sexta-feira, 13 de maio de 2011

Esclerodermia numa Pintura de 1680

A pintura Arcanjo Rafael e Bispo Francisco Domonte, por Murillo (1618 - 1682), está exposta no Museu Pushkin de Belas Artes, em Moscou.
Archangel Raphael and Bishop Francisco Domonte,1680. Bartolomé Murillo. Pushkin Museum, Moscow.

O retrato do bispo Francisco Domonte, no canto inferior direito do quadro, mostra várias características de esclerodermia, sendo a mais marcante as numerosas telangiectasias na face, lábios e mãos, bem como a tensão da pele ao redor do nariz, nas bochechas e na testa. Nas mãos do bispo, as pregas cutâneas sobre as articulações não são visíveis e os dedos parecem globalmente edemaciados.

O termo esclerodermia faz menção a um endurecimento fibrótico característico da pele. A esclerose sistêmica (forma sistêmica da esclerodermia) é uma doença rara, que afeta tanto a pele quanto os órgãos internos, e se origina a partir de uma superprodução e disposição de colágeno, caracterizando-se basicamente pela fibrose das estruturas envolvidas.

As manifestações cutâneas são um marco da esclerose sistêmica. Os dedos contêm alterações características: estão edemaciados e a pele vai se tornando espessa, firmemente ligada ao tecido subcutâneo subjacente. As pregas cutâneas normais sobre as articulações vão desaparecendo. Essas alterações fibróticas clássicas nos dedos são conhecidas como esclerodactilia, que embora isoladamente não sejam patognomônica de esclerodermia, quando as alterações fibróticas tornam-se próximas das articulações metacarpofalangeanas (ou seja, atingem o dorso das mãos), o diagnóstico de esclerodermia está praticamente definido.

O comprometimento da face provoca a perda das pregas cutâneas normais e da expressão facial. Os lábios apresentam-se adelgaçados, contendo pregas verticais que conferem um aspecto enrugado. O nariz torna-se afinado. É a chamada “fácies da esclerodermia”. Também o número de capilares na pele é reduzido pelo processo fibrótico, e os capilares remanescentes sofrem dilatação e proliferação, originando as telangectasias (bem evidentes na face pintada por Murillo).

Esta pintura fora confeccionada logo após a nomeação de Francisco Domonte como bispo, em 1680, tinha ele 62 anos. Sua morte ocorreu poucos meses após a conclusão da pintura, indicando que ele já estava seriamente doente. Estes dados estão em linha com o diagnóstico de esclerose sistêmica, uma doença progressiva, que pode levar a morte por fibrose pulmonar ou hipertensão renal.


REFERÊNCIAS:
Dequeker,J. Vanopdenbosch,L. “Early evidence of scleroderma”. BMJ 1995.311:1714-5.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Ferdinand Hodler: o artista que imortalizou o processo de morte de sua amada

Ferdinand Hodler (1853-1918), – pintor suíço mais conhecido do Século XIX, precursor da pintura expressionista –, conheceu no ano de 1908 Valentine Godé-Darel, que se tornou sua amante. Valentine foi diagnosticada com um câncer ginecológico em 1913, e na quase totalidade de horas Hodler ficou ao lado da cama da enferma, confortando-a. O pintor utilizou o trabalho como meio de aliviar o sofrimento que passava diante da iminente e irreversível partida da amada. Essa fase difícil resultou em uma notável série de pinturas que documentam sua desintegração.

"Antes de mais nada, Hodler é um interpretador de pessoas, que consegue mostrar a alma através da pintura do corpo melhor do que ninguém ", escreveu Paul Klee, em 1911, a respeito de seu colega artista.

Hodler imortalizou a eventual extinção de Godé-Darel, mostrando-a antes, durante e após sua doença. O artista criou uma série de pinturas que forçam o espectador a enfrentar a visão do processo de morrer. A morte de Godé-Darel ocorreu em janeiro de 1915.


Fig. 1: "A juventude". Este retrato em tons de vermelho, de 1912, mostra Gode-Darel como uma bela, jovem e saudável mulher.


