o ponto de vista galênico de que os testículos fabricam espermatozóides a partir do sangue. 

A ausência de ovários na figura de sexo feminino é justificada pela crença aristotélica de que os ovários não possuem papel reprodutivo. A fêmea serviria apenas como o solo em que a semente masculina é plantada. Leonardo, portanto, mesclou nesta ilustração os argumentos galênicos e aristotélicos para fisiologia do coito.

Interessante observar a representação dos dois nervos supostamente encarregados de provocar a ereção e a ejaculação: um deles, produto da fantasia de Leonardo, provém diretamente do coração, – ideia não tão absurda se considerarmos o pensamento da época de que tal órgão era o responsável pelo amor. O outro nervo tem suas raízes à nível sacral, o que, evidentemente, esta mais de acordo com o conhecimento atual da fisiologia do coito.

Um curioso detalhe pictórico é a adição de um vaso sanguíneo ligando o fundo do útero à mama. De acordo com o pensamento medieval, este vaso hipotético levaria o sangue menstrual suprimido para as glândulas mamárias, causando assim o aumento das mamas e a lactogênese. Não há como negar a genial associação do pintor, que vincula ambos os órgãos por meio de uma conexão direta, séculos antes de Ferguson descrever o reflexo que leva o seu nome.

Não há dúvida de que o gênio renascentista, pai das grandiosas inovações artísticas da época, era excepcionalmente atento e criativo também nas suas engenhosas representações anatômicas.


REFERÊNCIAS:
1.Coleção Os Pensadores, Aristóteles, Abril Cultural, São Paulo, 1.ª edição, vol.II, agosto 1973.
2.MORRIS, A. G.“On the sexual intercourse drawings of Leonardo da Vinci”.SAMT DEEL69 12APRIL1986.
3..TOPOLANSKI, R. “OBRA EL ARTE Y LA MEDICINA.” CAP 7: La obstetrícia y la ginecologia.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Afecções dematológicas em autorretrato de Rembrandt (1659)

Condições dermatológicas comuns, tais como verrugas e nevos, são regularmente observadas em pinturas. Uma análise deste autorretrato pintado em 1659 por Rembrandt van Rijn (1606-1669) requer atenção meticulosa aos detalhes da reprodução exata de sua pele.

Autorretrato, 1659, Rembrandt Harmenszoon van Rijn. Oleo sobre tela, 84,5 x 66 cm, Galeria Nacional de Arte, Washington, DC, USA

De uma perspectiva dermatológica, é notável a representação de dermatocálaze, xantelasma, telangiectagias e rosácea associada a rinofima:


Hankey (1998) propôs que esta constelação de sinais, juntamente com o edema periorbital, a escassez de cabelos e sobrancelha, a palidez e a obesidade, poderia significar um diagnóstico subjacente de hipotireoidismo com secundária hipercolesterolemia.

Ao longo da trajetória artística, Rembrandt produziu cerca de cinquenta autorretratos, tecendo um catálogo psicológico de seus humores e das várias fases de sua vida. As obras formam uma biografia única e íntima na qual o artista se retrata com uma sinceridade extremada e despida de qualquer vaidade, refletindo sua jornada pelo autoconhecimento.


REFERÊNCIAS:
SALTER, V. “Medical conditions in works of art”. British Journal of Hospital Medicine, February 2008, Vol 69, No 2.

sábado, 1 de outubro de 2011

A romântica tuberculose de Fantine / "Os Miseráveis", de Victor Hugo

Em meados do século XVIII, um em cada quatro indivíduos era diagnosticado com tuberculose. A epidemia atingiu seu apogeu no século XIX, época em que subsistia a visão de que a tuberculose era a doença romântica do século. A moléstia, desconhecida e sem tratamento, “consumia pelo peito”, tirando a vida de homens que estavam no auge da entusiástica juventude.

Por acometer famosos músicos e poetas, acreditava-se que a doença atingia somente seres sensíveis, frágeis e “movidos pela paixão”.

Para os românticos, a tuberculose trazia certa dose de beleza e charme: a vítima tornava-se pálida, mais magra, os olhos encovados e brilhantes exalavam paixão, e os gestos graciosos e frágeis refletiam a fraqueza e sensibilidade do ser humano.

Neste cenário inspirativo, nasceram inúmeras personagens literárias portadoras da doença; uma delas, Fantine, faz parte de uma importante obra francesa da época. Os Miseráveis é um romance social publicado em 1862, de autoria do escritor francês Victor Hugo, que narra o destino lastimável de cinco principais personagens: Jean Valjean, Fantine, Cosette, Marius e Javert. A história se passa na França do século dezenove, no período delimitado pela Batalha de Waterloo (1815) e os motins de junho de 1962.