Fig. 2: “A doença”. Nesta segunda pintura, Gode-Darel já é registrada como uma paciente acamada.Hodler fez esta pintura onde aparecem rosas e um relógio em junho de 1914, após Gode-Darel passar por uma segunda operação.


Fig. 3: “A exaustão”. Valentine em 2 de janeiro de 1915, com os olhos fechados e a cabeça pendida. A paciente está dormindo. Seus traços estão se tornando mais nítidos, a face aparece mais angular.


Fig 4: “A dor”. A paciente está nos últimos dias de sua vida. Em 19 de janeiro de 1915, Godé-Darel fala pela última vez com Hodler, que continua a fazer retratos dela. Este esboço horrendo mostra seu rosto atormentado, sua cabeça aparece caida profundamente na almofada.


Fig.5: “A agonia”. Retrato pintado um dia antes de sua morte. Valentine já perdeu a consciência. A boca aparece aberta. Durante esta fase, torna-se impossível se comunicar com a pessoa que está morrendo. Se durar um longo tempo, a morte geralmente vem como um alívio para a família e a equipe de cuidadores.


Fig. 6: "A última pintura da morte de Godé-Darel". Nesta, feita em 26 de janeiro de 1915, um dia após sua morte Hodler simbolicamente transforma a imagem. Ela é dominada por muitas linhas horizontais. As faixas azuis na parte superior aparecem para simbolizar o céu, transmitindo a suposta idéia de é para lá que a alma vai. A base escura dos pontos de cama indica um mundo subterrâneo. O cabeçalho e rodapé da cama não parecem ser feitos de madeira. Pelo contrário, as duas pinceladas possivelmente simbolizam as medidas de tempo, o início e o fim.


Fig. 7: “Por do sol no Lago de Genebra”, 1915. Hodler repetidamente pintou essa cena, que ilustra o local onde Godé-Darel morreu.


REFERÊNCIAS:
Pestalozzi, B. “Looking at the Dying Patient: The Ferdinand Hodler Paintings of Valentine Gode-Darel”. Classic Papers, Supplement to JCO, Vol 21, No 9 (May 1), 2003: pp 74s-76s DOI: 10.1200/JCO.2003.01.178.

Representações de Gemelaridade Conjugada Através dos Séculos

Embora seja um evento raro, o nascimento de gêmeos unidos sempre fascinou a sociedade científica. Um dos primeiros estudos sobre a anomalia foi publicado no século XVI pelo excepcional cirurgião Ambroise Paré, que descreveu, dentre outros casos, o fenômeno dos siameses em sua obra De monstruos y prodígio.

A gemelaridade conjugada ocorre quando há uma divisão incompleta do disco embrionário ou quando discos embrionários adjacentes se fundem.

Esses gêmeos unidos (Gr. pagos, fixo) recebem nomes de acordo com a região pela qual estão acoplados; assim sendo, toracópago indica a existência de uma união na parte anterior das regiões torácicas; craniópagos, designa irmãos ligados pelo crânio; pigópagos, unidos pelo sacro e isquiópagos, conectados pela pélvis. O termo xifópagos (xifós = espada, que se refere ao osso esterno), aponta a associação entre irmãos pelo tórax e abdômen, e é a forma mais comum de gêmeos conjugados.

Estima-se que a incidência de irmãos siameses seja de 1 em 50.000 a 100.000 nascimentos. Em alguns casos, os gêmeos estão unidos um ao outro somente pela pele, ou por tecidos cutâneos ou outros, por exemplo, fígados fundidos.

Entre os gêmeos unidos mais antigos que se conhecem se encontram as siamesas Biddenden, nascidas em 1100 na Inglaterra, elas viveram 34 anos com apenas um par de extremidades superiores e inferiores.


Gravura de 1869 retratando Maria e Eliza Biddenden Fonte: Gentleman's Magazine, volume 226.