A trágica saga de Fantine compõe o primeiro livro do romance. Nascida em Montreuil-sur-Mer, a bela jovem apaixona-se por Félix Tholomyes, estudante parisiense que a abandona após engravidá-la. Fantine fica desamparada, com sua filha Cosette, em Paris. Sem dinheiro, vê-se obrigada a deixar a criança sob os cuidados dos Thenardiers, donos de uma estalagem em Montfermeil, e volta pra sua cidade natal a fim de conseguir trabalho. Fantine é empregada numa fábrica e envia mensalmente seu salário para as despesas da menina. Os Thernardiers passam a enviar com freqüência cartas fraudulentas objetivando extorquir mais dinheiro de Fantine.

Descoberta mãe solteira por uma funcionária da fábrica, Fantine é demitida. Para conseguir manter as exigências financeiras da família que cuida da filha, vende seus cabelos a um cabeleireiro e os dentes a um dentista. Mais tarde, torna-se prostituta para pagar um tratamento medicamentoso para Cosette, supostamente doente. A menina, bastante saudável na realidade, é explorada como escrava na pousada em que vive.

Os sintomas da tuberculose surgem logo após a demissão de Fantine.
Saía-lhe a respiração do peito com esse sussurrar trágico privativo das moléstias daquela espécie, que parte o coração à pobre mãe que tem um filho condenado àquele gênero de morte, quando de noite o vela à cabeceira do leito. Todavia, aquela respiração penosa mal perturbava a expressão de serenidade inefável que se divisava em seu rosto, transfigurando-a no seu dormir. Fantine tinha as faces vermelhas, e o que era palidez convertera-se em brancura. As loiras e compridas pestanas, única beleza que lhe ficara da sua virgindade e juventude, palpitavam-lhe, ainda que fechadas e abaixadas, e o corpo tremia-lhe, agitado por não sei que sacudir de asas prestes a entreabrirem-se e a arrebatá-la, cujos estremecimentos se sentiam, mas não se viam. Ao vê-la daquele modo, ninguém suporia que estava ali uma doente sem esperança de salvação. Mais parecia uma pessoa que está para voar do que pra morrer.
No ínicio, a doença lhe provoca apenas uma tosse seca, mas mais tarde progride, manifestando-se com febre, sudorese, hemoptise e cianose, culminando na morte da personagem.

Cabe aqui comentar que a descrição detalhada para diagnóstico clínico da tuberculose foi feita pela primeira vez apenas em 1819, pelo grande clínico francês René Laennec (inventor do estetoscópio), que mais tarde morreria pela própria doença. Por suas contribuições pneumológicas, Laennec, – um dos nomes mais importantes da história da medicina – , atraiu a admiração de Victor Hugo, que estampou seu nome de forma elogiosa nas páginas de Os Miseráveis:
Acabamos de dizer que Fantine não se restabelecia, ao contrário, parecia agravar-se o seu estado de semana a semana. [...] Começavam então a seguir as belíssimas indicações de Laennec no estudo e tratamento das doenças do peito.
Em 1882 o cientista alemão Robert Koch isolou o bacilo que causa a doença, o Mycobacterium tuberculosis, mas somente em 1943 Selman A. Waksman descobriria a estreptomicina, o primeiro antibiótico usado contra a tuberculose.

A luta de Fantine para cuidar da filha é diretamente proporcional à gravidade de sua doença. Victor Hugo associa simbolicamente a tuberculose à maternidade.
O excesso do trabalho veio a fatigar Fantine, de modo que a tossezinha seca que tinha aumentou.
O esforço físico necessário para manter Cosette é paralelo a fraqueza decorrente da doença, de modo que por ambos Fantine “perde o fôlego”, caindo em completa desgraça.
Quanto mais fundo ela descia, quanto mais sombrio se tornava tudo em roda dela, mais aquele doce anjinho lhe irradiava de luz o fundo da alma. A tosse, porém, não a largava, e as costas às vezes ficavam banhadas em suor.
Hugo enfatiza sutilmente o valor da maternidade, embutindo a idéia de que Fantine abre mão de sua própria vida para salvar a da filha.





REFERÊNCIAS:
HUGO, Victor, Os miseráveis (Volume I: Fantine).Lisboa: Editorial Minerva, 1962.