Mary e Eliza Chulkhurst, registradas na história como as irmãs Biddenden, aparecem unidas por seus quadris e seus ombros em representações pictóricas da época. À morte de uma delas, os médicos propuseram separá-las para salvar a vida da sobrevivente, “Assim como viemos juntas, nós iremos juntas”, conta a lenda que disse Eliza, ao negar a opção. Sua morte ocorreu 6h após a morte da irmã, tinham elas 34 anos. As duas são recordadas até o dia de hoje graças a 20 acres de terra doados por elas a igreja local que, em reconhecimento a generosidade de ambas, prepara bolos e biscoitos com a imagem das gêmeas para dar aos pobres todos os domingos.

Bolo com a imagem em alto relevo das gêmeas siamesas Biddenden.

O procedimento cirúrgico empregado para a separação de irmãos conjugados não é, em verdade, nenhuma novidade, excetuando-se é claro o indiscutível aperfeiçoamento das técnicas. Uma miniatura da Idade Média nos apresenta uma imagem da separação do corpo de um dos siameses já falecido:

Gravura medieval ilustrando um procedimento cirúrgico para separação de siameses. Manuscrito Skilitdés. Biblioteca Nacional. Madri.

Numa das igrejas “A la Scala”, na Itália, há um baixo relevo representando gêmeos siameses florentinos, nascidos no século XIV, com três extremidades inferiores e superiores. No século XV, os irmãos escoceses Scottish viveram 28 anos unidos da cintura para baixo. Mas os gêmeos unidos mais famosos em tempos passados foram as siamesas húngaras Helen e Judith, nascidas em Szoony, no ano de 1701, que se tornaram objeto de grande curiosidade ao serem apresentadas em muitos países. Eram unidas pela região lombar.


Representação de siameses masculino e feminino em uma gravura colorida do Renascimento.

Vasos de cerâmica que ilustram o fenômeno dos siameses entre povos preincaicos no Peru. Museu Larco Hoyle. Lima.

Sem dúvida, os mais conhecidos entre todos os tempos dos que nasceram com esta malformação foram os meninos Chang e Eng Bunker, nascidos no Sião (atual Tailândia) no século XIX e convertidos em celebridades após se exibirem publicamente na Europa e nos Estados Unidos. Inclusive, a denominação popular “gêmeos siameses” foi cunhada devido ao fato dos irmãos Bunker (1811-1874) serem de Sião. Chan e Eng trabalhavam no famoso circo Barnum, ambos se casaram com duas irmãs e tiveram um total de 21 filhos.

Os irmãos Chang e Eng.

Os problemas teóricos plantados pela realidade dos siameses são de uma complexidade notável, tanto que nos obrigam a remover as idéias mais fundamentais da Antropologia filosófica, idéias tais como as de unidade ou identidade dos indivíduos, da personalidade, de racionalidade, de consciência, de responsabilidade, de liberdade, e mesmo a própria idéia de natureza, que agora se nos apresenta como "monstruosa", sem deixar por isso de ser natureza. Tudo isso, obviamente, constitui um desafio para os sistemas mais consensuados de "princípios da Bioética" que tem a ver com a
"autonomia do individuo humano", com os "direitos humanos", ou com o "direito natural", em geral.

Não deixa de ser significativo, o relativo "retraimento" — assim poderíamos considerar — que se observa nos manuais de bioética, em tudo o que concerne a questão de irmãos siameses, plantada como questão bioética (e não como questão estritamente embriológica). Suspeita-se que este suposto retraimento tem a ver com a dificuldade que as situações plantadas por siameses suscitam ante sistemas de principios bioéticos generalmente adoptados por consenso.


REFERÊNCIAS:
1. Serret, S. Aguilar, Maria. “Monstruos siameses. Presentación de un caso”. MEDISAN 1998;2(4):44-47.
2. Topolanski, R. “LA CIRUGÍA Y LOS CIRUJANOS”. OBRA EL ARTE Y LA MEDICINA. CAPÍTULO 6 CIRUGÍA.
3. MOORE, K. Embriologia Básica.7ª Edição. Guanabara Koogan, 2008.